09 Janeiro 2018
A sua modéstia e humildade fizeram dele uma figura popular por todo o mundo. Mas, dentro da Igreja, as suas reformas têm enfurecido os conservadores e provocado uma revolta. O homem que há precisamente uma semana fez 81 anos, e vive com apenas um pulmão, é o primeiro Papa não europeu dos tempos modernos e tem neste momento em mãos uma Igreja dividida. Um dos seus mais ferozes críticos, o cardeal Burke, é o mesmo que serviu de inspiração a uma série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos, de Pat Buchanan a Steve Bannon ou Newt Gingrich.
A reportagem é de Andrew Brown, publicada por The Guardian e reproduzida por Público, 24-12-2017.
O Papa Francisco é atualmente um dos homens mais odiados do mundo. E quem mais o odeia não são ateus, protestantes ou muçulmanos, mas alguns dos seus próprios seguidores. Fora da Igreja goza de grande popularidade, afirmando-se como uma figura de uma modéstia e uma humildade quase ostensivas. Desde o momento em que o cardeal Jorge Bergoglio se tornou Papa em 2013, os seus gestos prenderam a atenção do mundo: o novo Papa guiou um Fiat, transportou as próprias malas e pagou a conta em hotéis; sobre os homossexuais, perguntou: “Quem sou eu para julgar?”, e lavou os pés de refugiadas muçulmanas.
Dentro da Igreja, porém, Francisco tem desencadeado uma reacção feroz por parte dos mais conservadores, que temem que este novo espírito divida a Igreja ou até que a destrua. Este Verão, um proeminente clérigo inglês disse-me: “Mal podemos esperar que ele morra. É impublicável o que dizemos dele em privado. Sempre que dois padres se encontram, falam sobre o quão horrível Bergoglio é… ele é como Calígula: se tivesse um cavalo, fazia dele cardeal.” Claro que após dez minutos de repetidas críticas, acrescentou: “Não pode publicar nada disto, senão serei despedido.”
Esta mistura de ódio e temor é frequente entre os adversários do Papa. Francisco, o primeiro Papa não europeu dos tempos modernos e o primeiro Papa jesuíta da História, foi eleito como um outsider dos poderes instituídos do Vaticano e era esperado que fizesse inimigos. Mas ninguém previu que fizesse assim tantos. Desde a sua rápida renúncia à pompa do Vaticano, que marcou desde logo a diferença na relação com os mais de três mil empregados civis do Vaticano, ao seu apoio aos migrantes, às suas críticas ao capitalismo global e, acima de tudo, à sua intenção de reexaminar as posições da Igreja relativamente ao sexo, o Papa tem vindo a escandalizar os reacionários e os conservadores. A julgar pelos números das votações do último encontro mundial de bispos, quase um quarto do Colégio dos Cardeais — o mais alto organismo da organização clerical — está convencido de que o Papa se está a aproximar da heresia.
A questão crítica prende-se com a sua visão sobre o divórcio. Num corte com séculos, senão milénios, de doutrina católica, o Papa Francisco tem tentado encorajar os padres católicos a darem a comunhão a alguns casais divorciados ou casados em segundas núpcias e a famílias cujos pais não são casados. Os seus inimigos estão a tentar forçá-lo a abandonar essa ideia. Como ele se tem mantido firme e mostrado uma sóbria perseverança face ao crescente descontentamento, começam agora a preparar-se para a guerra. No ano passado, um cardeal, com o apoio de alguns colegas já aposentados, levantou a possibilidade de uma declaração formal de heresia — a rejeição intencional de uma doutrina estabelecida da Igreja, pecado punível com a excomunhão. Em Setembro, 62 católicos descontentes, nos quais se incluem um bispo já retirado e um antigo diretor do Banco do Vaticano, publicaram uma carta aberta em que apontam a Francisco sete acusações específicas de ensinamentos heréticos.
Acusar um Papa em funções de heresia é o equivalente católico à opção nuclear. A doutrina afirma que o Papa não pode estar errado quando se pronuncia sobre questões centrais da fé; portanto, se está errado, não pode ser Papa. Por outro lado, se este Papa está certo, todos os seus antecessores têm de ter estado errados.
A discussão está particularmente envenenada porque assenta quase na totalidade em bases teóricas. Na prática, em quase todo o mundo, os casais que se divorciam e voltam a casar têm acesso à comunhão. O Papa Francisco não está a propor numa revolução, apenas o reconhecimento institucional de um sistema que já existe e que pode até ser essencial para a sobrevivência da Igreja. Se as regras fossem aplicadas à letra, nenhuma pessoa cujo casamento tivesse falhado poderia voltar a ter relações sexuais. Essa não é uma boa maneira de assegurar a existência de gerações futuras de católicos.
Mas, para os seus detratores, as reformas cautelosas de Francisco põem em causa a crença de que as verdades da Igreja são intemporais. Porque se não são, perguntam os conservadores, então qual o seu valor? A batalha sobre o divórcio e os novos casamentos põe em confronto duas ideias profundamente opostas sobre o papel da Igreja. A insígnia do Papa são duas chaves cruzadas, que representam as que Jesus terá supostamente dado a S. Pedro, e que simbolizam os poderes de unir e separar, ou seja, proclamar o que é pecado e o que é permitido. Mas qual dos poderes é hoje mais importante e mais urgente?
A crise atual é a mais séria desde que as reformas liberais dos anos 1960 fizeram com que um grupo dissidente de conservadores da “linha dura” abandonasse a Igreja (o seu líder, o arcebispo francês Marcel Lefebvre, viria mais tarde a ser excomungado). Nos últimos anos, escritores conservadores têm repetidamente levantado a hipótese de um cisma. Em 2015, o jornalista americano Ross Douthat, um convertido ao catolicismo, escreveu um artigo para a revista Atlantic intitulado “Irá o Papa Francisco destruir a Igreja?”; num blog na Spectator, o tradicionalista inglês Damian Thompson afirmou peremptoriamente que “o Papa Francisco está em guerra com o Vaticano. Se sair vencedor, a Igreja poderá desmoronar-se”. Segundo um arcebispo do Cazaquistão, as posições do Papa relativamente ao divórcio e à homossexualidade permitiram que o “fumo de Satã” envolvesse a Igreja.
A Igreja Católica passou grande parte do último século a lutar contra a revolução sexual, tal como havia lutado antes contra as revoluções democráticas do século XIX, e essa luta levou-a a ter de defender uma doutrina insustentável, pela qual toda a contracepção artificial é proibida, bem como qualquer relação sexual fora de um casamento eterno. Como o Papa Francisco reconhece, não é assim que as pessoas agem normalmente. E o clero também o sabe, mas é esperado que finja que não. Ou seja, a doutrina oficial não pode ser questionada, mas também não pode ser cumprida. Um dos lados terá de ceder e, quando tal acontecer, a explosão resultante poderá fraturar a Igreja.
Não deixa de ser curioso que os frequentes choques e ódios dentro da Igreja — resultantes das posições sobre as alterações climáticas, as migrações ou o capitalismo — tenham chegado a um ponto de não retorno numa enorme batalha sobre as implicações de uma única nota de rodapé de um texto intitulado “A Alegria do Amor” (ou, no original latim, Amoris Laetitia). A exortação, escrita por Francisco, é um sumário do debate corrente sobre a questão do divórcio e numa nota de rodapé o autor faz aparentemente uma leve afirmação de que os casais divorciados e que voltem a casar poderão eventualmente receber a comunhão.
Com mais de mil milhões de fiéis, a Igreja Católica é a maior organização global que o mundo alguma vez viu, e muitos dos seus seguidores são divorciados ou pais solteiros. Para realizar o seu trabalho por todo o mundo, a Igreja depende de trabalho voluntário, ou seja, se os comuns fiéis deixarem de acreditar no que estão a fazer, todo o sistema colapsa. Francisco sabe disso. Se não for capaz de conciliar teoria e prática, a Igreja pode assistir a uma debandada. Os seus oponentes também defendem que a Igreja enfrenta uma crise, mas a sua solução é a contrária. Para eles, a distância ente teoria e prática é exatamente o que dá valor e sentido à Igreja. Se tudo o que a Igreja tiver para oferecer for algo de que as pessoas não sentem necessidade de procurar, dizem os que se opõem a Francisco, então irá seguramente colapsar.
Ninguém previu este confronto quando Francisco foi eleito em 2013. Uma das razões da sua escolha foi precisamente o objetivo de solucionar a rígida burocracia do Vaticano, tarefa há muito adiada. O cardeal Bergoglio, de Buenos Aires, foi eleito como um relativo outsider, o que à partida facilitaria a eliminação de algumas das forças de bloqueio comuns ao âmago da Igreja. Mas essa missão entrou rapidamente em rota de colisão com uma fratura ainda mais acrimoniosa dentro da Igreja, que é geralmente descrita como a batalha entre os “liberais”, como Francisco, e os “conservadores”, dos quais fazem parte os seus adversários. Contudo, essa é uma definição equívoca e falaciosa.
A disputa central põe em confronto os católicos que acreditam que a Igreja deve liderar a agenda do mundo e os que, por outro lado, defendem que são as circunstâncias mundiais que devem definir as posições da Igreja. Essas são, porém, as posições idealistas: no mundo real, qualquer católico será uma mistura dessas duas orientações, tendo, na maior parte dos casos, a predominância de uma delas.
Francisco é um puro exemplo de um católico extrovertido, ou “virado para fora”, especialmente se comparado com os seus antecessores imediatos. Os seus oponentes são os introvertidos. Para muitos, a primeira coisa que os atraiu na Igreja foi exatamente a sua distância relativamente às preocupações mundanas. Um número surpreendente dos mais proeminentes introvertidos são protestantes americanos convertidos, alguns impulsionados pela superficialidade dos recursos intelectuais com que foram educados, mas muito mais por um sentimento de que o enfraquecimento do protestantismo liberal se deve precisamente ao facto de ter deixado de ser uma alternativa à sociedade que o rodeia. Querem mistério e fervor, não senso comum estéril e sabedoria convencional. Nenhuma religião pode florescer sem tal impulso.
Mas também nenhuma religião global se pode contrapor totalmente ao mundo em que se encontra inserida. No início dos anos 1960, um encontro que durou três anos entre bispos de todos os quadrantes da Igreja, que ficou conhecido como o Segundo Concílio do Vaticano, ou Vaticano II, “abriu as janelas para o mundo”, nas palavras do Papa João XXIII, que o convocou, mas que morreu antes da sua conclusão.
O concílio renunciou ao anti-semitismo, abraçou a democracia, proclamou direitos humanos universais e aboliu, em larga escala, a missa em latim. Esta última medida, em particular, chocou os introvertidos. O escritor Evelyn Waugh, por exemplo, recusou-se a partir desse momento a participar numa missa em inglês. Para homens como ele, os rituais solenes de um serviço religioso realizado por um padre de costas para a congregação, falando inteiramente em latim e encarando Deus no altar, eram o próprio coração da Igreja — uma janela para a eternidade reencenada a cada representação. O ritual tinha uma posição central na Igreja, de uma forma ou de outra, desde a sua fundação.
Simbolicamente, a mudança provocada pela nova liturgia — a troca do padre introvertido que encarava Deus no altar pela figura extrovertida virada para a congregação — foi imensa. Alguns conservadores ainda hoje não se reconciliaram com a reorientação, entre os quais, o cardeal guineense Robert Sarah, que tem sido apontado pelos introvertidos como possível sucessor de Francisco, e o cardeal americano Raymond Burke, que tem emergido como o mais veemente opositor público de Francisco. Nas palavras da jornalista católica inglesa Margaret Hebblethwaite, uma fervorosa apoiante do Papa Francisco, a crise atual é nada menos que “o regresso do Vaticano II”.
“Devemos ser inclusivos e acolher tudo o que é humano”, afirmou Sarah num encontro no Vaticano no ano passado, numa condenação das propostas de Francisco, “mas o que vem do inimigo não pode nem deve ser assimilado. Não podemos seguir Cristo e Belial! As ideologias ocidentais da homossexualidade e do aborto e o extremismo islâmico representam nos dias de hoje o que o nazismo, o fascismo e o comunismo representaram no século XX”.
Nos anos imediatamente a seguir ao concílio, freiras deitaram fora os seus hábitos, padres descobriram as mulheres (mais de cem mil deixaram o sacerdócio para se casarem) e teólogos livraram-se das correntes da ortodoxia introvertida. Após 150 anos de resistência e de rejeição do mundo exterior, a Igreja deu por si completamente envolvida por esse mundo, até ao ponto em que os introvertidos temeram que o edifício estivesse em risco de se desmoronar.
A afluência às igrejas caiu a pique no mundo ocidental, tal como aconteceu noutras denominações. Nos Estados Unidos, 55% dos católicos iam regularmente à missa em 1965; em 2000, esse número era de apenas 22% [em Portugal, segundo dados do Vaticano, em 2015, existiam 9,183 milhões de católicos numa população de 10,34 milhões de pessoas, correspondendo a uma percentagem de 88,7%, mais quatro décimas do que em 2010]. Em 1965, foram batizados um milhão e trezentos mil bebés nos EUA; em 2016, apenas 670 mil. Se esta tendência é ou não fruto de uma relação causa/efeito, é algo que continua a ser ferozmente discutido. Os introvertidos põem a culpa no abandono das verdades universais e das práticas tradicionais; os extrovertidos acham que as mudanças na Igreja não foram suficientes ou suficientemente rápidas.
Em 1966, um comité papal de 69 membros, no qual se incluíam sete cardeais e 13 médicos, bem como laicos e até algumas mulheres, votou esmagadoramente a favor do levantamento da proibição do uso de contracepção artificial, mas o Papa Paulo VI revogou a votação em 1968. Não podia admitir que os seus predecessores estivessem errados e os protestantes certos. Para uma inteira geração de católicos, esta disputa passou a simbolizar a resistência da Igreja à mudança. Nos países em desenvolvimento, a Igreja Católica foi em grande parte ultrapassada por um ressurgimento pentecostal, que oferecia tanto a encenação como estatuto para os laicos e para as mulheres.
Os introvertidos tiveram a sua vingança aquando da eleição do Papa (agora Santo Papa) João Paulo II, em 1978. A sua Igreja polaca era caracterizada pela oposição ao mundo exterior e aos seus líderes desde que os nazis e os comunistas dividiram o país em 1939. João Paulo II era um homem impressionante, dotado de uma tremenda energia e força de vontade. Era também profundamente conservador em questões de moralidade sexual e, enquanto cardeal, tinha apresentado a justificação intelectual para a proibição do controlo de natalidade. Desde o momento da sua eleição que começou a moldar a Igreja à sua imagem. Mesmo que não conseguisse imprimir-lhe o seu dinamismo e vontade, parecia que iria conseguir purgá-la da extroversão e uma vez mais estancar as correntes do mundo secular.
Ross Douthat, jornalista católico, foi das poucas pessoas do lado dos introvertidos a disponibilizarem-se a falar abertamente sobre o conflito atual. Na sua juventude foi um dos convertidos atraídos para a Igreja de João Paulo II. Afirma hoje que “a Igreja pode ser uma barafunda, mas o importante é que o centro seja sólido e tudo pode ser reconstruído a partir do centro. Ser católico é ter a garantia da continuidade no centro e com isso a esperança do restabelecimento da ordem católica”.
João Paulo II teve o cuidado de nunca repudiar as palavras do Vaticano II, mas fez o possível para as esvaziar do seu espírito extrovertido. Começou por impor uma disciplina férrea ao clero e aos teólogos. Tentou também tornar o mais difícil possível a renúncia dos padres para poderem casar. A sua aliada nesse objetivo foi a Congregação para a Doutrina da Fé, ou CDF, antes conhecida como o Santo Ofício. Institucionalmente, a CDF é a mais introvertida de todos os “ministérios” do Vaticano (ou “dicastérios”, como são conhecidos desde o tempo do Império Romano; é um detalhe que sugere o peso da inércia e da experiência institucional — se o nome era bom para Constantino, porquê mudá-lo?).
Para a CDF, é axiomático que o papel da Igreja é ensinar o mundo, não aprender com ele. Tem uma longa tradição de punir teólogos que discordam: houve casos de proibição de publicações e de despedimentos de universidades.
Ainda no início do pontificado de João Paulo II, a CDF publicou Donum Veritatis (“O Dom da Verdade”), documento que explica que todos os católicos devem praticar a “submissão da vontade e do intelecto” aos ensinamentos do Papa, mesmo que não sejam infalíveis; e que os teólogos, mesmo que possam estar em desacordo e manifestá-lo aos seus superiores, nunca o devem fazer em público. Estas palavras foram usadas como ameaça, às vezes até como arma, contra qualquer pessoa suspeita de dissidência liberal. Francisco, contudo, virou estes poderes contra os que tinham sido os seus maiores defensores. Os padres, os bispos e até os cardeais estão ao serviço do Papa e podem ser demitidos a qualquer momento. Sob Francisco, os conservadores aprenderam essa lição: pelo menos três teólogos foram demitidos da CDF. Os jesuítas exigem disciplina.
Em 2013, pouco tempo após a sua eleição e quando estava ainda num estado de quase universal aclamação pela ousadia e simplicidade dos seus gestos — tinha-se mudado para um par de singelos quartos no Vaticano, por oposição aos sumptuosos apartamentos do Estado usado pelos seus antecessores —, Francisco expurgou uma pequena ordem religiosa que se devotava à prática da missa tridentina, dita em latim.
Os Frades Franciscanos da Imaculada, grupo com cerca de 600 membros, homens e mulheres, já tinham sido colocados sob investigação por uma comissão em Junho de 2012, no papado de Bento XVI. Eram acusados de combinar uma cada vez mais extremista política de direita com a devoção à missa tridentina. (Esta combinação, que surge frequentemente associada a declarações de ódio ao “liberalismo”, tinha vindo também a espalhar-se online nos EUA e no Reino Unido, como é exemplo o blog do Daily Telegraph Holy Smoke, editado por Damian Thompson.)
Quando a comissão apresentou as suas descobertas em 2013, a reação de Francisco chocou os conservadores. Proibiu os frades de usarem a missa tridentina em público e fechou o seu seminário. Continuaram a poder formar novos padres, mas não segregados do resto da igreja. Mais, tomou estas decisões diretamente, sem passar pelo sistema judicial interno do Vaticano, à altura dirigido pelo cardeal Burke. No ano seguinte, Francisco demitiu Burke do seu poderoso cargo no sistema judicial do Vaticano. Nesse momento, ganhou um inimigo implacável.
Burke, um americano robusto dado a vestes bordadas a renda e, em ocasiões formais, a uma capa de cerimónias escarlate tão comprida que precisa de ser carregada por pajens, era um dos mais conspícuos reacionários do Vaticano. Em modos e em doutrina, representa uma longa tradição de pesos-pesados americanos do poder do catolicismo de etnia branca. A hierática, patriarcal e conflituosa igreja da missa tridentina é o seu ideal, e ao qual parecia que a Igreja estava lentamente a voltar sob o comando de João Paulo II e Bento VXI — até que Francisco começou o seu trabalho.
A combinação de anticomunismo, orgulho étnico e ódio ao feminismo do cardeal Burke inspirou uma série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos
A combinação de anticomunismo, orgulho étnico e ódio ao feminismo do cardeal Burke inspirou uma série de proeminentes figuras laicas de direita nos Estados Unidos, de Pat Buchanan a Bill O’Reilly e a Steve Bannon, como Michael Novak, que têm batalhado incansavelmente a favor das guerras americanas no Médio Oriente e da perspectiva republicana sobre os mercados livres.
Foi o cardeal Burke quem em 2014 convidou Bannon, já na altura a mente por trás do Breitbart News, a dirigir-se a uma conferência no Vaticano via vídeo emitido na Califórnia. O discurso de Bannon foi apocalíptico, incoerente e historicamente excêntrico. Mas não foi inocente o seu chamamento para uma guerra santa: a Segunda Guerra Mundial, afirmou, foi na realidade “o Ocidente judeu-cristão contra os ateus” e agora a civilização está “nas etapas iniciais de uma guerra global contra o fascismo islâmico… um conflito brutal e sangrento… que irá erradicar completamente tudo o que nos foi legado nos últimos 2000, 2500 anos… se as pessoas nesta sala, as pessoas da Igreja, não… lutarem pelas nossas crenças, contra esta nova barbaridade que está a surgir”.
Tudo nesse discurso é um anátema para Francisco. A sua primeira visita oficial fora de Roma, em 2013, foi à ilha de Lampedusa, que se tinha tornado o ponto de chegada de dezenas de milhares de desesperados migrantes vindos do Norte de África. Como ambos os seus antecessores, opõe-se firmemente às guerras no Médio Oriente, embora o Vaticano tenha apoiado relutantemente a extirpação do califado do Estado Islâmico. Opõe-se à pena de morte e despreza e condena o capitalismo americano: depois de marcar o seu apoio aos migrantes e aos homossexuais, a primeira grande declaração política do seu pontificado foi uma encíclica, dirigida a toda a Igreja, que condenava ferozmente o funcionamento dos mercados globais.
“Algumas pessoas continuam a defender teorias ‘conta-gotas’ [trickle-down, no original], que assumem que o crescimento econômico, encorajado por um mercado livre, irá inevitavelmente resultar em maior justiça e inclusividade pelo mundo. Tal crença, que nunca foi sustentada pelos factos, exprime uma confiança arrogante e ingênua na bondade dos que exercem o poder econômico e no funcionamento sacralizado do sistema econômico prevalente. Entretanto, os excluídos continuam à espera.”
Acima de tudo, Francisco está do lado dos imigrantes — ou emigrantes, como ele os vê — expulsos de suas casas por um capitalismo infinitamente voraz e destrutivo, que pôs em marcha mudanças climáticas catastróficas. Nos Estados Unidos, esta é uma questão racializada e profundamente politizada. Os evangélicos que votaram em Donald Trump e no seu muro são esmagadoramente brancos, tal como as lideranças da Igreja Católica americana. Mas cerca de um terço dos laicos são hispânicos, proporção que está a aumentar. Em Setembro, Bannon afirmou, em entrevista ao 60 Minutes da CBS, que os bispos americanos eram favoráveis à imigração em massa apenas porque isso ajuda as suas congregações — embora isso vá mais longe do que até os bispos mais à direita seriam capazes de dizer publicamente.
Quando Trump anunciou pela primeira vez que iria construir um muro para impedir a entrada de imigrantes, Francisco esteve muito perto de negar que o então candidato pudesse ser cristão. Na visão de Francisco sobre as ameaças à família, os lavabos transgêneros não são o problema mais urgente, como alguns ativistas “guerreiros” culturais querem fazer crer. O que destrói as famílias, escreveu, é um sistema econômico que força milhões de famílias pobres a separarem-se na sua busca por trabalho.
Além de lidar com os praticantes da velha escola da missa tridentina em latim, Francisco deu início a uma ampla ofensiva contra a velha guarda no interior do Vaticano. Cinco dias após a sua eleição em 2013, convocou o cardeal hondurenho Óscar Rodríguez Maradiaga e comunicou-lhe que iria ser coordenador de um grupo de nove cardeais espalhados pelo globo cuja missão era limpar a casa. Foram todos escolhidos pela sua energia e pelo facto de terem estado, no passado, em conflito com o Vaticano. Foi uma medida popular em todo o lado, menos em Roma.
João Paulo II passou a última década da sua vida cada vez mais incapacitado pela doença de Parkinson, e a energia que lhe restava não era gasta em querelas burocráticas. A Cúria, nome por que é conhecida a organização burocrática do Vaticano, foi ganhando cada vez mais poder, estagnada e corrupta. Muito poucas medidas foram tomadas contra os bispos que protegeram os clérigos que abusaram de crianças. O Banco do Vaticano era tristemente célebre pelos serviços que oferecia para lavagem de dinheiro. Os processos de canonização — algo que João Paulo II fez a um ritmo sem precedentes — tinham-se tornado uma fraude extremamente cara: o jornalista italiano Gianluigi Nuzzi estimou que o preço de tabela de uma canonização andaria à volta dos 500 mil euros por auréola. As finanças do próprio Vaticano estavam uma desgraça e até Francisco fez referência a “uma torrente de corrupção” na Cúria.
O estado pútrido da Cúria era bem conhecido, mas nunca discutido em público. Ao fim de nove meses no cargo, Francisco disse a um grupo de freiras que “na Cúria também há pessoas virtuosas, a sério, há lá pessoas santas” — de tal maneira assumia que a sua audiência de freiras ficaria surpreendida por saber disso.
Afirmou que a Cúria “toma conta e cuida dos interesses do Vaticano, que são, na sua maior parte, interesses temporais. A visão ‘vaticanocêntrica’ negligencia o mundo à nossa volta. Eu não partilho dessa visão, e farei tudo o que estiver ao meu alcance para a mudar”. Declarou ainda ao jornal italiano La Repubblica: “Várias vezes os chefes da Igreja foram narcisistas, lisonjeados e empolgados pelos seus cortesãos. A corte é a lepra do papado.”
“O Papa nunca falou bem dos padres”, diz o padre que mal pode esperar que ele morra. “É um jesuíta anticlerical. Lembro-me bem dessas ideias nos anos 70. Costumavam dizer: ‘Não me chames padre, chama-me Manuel’ — esse tipo de parvoíces — e nós, o oprimido clero paroquial, sentimos que nos tiraram o chão.”
Em Dezembro de 2015, Francisco fez o seu tradicional discurso de Natal à Cúria e não poupou nas palavras: acusou-a de arrogância, de “Alzheimer espiritual”, de “hipocrisia típica dos medíocres e progressivo vazio espiritual que não pode ser preenchido com diplomas acadêmicos”, bem como de vão materialismo e gosto pela bisbilhotice e maldizer — não é o tipo de coisa que se quer ouvir do chefe na festa de Natal da empresa.
Contudo, quatro anos decorridos sobre o início do seu papado, a resistência passiva do Vaticano parece estar a levar a melhor sobre a energia de Francisco. Em Fevereiro deste ano, apareceram da noite para o dia, nas ruas de Roma, posters que perguntavam: “Francisco, onde está a tua misericórdia?”, atacando-o pela maneira como tratou o cardeal Burke. Este episódio só pode ter sido obra de elementos descontentes do Vaticano, e é um sinal inequívoco de uma teimosa recusa em entregar poderes ou privilégios aos reformistas.
Esta batalha, porém, tem sido ofuscada, assim como todas as outras, pelos conflitos internos sobre a moralidade sexual. A luta sobre o divórcio e o recasamento centra-se em dois fatos. Primeiro, que a doutrina da Igreja Católica não mudou em quase 2.000 anos – o casamento é indissolúvel pela vida toda; isso é muito claro. Assim como o segundo fato: As taxas de pessoas que se divorciam ou casam novamente entre os católicos são as mesmas do restante da população, e quando isso acontece, eles não veem nada imperdoável em suas ações. Portanto, as igrejas do mundo ocidental estão cheias de casais divorciados e que se casaram novamente que recebem a comunhão com os outros, mesmo que eles e seus sacerdotes saibam perfeitamente que isso não é aceitável.
Os ricos e poderosos sempre exploraram as lacunas. Quando querem se livrar de uma mulher e casar novamente, um bom advogado encontra uma forma de provar que o primeiro casamento foi um erro, não algo que tenha entrado no espírito que a Igreja exige, para que seu registro possa ser limpo – no jargão, anulado. Isto se aplica especialmente para os conservadores: Steve Bannon conseguiu se divorciar das suas três esposas, mas talvez o exemplo atual mais escandaloso seja o de Newt Gingrich, que liderou a aquisição republicana do Congresso na década de 90 e desde então reinventou-se como aliado de Trump. Gingrich terminou com sua primeira esposa enquanto ela se tratava para um câncer e, ainda casado com sua segunda esposa, teve um caso de oito anos com Callista Bisek, devota católica, antes de se casar com ela na Igreja. Ela está prestes a assumir o cargo de embaixadora de Donald Trump no Vaticano.
O ensino sobre casar-se novamente após um divórcio não é o único ensino sexual católico que nega a realidade dos leigos, mas é o mais prejudicial. A proibição da contracepção artificial é ignorada por todos onde quer que seja legal. A hostilidade aos gays é comprometida pelo fato geralmente conhecido de que uma grande proporção do sacerdócio no Ocidente é gay, e alguns deles são bem ajustados celibatários. A rejeição do aborto não é um problema onde o aborto é legal, e, em todos os casos, não é particular à Igreja Católica. Mas a recusa em reconhecer segundos casamentos, a menos que o casal prometa nunca mais fazer sexo, destaca os absurdos de uma casta de homens celibatários que regulam a vida das mulheres.
Em 2015 e 2016, Francisco convocou duas grandes conferências ou sínodos de bispos de todo o mundo para discutir tudo isso. Ele sabia que não podia operar mudanças sem amplo acordo. Ele manteve-se em silêncio e encorajou os bispos a discutir. Mas logo ficou claro que favoreceu um considerável afrouxamento da disciplina em torno da comunhão, após um novo casamento. Como isso é o que se passa na prática de qualquer forma, é difícil para alguém de fora entender as paixões que desperta.
"O que me preocupa é a teoria", disse o padre inglês que confessou seu ódio por Francisco. "Na minha paróquia há muitos casais divorciados e recasados, mas muitos deles, se ouvissem que o primeiro cônjuge havia morrido, correriam para casar na igreja. Conheço muitos homossexuais que estão fazendo todo tipo de coisa errada, mas que sabem que não devem fazer. Somos todos pecadores. Mas temos que manter a integridade intelectual da fé católica".
Pensando assim, o fato de que o mundo rejeita seu ensino meramente prova o quão correto é. "A Igreja Católica deveria ser contracultural na esteira da revolução sexual", diz Ross Douthat. "A Igreja Católica é o último lugar do mundo ocidental que diz que o divórcio é ruim."
Para Francisco e seus apoiadores, tudo isso é irrelevante. A Igreja, afirma, deveria ser um hospital ou um posto de primeiros-socorros. As pessoas que estão divorciadas não precisam que alguém lhes diga que isso é ruim. Precisam recuperar e reconstruir suas vidas novamente. A Igreja deve ficar ao seu lado e demonstrar piedade.
No primeiro Sínodo dos Bispos em 2014, essa ainda era uma opinião minoritária. Um documento liberal estava preparado, mas foi rejeitado pela maioria. Um ano depois, os conservadores estavam claramente em minoria, mas uma minoria muito determinada. O próprio Francisco escreveu um resumo das deliberações de A Alegria do Amor. É um documento longo, reflexivo e cuidadosamente ambíguo. A dinamite é enterrada na nota de rodapé 351 do capítulo oito e teve grande importância nas revoluções subsequentes.
A nota de rodapé faz um adendo a uma passagem que vale a pena citar tanto pelo que diz como pela forma com que diz. Sua mensagem é clara: algumas pessoas vivendo segundos casamentos (ou parcerias civis) "podem viver na graça de Deus, podem amar e podem também crescer na vida de graça e de caridade, recebendo para isso a ajuda da Igreja".
Mesmo a nota de rodapé, que diz que esses casais podem receber a comunhão se confessarem seus pecados, aborda o assunto com cautela: "Em certos casos, isso pode incluir a ajuda dos sacramentos." Portanto, "quero lembrar os sacerdotes que o confessionário não pode ser uma câmara de tortura, mas um encontro com a misericórdia do Senhor." E: "Gostaria também de salientar que a Eucaristia 'não é um prêmio para a perfeição, mas um poderoso remédio e alimento para os fracos'."
"Por pensar que tudo é preto ou branco", acrescenta Francisco, "às vezes fechamos o caminho da graça e do crescimento".
É esta pequena passagem que uniu todas as rebeliões contra sua autoridade. Ninguém consultou os leigos para sabem sua opinião sobre isso, que em caso algum foi de interesse para o partido introvertido. Mas entre um quarto e um terço dos bispos resiste passivamente à mudança, e uma pequena minoria está fazendo isso de forma ativa.
O líder dessa facção é o grande inimigo de Francisco, o Cardeal Burke. Demitido primeiro do cargo no Tribunal do Vaticano e depois da comissão de liturgia, ele acabou no conselho de fiscalização dos Cavaleiros de Malta – um órgão de caridade dirigido pelas velhas aristocracias católicas da Europa. No outono de 2016, despediu o líder da ordem por supostamente permitir que freiras distribuíssem preservativos na Birmânia. Isso é algo que as freiras fazem muito no mundo em desenvolvimento, para proteger as mulheres vulneráveis. O homem que havia sido demitido apelou ao Papa.
O resultado foi que Francisco reintegrou o homem que Burke tinha demitido e nomeou outra pessoa para assumir a maioria das funções de Burke. Foi um castigo por suas afirmações completamente falsas de que o Papa estava do seu lado no conflito original.
Enquanto isso, Burke utilizou-se de outras frentes, que chegaram o mais próximo que conseguiu de acusar o Papa de heresia. Juntamente com três outros cardeais, dois dos quais já morreram, Burke produziu uma lista de cinco questões destinadas a verificar se Amoris Laetitia violava o ensino anterior ou não. As questões foram enviadas como uma carta formal para Francisco, que ignorou. Depois de ser demitido, Burke divulgou as questões e disse que estava preparado para emitir uma declaração formal de que o Papa era um herege se ele não as respondesse, para satisfazê-lo.
Claro, Amoris Laetitia representa uma ruptura com o ensino anterior. É um exemplo da Igreja ter aprendido com a experiência. Mas é difícil os conservadores assimilarem: historicamente, estas explosões de aprendizagem só aconteceram em convulsões, a séculos de distância. Essa chegou apenas 60 anos após a última explosão de extroversão, com o Concílio Vaticano II, e somente 16 anos depois de João Paulo II ter reiterado a velha linha dura.
"O que significa um papa contradizer um papa anterior?", pergunta Douthat. "É notável o quão perto Francisco chegou de discutir com seus predecessores imediatos. Foi apenas há 30 anos que João Paulo II previu no Veritatis Splendor uma linha que parece contradizer Amoris Laetitia."
O Papa Francisco está deliberadamente contradizendo um homem que ele mesmo proclamou santo. Isso dificilmente vai incomodá-lo. Talvez a mortalidade incomode. Quanto mais Francisco altera a linha de seus predecessores, mais fácil fica para que um sucessor reverta a sua. Embora a doutrina católica sofra alterações, depende de sua força a ilusão de que não. Os pés podem estar dançando sob a batina, mas o manto pode nunca se mover. No entanto, isso também significa que mudanças que haviam ocorrido podem ser revertidas sem qualquer movimento oficial. É assim que João Paulo II atingiu o Vaticano II.
Para garantir que as mudanças de Francisco vão perdurar, a Igreja tem que aceitá-las. Essa é uma pergunta que não será respondida em sua vida. Ele tem 80 anos e só tem um pulmão. Seus adversários podem ser rezando por sua morte, mas ninguém sabe se seu sucessor tentará contradizê-lo – e dessa questão depende o futuro da Igreja Católica.
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A guerra contra o Papa Francisco - Instituto Humanitas Unisinos - IHU