08 Março 2018
Se o relatório do cardeal Charles Scicluna encontrar provas de que o bispo de Osorno acobertou os abusos do padre Fernando Karadima, a cúpula eclesiástica chilena estará em maus lençóis por ter ocultado informações ao Papa.
A reportagem é de Sergio Rubin, publicada por Valores Religiosos, 07-03-2018. A tradução é de André Langer.
Dom Charles Scicluna, o qualificado enviado papal ao Chile para investigar se o bispo Juan Barros acobertou os abusos de seu mentor espiritual, o padre Fernando Karadima, acaba de retornar para Roma. Apenas ele e seu assistente, o padre Jordi Bertomeu, sabem se há provas sérias, como parece, para incriminá-lo, após ter ouvido o testemunho de vítimas de Karadima, não apenas em Santiago, mas também em uma escala anterior em Nova York, onde ouviram o principal acusador de Barros, o jornalista Juan Carlos Cruz.
Em caso afirmativo, não apenas o destino do bispo de Osorno estaria praticamente selado – ele certamente seria submetido a um julgamento eclesiástico, a menos que renuncie – e seus acusadores respirariam aliviados, senão faria eclodir um escândalo ainda maior, porque seria preciso concluir que a cúpula da Igreja chilena não informou corretamente o Papa. E então caberia a pergunta, que beiraria a afirmação: eles o enganaram?
É que até o seu retorno do Chile, quando decidiu enviar Scicluna, Francisco defendeu firmemente Barros. Já em 2015, logo depois de tê-lo nomeado bispo de Osorno – até então era bispo castrense por decisão de João Paulo II – e diante da irritação das vítimas de Karadima e uma espécie de rebelião dos leigos do novo destino de Barros, o Papa disse a um grupo de chilenos irritados na Praça São Pedro que as acusações eram uma invenção de “esquerdistas”, acirrando ainda mais os ânimos.
Mas o desconforto atingiu seu ponto máximo quando, em Iquique, Francisco considerou que as acusações eram uma calúnia, porque não havia “provas”. Depois, no voo de volta, ele recuou parcialmente após ser questionado pelo prestigioso arcebispo de Boston, o cardeal Sean O'Malley, ao pedir desculpas às vítimas e admitir que não se podia exigir nenhuma prova por esse tipo de crime. Pois bem: “De Roma vem o que para Roma vai”, reza uma máxima eclesiástica.
Uma das primeiras vozes independentes que se levantou para brandir a hipótese de engano foi Marta Lagos, diretora do Latinobarómetro, consultora de opinião pública que, na véspera da chegada de Francisco ao Chile, revelou que a Igreja chilena é a que mais desacreditada está em termos de imagem e que mais fiéis perdeu nos últimos anos na América Latina, e o Chile é a nação da região em que o pontífice argentino é menos bem avaliado. “Quando o Papa chega ao Chile, se dá conta de que a versão que tinha sobre o caso Barros não era completa (...). Então ele diz: ‘aqui há mais coisas’ e decide enviar um inspetor (Scicluna), justamente porque ele não acredita na objetividade dos bispos”, afirmou. E concluiu: “É um questionamento muito sério em relação à Igreja chilena, porque desautoriza os antecedentes que lhe haviam entregado e ficou evidente que eles estavam escondendo informações ou entregando-as apenas parcialmente”.
As vítimas de Karadima desde o primeiro momento se queixaram da falta de receptividade de suas denúncias e depois por rejeição das acusações contra Barros de parte da cúpula da Igreja chilena. E também se queixaram de uma peça-chave quando se trata de informar o pontífice: o núncio apostólico Ivo Scapolo. Isso no marco da formação de uma Igreja bastante conservadora, percebida como distante do povo, a anos luz daquela que foi liderada pelo cardeal Silva Enríquez, que sabia enfrentar com coragem a ditadura de Pinochet.
Esta nova formação tem, para muitos observadores, um artífice: o conservador cardeal Angelo Sodano, que foi precisamente o núncio no Chile nos últimos 10 anos do governo militar e, desde 1990, secretário de Estado do Vaticano, com um enorme poder que crescia de modo inverso à saúde de João Paulo II. Também se avolumavam as suspeitas de cometer manobras econômicas pouco transparentes.
O famoso jornal italiano La Croix expressou esta semana com todas as letras: o escândalo dos abusos sexuais e acobertamentos no Chile “colocará um ponto final ao seu longo reinado (de Sodano) como defensor do Vaticano” porque “suas pegadas estão por toda parte” na Igreja chilena. O curioso é que Sodano – que criou uma relação privilegiada com o então presidente Carlos Menem pelo alinhamento Vaticano-Governo contra o aborto em fóruns internacionais e que há uma década deixou a Secretaria de Estado por disposição de Bento XVI – representava uma ameaça para o então cardeal Jorge Bergoglio, já que via com agrado as operações para tirá-lo do arcebispo bonaerense que, paradoxalmente, era instigada pelos setores católicos mais conservadores e pelo kirchnerismo.
Se o relatório de Scicluna que será entregue ao Papa inclinar-se pela culpabilidade de Barros, será necessário concluir que Sodano é para Bergoglio uma cruz que continua a pesar. De qualquer forma, Francisco reconheceu o cardeal, em dezembro, na missa por seus 90 anos, ser um “homem eclesialmente disciplinado”. Um elogio quase militar. Mas elogio no final. Teremos que celebrar a coerência de Francisco. Porque, no final, a principal bandeira de seu papado é a misericórdia.
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Caso Barros. Por que a Igreja chilena pode sair chamuscada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU