23 Janeiro 2018
Não é todo dia que um aliado e assessor próximo de um papa, além de cardeal da Igreja Católica, distancia-se dele. Portanto, quando o cardeal de Boston Sean O'Malley disse, no sábado à noite, que era "compreensível" que a linguagem de Francisco no Chile ao falar a respeito das vítimas de abusos e acusar um bispo de tê-los encoberto tivesse causado "grande sofrimento", é evidente que geraria uma grande reação.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 21-01-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Peter Saunders, que foi vítima de abuso sexual clerical e é ex-membro da Pontifícia Comissão para a Tutela dos Menores - um órgão consultivo criado pelo Papa Francisco em 2014 do qual O’Malley é líder - talvez tenha dado a resposta mais ousada: ele quer O’Malley seja papa, e não Francisco.
"No fundo, acho que O'Malley gostaria de tomar alguma atitude, e se ele fosse papa acho que estaríamos presenciando um mundo diferente", afirmou, em comentários ao Crux.
"Mas, acima de tudo, ele é um servo obediente - a seu chefe, o Papa, não àqueles que ele serve", disse Saunders.
Em um e-mail enviado a vários partidos no domingo, Saunders enfatizou que estava muito decepcionado com o Papa.
"O ataque do Papa Francisco às vítimas de Karadima fez com que ele perdesse mais amigos do que pode imaginar", escreveu, referindo-se a um dos padres pedófilos mais conhecidos do Chile. "Ele com certeza não é o homem que eu achei que fosse."
Francisco começou sua visita ao Chile com um pedido de desculpas pelos "danos irreparáveis" causados pelo abuso sexual clerical e reuniu-se com sobreviventes em particular. No entanto, antes de celebrar a missa em Iquique, no norte do Chile, no seu último dia de visita, Francisco se aproximou de um grupo de jornalistas para lhes agradecer pelo trabalho realizado na cobertura da visita. Ao cumprimentá-los, um dos jornalistas perguntou sobre o bispo Juan Barros, de Osorno, um dos três bispos acusados de proteger o padre Fernando Karadima.
Fernando Karadima foi considerado culpado de cometer abuso sexual de menores pelo Vaticano e condenado a uma vida de penitência e oração. Barros, que foi transferido da capelania militar para Osorno por Francisco, em 2015, sempre insistiu em sua inocência, dizendo que não sabia de nada sobre os abusos.
Francisco disse que não há provas contra Barros, e que as acusações contra ele são apenas "calúnia".
Consequências dessa observação levaram à declaração de O'Malley no sábado, na qual ele disse que é compreensível que as palavras do pontífice causassem "grande sofrimento para as vítimas de abusos sexuais cometidos pelo clero ou qualquer outro criminoso".
"Palavras que transmitem a mensagem de que 'se você não consegue provar o que declara, ninguém vai acreditar em você' abandonam os que sofreram violações penais repreensíveis à sua dignidade humana e relegam as vítimas a um exílio desacreditado”, disse O'Malley.
O cardeal disse que não sabia dos detalhes da declaração do Papa e, por isso, não podia abordar as palavras de Francisco.
"O que eu sei é que o Papa Francisco reconhece plenamente as notórias falhas da Igreja e do clero que abusou de crianças e o impacto devastador que esses crimes tiveram nas vítimas e em seus entes queridos", escreveu O'Malley.
Quando a declaração foi divulgada, o cardeal estava indo para o Peru, onde Francisco conclui sua sexta turnê latino-americana no domingo. A Arquidiocese disse que a viagem de O'Malley tinha sido programada no ano passado, para participar do 60º aniversário da Sociedade de São Tiago Apóstolo.
Em entrevista ao Crux, Saunders questionou o compromisso de Francisco com a proteção das crianças: "Será que ele não entende a devastação que estes crimes causam às vítimas?"
"Aconteceu comigo há muito tempo, mas eu vivo com as consequências e a dor até hoje", disse. "Mas tenho um amigo que me conforta, Jesus."
No mês passado, levantaram-se questões sobre a situação do corpo consultivo do Papa, já que o mandato dos membros atuais era até o dia 17 de dezembro e nenhum novo membro foi nomeado. Uma fonte próxima do Cardeal disse ao Crux que O'Malley ainda está atuando como presidente e que a comissão tinha decidido apresentar uma série de recomendações a Francisco antes do final do mandato, como um conjunto de novos nomes para membros da comissão.
Disse, ainda, que cerca de metade dos que foram nomeados até dezembro de 2017 vai continuar em suas funções, para garantir a continuidade, e outra metade será substituída, para incluir membros de regiões que não foram representadas antes.
Juan Carlos Claret Pool, que representa uma associação de leigos e kleigas de Osorno, disse ao Crux que eles valorizam a declaração de O'Malley, considerando-a "corajosa" e sugerindo que seus comentários eram bem pensados.
"O cardeal está pressionando o Papa Francisco para que ele se responsabilize por suas palavras", disse. "Em 2015 [Francisco] nos chamou de tolos e esquerdistas e nunca se desculpou. Agora, no último dia, ele joga uma bomba e sai."
Segundo Claret, as palavras do Papa são "graves", porque desencorajam outras vítimas de se apresentarem, mostrando que, independentemente da decisão do sistema judiciário local ou do Vaticano, "para o Papa eles continuarão sendo mentirosos".
"É por isso que agradecemos a O'Malley por ter respondido ao Papa", disse Claret.
Luis Badilla, ao escrever no conhecido blogue italiano "Il Sismografo", muitas vezes considerado próximo do Vaticano, publicou um artigo no domingo pedindo a renúncia de Barros e pedindo para que o Papa "prontamente" aceitasse o pedido, dizendo que não apenas a igreja chilena está sofrendo com a "Guerra do Bispo Barros”, mas toda a Igreja.
Joelle Casteix, da Rede de Sobreviventes de Abuso Sexual por Sacerdotes dos Estados Unidos, disse ao Crux que Francisco cometeu um "erro fatal" com seus comentários, porque "transpareceu para as pessoas como ele realmente sente sobre as vítimas de abuso e sobre o escândalo em geral".
"Tenho certeza de que o cardeal O'Malley - como líder da comissão agora suspensa - e outras autoridades da Igreja que estão encarregadas de lidar com abuso sexual clerical entraram em crise", disse Casteix.
Ela acredita que O'Malley não teve escolha, senão se pronunciar para tentar aplacar a ira dos católicos em todo o mundo, porque mesmo que Francisco não precise lidar com as consequências de suas palavras, o cardeal precisa.
"Ele não teve escolha senão apelar à decência humana comum", disse Casteix sobre O'Malley.
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Repreensão de O'Malley ao Papa sobre casos de abuso sexual causa grande reação - Instituto Humanitas Unisinos - IHU