23 Janeiro 2018
Quase desde o início de seu papado, o Papa Francisco fez das críticas ao "clericalismo" uma alegoria, ao observar que "anula a personalidade dos cristãos" e, em outro momento, rezar por uma igreja completamente "livre" do clericalismo.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 21-01-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Seu discurso anticlericalismo é tão conhecido que até agora pouco se dedicou energia para ponderar sobre o que exatamente ele quer dizer com isso. Para aqueles que querem saber, no entanto, o Papa deu um panorama bastante claro no domingo, em um discurso aos bispos do Peru que foi parte do fechamento de sua visita de seis dias visita à América Latina, que antes o levou ao Chile.
Normalmente, presume-se que "clericalismo" seja um sistema de poder e privilégios desfrutados pelo clero, as manifestações habituais de que são os clérigos que pensam que podem mandar nas pessoas ao seu redor por terem sido ordenados e também serem os clérigos que vivem no luxo às custas do sacrifício das pessoas comuns.
Francisco parece mesmo incluir tudo isso ao ridicularizar o "clericalismo", embora não sempre da forma como se poderia pensar. Afinal, trata-se de um papa, que dificilmente fica constrangido em impor seu poder pessoal quando acredita que algo importante está em jogo - desde despedir parte da equipe do Vaticano até tomar grandes decisões sobre questões como a admissão de católicos divorciados e recasados à comunhão.
Muitas vezes, o aspecto do clericalismo que mais parece frustrar Francisco na verdade não é poder ou privilégios, mas a distância - um desengajamento da vida, da experiência e das perspectivas das pessoas comuns, favorecendo obsessões eclesiásticas em grande parte internas. Foi isso o que o Papa parecia querer dizer no sábado, por exemplo, ao pedir aos sacerdotes do Peru que evitassem a tentação de se tornar "profissionais do sagrado".
Em outras palavras, o oposto de "clerical”, na mente de Francisco, não é tanto "sem poder" ou mesmo "pobre", mas sim “próximo”.
No discurso aos bispos do Peru, no domingo, Francisco mencionou o exemplo de Santo Toríbio de Mogrovejo, um clérigo espanhol nascido em uma família nobre e outrora grande inquisidor do Rei Felipe II, que mais tarde foi nomeado Arcebispo de Lima e passou o resto de sua vida evangelizando o Peru e as Américas.
As palavras de Francisco ao descrever a relação de Turíbio com seus sacerdotes remetem a uma síntese do que significa não ser uma igreja “clerical”.
"Ele era um pastor que conhecia seus sacerdotes", disse Francisco, "um pastor que tentava visitá-los, acompanhá-los, incentivá-los e adverti-los".
"Ele lembrava seus sacerdotes que eram pastores, e não lojistas, e eles tiveram de cuidar e defender os índios como se fossem seus filhos", disse o Papa. "Mas ele não fazia isso de uma escrivaninha, então ele conhecia suas ovelhas e reconhecia, na sua voz, a voz do bom pastor."
Com efeito, essa é a receita básica de Francisco para evitar o flagelo do clericalismo - sair de trás da escrivaninha.
"Hoje, poderíamos chamá-lo de bispo da 'rua'", disse Francisco, falando de Turíbio. "Um bispo com os sapatos desgastados de caminhar, das viagens constantes, de sair para pregar o Evangelho a todos".
Nas viagens papais, o discurso aos bispos é onde geralmente o pontífice estabelece sua visão para a Igreja daquele país. No domingo, Francisco fez isso através da figura de São Turíbio, destacando quatro aspectos do seu legado, os quais pediu que os bispos atuais acolham:
Em termos de divulgação, Francisco destacou a natureza missionária do santo, observando que dos 22 anos de Turíbio como arcebispo de Lima, passou 18 fora da cidade, cruzando toda a extensão de seu vasto território por três vezes.
"Ele sabia que era o único jeito de ser pastor: estar perto dos seus, dispensando os sacramentos, e ele constantemente insistia que seus sacerdotes fizessem o mesmo", disse Francisco. "Ele o fez não apenas através de palavras, mas pelo seu testemunho na linha de frente da evangelização."
Sobre a importância de falar com as pessoas na sua própria língua, Francisco observou que Turíbio insistiu em compilar os catecismos nas línguas nativas indígenas quíchua e aimará e incentivou seus sacerdotes a dominar essas línguas.
"Visitando e convivendo com seu povo, ele percebeu que não era suficiente estar lá fisicamente, mas aprender a falar a língua dos outros, porque apenas assim o Evangelho podia ser entendido e podia tocar o coração", disse o Papa.
Hoje, argumentou o Papa, esse desafio ainda está presente, embora de novas formas.
"Temos que aprender línguas completamente novas, como, por exemplo, dessa nossa era digital", afirmou. "Para conhecer a verdadeira língua dos nossos jovens, nossas famílias, nossos filhos... temos de ir aos lugares onde estão nascendo novas histórias e novos paradigmas."
Francisco é um dos principais incentivadores das "periferias", dos oprimidos e dos esquecidos. Por isso, não foi surpreendente que ele levantasse esse capítulo da história de Turíbio também.
"Em suas visitas, ele conseguia ver os abusos e excessos que os povos originais sofreram", disse Francisco, salientando que não tinha medo de agir a respeito do que tinha visto - em 1585, Turíbio excomungou um oficial colonial espanhol, ganhando a ira, segundo Francisco, de "todo um sistema de corrupção e uma teia de interesses".
"Como vemos, este é o pastor que sabe que o bem espiritual nunca pode ser separado do bem material, quanto mais quando a integridade e a dignidade das pessoas estão em risco", disse o Papa.
"Desta forma, Turíbio lembra a sociedade em geral, e a cada comunidade, que a caridade deve estar sempre acompanhada da justiça", acrescentou Francisco. "E que não há evangelização autêntica que não aponte e denuncie todo pecado contra a vida dos nossos irmãos e irmãs, principalmente aqueles que são mais vulneráveis."
Por fim, Francisco elogiou o cuidado que São Turíbio demonstrou com seus sacerdotes, como, por exemplo, fundando o primeiro seminário de pós-Tridentino daquela parte do mundo.
"Ele defendeu a ordenação dos mestiços - uma questão controversa na época - e procurou fazer com que os outros enxergassem que se o clero precisava ser diferente em alguma área, era por virtude de sua santidade e não sua origem racial", disse Francisco.
"Essa formação não se limitou aos estudos do seminário, mas continuou com as constantes visitas que ele fazia", disse o Papa.
A respeito disso, Francisco contou uma história. Numa véspera de Natal, disse, a irmã de Turíbio deu-lhe uma camisa nova para usar nas férias. No mesmo dia, ele visitou um dos seus sacerdotes e, vendo suas condições de vida, deu-lhe a camisa prontamente.
Certamente, o aspecto da história que parecia deixar a impressão mais profunda em Francisco não era tanto a pobreza implícita no ato de dar a camisa, mas o fato de que Turíbio estava lá, no campo, e sabia como seu sacerdote vivia.
Encerrando suas observações, Francisco exortou os bispos peruanos a promover um espírito de unidade na Igreja.
"Queridos irmãos, trabalhem pela unidade", declarou. "Não permaneçam prisioneiros das divisões que criam grupinhos e dificultam a nossa vocação de ser um sacramento da comunhão".
Como ainda tinha algum tempo depois das observações preparadas, o Papa convidou os bispos locais a fazerem perguntas. Um deles perguntou sobre a região amazônica, que o pontífice tinha visitado no dia anterior, e onde a escassez crônica de padres dificulta os esforços pastorais.
Francisco respondeu que a primeira vez que tinha ouvido sobre a "crise missionária" na Amazônia tinha sido num encontro de bispos latino-americanos em Aparecida, no Brasil, em 2007.
O papa então falou sobre um Sínodo dos Bispos convocado por ele na região Pan-Amazônica, que deve acontecer em 2019, e disse que que o "problema do diaconato é uma das coisas em que precisamos pensar bem, mas, como há um sínodo, o Papa não pode falar antes disso".
"Os padres sinodais terão de apresentar propostas", disse ele, para resolver a escassez de ministros na região.
Ainda no domingo, Francisco celebra uma missa em uma base aérea em Lima, um dos poucos locais da cidade com capacidade para acomodar a grande multidão esperada.
O pontífice então embarca no avião papal para o seu voo de volta a Roma, onde deve dar sua habitual conferência de imprensa durante o voo.
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Viagem ao Peru confirma: Para Francisco, o oposto de 'clerical' é 'próximo' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU