20 Março 2018
Na maioria das vezes em que o Papa Francisco fala sobre uma preocupação social ou política, se compreende imediatamente do que ele está falando. Quando o pontífice aborda a pobreza, por exemplo, as ameaças ao ambiente ou a "cultura do descarte” que desconsidera os nascituros, não há muita dificuldade de entendimento.
No entanto, não é isso o que acontece quando Francisco aborda outro tema recorrente: as "teorias de gênero".
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 15-03-2018.A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Embora venha sendo usado em círculos do Vaticano pelo menos nos últimos vinte e cinco anos, remontando à época do Papa João Paulo II, a preocupação em relação ao termo se intensificou no papado de Francisco.
Em poucas palavras, refere-se às teorias que postulam que as identidades de homem e mulher não são dadas por natureza, mas são construídas social e culturalmente e, portanto, podem ser revistas com base nos desejos pessoais de cada um.
Em uma audiência geral em outubro de 2015, Francisco advertiu que com a ascensão das teorias de gênero "corremos o risco de estar retrocedendo" e disse que elas "retiram parte do afeto do mundo e obscurecem o céu da esperança". Um ano depois, ao retornar a Roma depois de uma viagem à Geórgia e ao Azerbaijão, Francisco reclamou do que chamou "doutrinação das teorias de gênero", que estaria ocorrendo nas escolas de todo o mundo.
Em outubro do ano passado, em uma sessão com a Pontifícia Academia para a Vida, o pontífice disse que a "hipótese recentemente apresentada" da teoria de gênero "não é justa" e advertiu que ela "pode desmantelar a fonte de energia que nutre a aliança entre homem e mulher e a torna criativa e produtiva".
Francisco, claramente, acha que há algo preocupante, e se há uma coisa que Roma sabe fazer é bater na mesma tecla quando o chefe está preocupado. Portanto, não é nenhuma surpresa que a conferência "O direito à educação e ao ensino", da Pontifícia Universidade da Santa Cruz, coordenada pelo Opus Dei, que ocorreu de 12 a 13 de março em Roma, tenha incluído um trabalho sobre teoria de gênero, num painel presidido pelo arcebispo alemão Georg Gänswein, o assessor mais próximo do papa emérito Bento XVI e prefeito da Casa Pontifícia de Francisco.
Duas coisas pareciam claras na apresentação. A primeira é que foi uma apresentação pouco precisa do estado das coisas na Europa e do pensamento atual da Igreja em relação a isso. O segundo era que para a reflexão sobre teoria de gênero ir adiante, a conversa precisa se expandir.
O trabalho foi realizado por Vincenzo Turchi, professor de direito canônico e direito eclesiástico na Universidade de Salento, no sul da Itália, apesar de ter sido lido em seu nome em 12 de março, pois Turchi sofreu um acidente e não pôde viajar.
Em geral, quando as pessoas do Vaticano depreciam o surgimento das "teorias de gênero" ao longo dos anos, elas não se referem a uma teoria específica de um determinado pensador. Na verdade, referem-se a uma ampla tendência intelectual e cultural, que consideram que apresenta três riscos inter-relacionados:
Esses três pontos foram abordados na apresentação de Turchi na segunda-feira.
Teoria de gênero, segundo ele, baseia-se em "conhecidos conceitos filosóficos e antropológicos", a começar pela "primazia da cultura sobre a natureza". De acordo com essa visão, afirmou, os dados naturais são vistos como “secundários" e as diferenças sexuais não são "essenciais e imutáveis", podendo ser estruturadas com base na "autodeterminação individual".
Hoje, disse Turchi, a teoria de gênero está sendo apresentada nas escolas de várias maneiras, não apenas em cursos de educação sexual, mas em muitos outros temas, como um programa controverso de cidadania em escolas primárias da Espanha.
Embora muitas vezes seja apresentada como uma forma de prevenir a discriminação e o bullying de jovens LGBTQI nas escolas, argumentou, os materiais configurados pela teoria de gênero vão muito além.
"Não se limita a apresentar os princípios da não discriminação, mas antecipa o casamento e o registro de casais do mesmo sexo, bem como direitos de adoção para eles, e assim por diante", afirmou.
"Não é a mesma coisa que igualdade de direitos para casais do mesmo sexo", escreveu.
Em seguida, Turchi abordou casos na Espanha, na França e na Itália para ilustrar o que segundo ele é a dinâmica da aplicação da teoria de gênero na educação europeia atual. O caso francês baseava-se num programa de ensino chamado ABCD da Igualdade, desenvolvido conjuntamente pelos ministérios da mulher e da educação, lançado em setembro de 2013.
Criado para ajudar as crianças a superar estereótipos negativos, críticos afirmam que, na realidade, o programa tornou obscuras as distinções entre homem e mulher. Em encenações dos contos de fadas, por exemplo, os meninos eram incentivados a fazer o papel da Chapeuzinho Vermelho e as meninas, do Lobo. Em relação à pintura de Renoir Madame Charpentier et ses enfants, o governo sugeriu que os professores destacassem que meninos e meninas usavam vestidos ou que o rei Louis XIV usava sapatos de salto alto e laço no cabelo.
As escolas selecionadas para o programa-piloto foram alvo de boicotes e protestos de pais furiosos, incluindo muitos pais católicos, afirmando que o Estado estava ultrapassando os limites, invadindo o território dos valores e da identidade, que pertencem à família e aos pais.
Turchi citou situações similares no norte da Europa, como a adoção de pronomes de gênero "neutro" em escolas suecas e de materiais de educação sexual na Dinamarca que incluem a possibilidade de haver convidados como uma prostituta transexual, sem que os pais possam determinar que seus filhos não tenham essa aula.
Examinando o cenário, segundo Turchi, há uma sensação de "decepção amarga" porque "estamos em terreno escorregadio" ao discutir teoria de gênero.
"Está se espalhando sem que se discuta abertamente, sendo inserida na legislação e em materiais escolares sobre outros assuntos", disse. "Quem se opõe é considerado racista ou preconceituoso".
"A verdadeira justiça hoje", afirmou, "pode exigir que as pessoas nadem contra a maré".
Além disso, na discussão de 12 de março, pareceu claro que resolver as tensões impostas pela teoria de gênero envolve uma interseção complicada entre direito e política, provavelmente exigindo que todos que participam da discussão sentem e tentem solucionar as questões.
A respeito disso, foi impressionante que a programação da conferência não foi composta quase apenas por religiosos homens, mas pelo visto não incluiu ninguém que solidário a algumas das ideias por trás da teoria de gênero. Talvez não fosse o local apropriado, mas é possível que um dia essa conversa vai ter de acontecer.
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Para onde vai o pensamento católico sobre as "teorias de gênero"? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU