14 Fevereiro 2018
O maior erro que as lideranças católicas cometeram em relação à resposta da Igreja aos padres que abusam de crianças foi a exclusão das mulheres para liderar o processo de formulação das políticas.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada no sítio La Croix International, 09-02-2018. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
As últimas semanas não foram bem aquilo que qualquer um, em sua sã consciência, chamaria de o momento mais brilhante do atual pontificado.
Primeiro, o cardeal encarregado do escritório da Cúria Romana sobre os leigos impediu a ex-presidente da Irlanda, Mary MacAleese, de falar em um evento pelo Dia Internacional da Mulher originalmente programado para ocorrer dentro do Vaticano. Em resposta, os organizadores simplesmente mudaram o local para a sede dos jesuítas, localizada ali perto.
Depois, um cardeal aposentado de origem chinesa de Hong Kong criticou o cardeal secretário de Estado – e, por tabela, o Papa Francisco – por ser “um homem de pouca fé” e por liquidar os católicos “sofredores” no continente chinês de governo comunista ao adotar uma estratégia “ingênua” de apaziguamento ao lidar com as autoridades estatais.
Em seguida, um bispo inconformado e irascível que supervisiona dois think-tanks vaticanos (as Pontifícias Academias para a Ciência e para as Ciências Sociais) ultrapassou suas fronteiras institucionais e entrou na polêmica sobre a política do papa em relação à China. Ele fez a inacreditável e embaraçosa afirmação de que a nação comunista é a líder mundial na implementação do ensino social católico.
O bispo, um argentino que quer que o mundo acredite que ele é melhor amigo de Francisco (ele não é), baseou sua avaliação em sua primeira e única visita à China há seis meses. Se alguma vez ficar comprovado que os funcionários do governo chinês temperaram sua comida com produtos químicos de lavagem cerebral, talvez todos estarão perdoados. No entanto, grandes danos já foram provocados.
Mas isso não foi o pior daquele que tem sido um período muito ruim para o Papa Francisco. O golpe mais sério contra ele e seu pontificado veio de uma reportagem da Associated Press, que produziu evidências difíceis e bastante convincentes de que o papa não foi completamente franco sobre aquilo que ele realmente sabe a respeito das (e sobre quando ele descobriu pela primeira vez as) alegações de que Dom Juan Barros, do Chile, tentou acobertar um padre condenado por abusos sexuais.
O artigo da Associated Press incluía uma carta de oito páginas que uma das vítimas do padre chileno enviou a Francisco em abril de 2015, que detalhava minuciosamente as supostas ações de Dom Barros. A carta foi entregue em mãos pelo cardeal Sean O’Malley, membro do Conselho dos Cardeais (C9) criado pelo papa e presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores. Se for verdade, isso contradiz a alegação de Francisco de nunca ter recebido evidências de tal acobertamento por parte de qualquer uma das vítimas.
Não é uma boa notícia. E despachar o ex-procurador-chefe dos crimes de abuso sexual por parte do clero ao Chile para coletar mais evidências sobre o caso Barros – por mais louvável e importante que seja essa operação da undécima hora – não enfrenta, de modo algum, os problemas reais que a reportagem da Associated Press revela.
Apenas uma das três coisas pode ser verdadeira – ou Francisco nunca se esforçou para ler a carta, ou ele a leu e a rejeitou por ser pouco convincente, ou ele simplesmente esqueceu que já a havia lido.
Há uma quarta possibilidade, embora menos plausível. Talvez O’Malley, na realidade, nunca entregou a carta ao papa, mesmo que um dos então membros da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores (que a entregou a O’Malley – há uma foto para provar) e a vítima (que a escreveu) disseram que o cardeal lhes havia dito que entregou a carta ao papa.
Nenhum desses possíveis cenários é encorajador. Porque isso significa que alguém não está sendo completamente transparente. Até agora, apenas um lado falou publicamente sobre a reportagem da Associated Press – o ex-membro da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores (Marie Collins) e a vítima chilena de abusos (Juan Carlos Cruz).
O Papa Francisco e o cardeal O’Malley, até agora, mantiveram seu silêncio. A fim de lançar luz sobre o que realmente aconteceu e revelar quem está dando um ponto de vista preciso sobre essa história, eles precisam se pronunciar.
Se O’Malley declarasse de repente que, não, ele nunca entregou a carta de Cruz ao papa – seja porque se esqueceu de fazer isso e depois mentiu a respeito, ou porque ele está tentando proteger Francisco do atual embaraço e da crescente crise em que isso está se transformando – ele teria que renunciar como presidente da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores. Sua credibilidade entre os membros da comissão (que ainda devem ser nomeados nas próximas semanas) ficaria muito comprometida.
E quanto ao papa?
Se Francisco recebeu a carta e nunca a leu, ou simplesmente se esqueceu de lê-la, isso se torna mais uma peça de evidência de que lidar com a crise dos abusos sexuais – particularmente ao responsabilizar os bispos negligentes – ainda não é uma grande prioridade para o papa, apesar de tudo o que seus apologistas digam ao contrário.
No entanto, seria ainda mais prejudicial para o papa se ele admitisse que, sim, ele leu a carta, mas não acreditou que as acusações de Cruz contra Dom Barros fossem credíveis. Isso significaria que ele não estava falando inteiramente a verdade durante sua visita ao Chile e ao Peru no mês passado, quando disse aos repórteres que nunca recebeu “provas” – que depois corrigiu para “evidências” – para apoiar as acusações contra o bispo.
Isso está rapidamente se tornando uma grande e nada santa confusão. E seria devastador para muitos católicos e outras pessoas de boa vontade se ela mutilasse severamente um pontificado que lançou um projeto profundamente enraizado e de longo prazo para reformar e restaurar a credibilidade da Igreja Católica e seu testemunho do Evangelho.
Então, o que pode ser feito neste momento?
Em primeiro lugar, o papa e seu departamento de comunicação (que está em uma desastrosa desordem e não o está servindo bem) devem abordar os conteúdos da reportagem da Associated Press e as consequências que se seguiram. Espera-se que o cardeal O’Malley possa ajudar nesse primeiro passo necessário.
Em segundo lugar, assumindo que a essência da reportagem está correta (a carta existe e foi entregue ao papa), é difícil ver como Francisco pode responder sem confessar que ele foi negligente (ao não ler a carta, por qualquer motivo) ou não foi completamente transparente (ou seja, ocultando dos jornalistas que ele a leu, mas não acreditou nos seus conteúdos).
Como eu já escrevi muitas vezes, este papa não tem medo de ser vulnerável e mostrar aquilo que alguns podem considerar como fraqueza a fim de engajar os outros naquilo que ele percebe como o bem maior da Igreja e da humanidade. Seu encontro com o patriarca ortodoxo de toda a Rússia, seus esforços para engajar Donald Trump e outros líderes mundiais construtivamente, e sua política sobre a China são apenas alguns exemplos.
O papa precisa rapidamente tornar a crise dos abusos sexuais na Igreja – que, aliás, está longe de se resolver – uma prioridade ainda maior. Francamente, ele não fez isso até agora.
Ele pode começar abrindo o jogo com os membros de sua Igreja e falando francamente com eles sobre seu próprio pensamento – suas dúvidas, preocupações, apreensões, omissões e até mesmo erros – a respeito do modo como as autoridades da Igreja (inclusive ele) abordaram a crise dos abusos até este ponto.
Ele ainda goza de uma sólida confiança e credibilidade entre milhões e milhões de pessoas que veriam sua franca confissão e testemunho como um passo verdadeiramente humano e positivo, e não como um grito de rendição. Mas essa confiança e credibilidade vão se corromper se ele não disser algo em breve. E a próxima temporada penitencial da Quaresma oferece a oportunidade perfeita para um gesto tão verdadeiramente cristão e até mesmo dramático.
Um pensamento final.
O Papa Francisco também precisa renovar totalmente o mandato e a missão da Pontifícia Comissão para a Proteção dos Menores e estabelecer outros mecanismos para lidar com a crise dos abusos sexuais. A maioria dos novos membros da comissão e seus outros assessores sobre essa questão deveriam ser mulheres. E ele deveria exigir que as dioceses e as Conferências Episcopais nacionais deem às mulheres, e especialmente às mães, o papel principal nessa questão também.
Esse seria um modo importante de ele fazer uma correção profética e necessária para a resposta até agora inadequada que a Igreja Católica ofereceu.
Muitos homens da hierarquia escondem e justificam sua misoginia, seu medo das mulheres ou seu desejo de manter as estruturas decisórias da Igreja nas mãos de clérigos – todos homens, é claro –, repetindo o refrão paternalista de São João Paulo II a algo que ele chamou de “gênio feminino”.
Essa expressão, que o falecido papa escreveu pela primeira vez em 1995 – e que Bento XVI, Francisco e inúmeros homens da Igreja continuaram repetindo – encarna um catálogo de traços que, de algum modo, são especialmente peculiares às mulheres em virtude do desígnio da natureza de Deus.
As pessoas podem debater se todas essas características são realmente exclusivas das mulheres. Mas uma coisa certa é que apenas as mulheres podem ser mães. E, por causa da intrincada conexão entre mãe e filho mediante a gravidez, o parto e a infância, pode-se argumentar que as mulheres – as mães – têm instintos únicos de proteção e de criação que são desenvolvidos de forma diferente em comparação com os mesmos instintos nos pais.
O maior erro que as lideranças católicas em todas as partes do mundo cometeram em relação à resposta da Igreja ao fenômeno dos padres que abusam de crianças e de adolescentes foi a exclusão das mulheres da liderança do processo de formulação de políticas. Onde as mulheres foram incluídas, elas foram meras consultoras ou especialistas, muitas vezes apenas peças decorativas para aliviar as incômodas consciências masculinas e satisfazer as demandas da opinião pública.
O Papa Francisco pode consertar isso e mostrar que a Igreja realmente acredita que as mulheres têm um “gênio feminino” especial – pelo menos na área da relação entre mãe e filho – colocando as mulheres à frente da resposta da Igreja aos abusos sexuais. Até agora, o “gênio clerical” não produziu bons frutos.
Uma liderança católica leiga que fez um excelente trabalho para ajudar os bispos de seu país a lidar com a crise dos abusos sexuais adora repetir esta frase: “Enquanto um leigo for o último a dar conselhos sobre esses assuntos ao papa, os instintos clericais sempre serão um problema!”.
Isso está exatamente certo. Mas o leigo deveria ser uma mulher.
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Papa Francisco, a crise crescente e o ''gênio feminino'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU