10 Novembro 2017
Em relação às armas nucleares, o pensamento católico afasta-se de uma aceitação condicional da política de dissuasão e direciona-se a uma chamada urgente pelo desarmamento nuclear. Esse movimento será destacado no encontro do Papa Francisco com ganhadores do Prêmio Nobel da Paz neste fim de semana no Vaticano.
A reportagem é de James Dearie, publicada por National Catholic Reporter, 09-11-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral do Vaticano vai sediar uma conferência intitulada "Prospects for a World Free from Nuclear Weapons and for Integral Disarmament” (Perspectivas para um mundo livre de armas nucleares e para o desarmamento integral), nos dias 10 e 11 de novembro. Além dos Prêmio Nobel, vão participar "grandes autoridades das Nações Unidas e da OTAN, especialistas, líderes de grandes fundações e organizações da sociedade civil, bem como representantes das conferências episcopais, denominações cristãs e outras religiões", de acordo com a Rádio do Vaticano.
A conferência vem em um momento em que as tensões entre os Estados Unidos e a Coreia do Norte têm gerado mais preocupação sobre o possível conflito nuclear em décadas.
A igreja já reconheceu uma "aceitação da dissuasão estritamente condicionada à moral” quando os bispos dos Estados Unidos afirmaram, em uma carta pastoral de maio de 1983, "O desafio da paz", mas declarações do Papa e de outros intelectuais católicos e autoridades indicam que pode ser hora de uma mudança na política.
“A Igreja tolerou a dissuasão baseando-se no fato de que seria um passo para o desarmamento", disse ao NCR o Stephen Colecchi, diretor do Escritório de Justiça e Paz Internacional da Conferência dos Bispos Católicos dos EUA, observando que o progresso das potências nucleares tem sido demasiado lento nos últimos anos. "Eles estão planejando a modernização das armas nucleares. Não se moderniza um sistema de armas se há a pretensão de desarmar. Portanto, acho que na realidade a pequena dissuasão que existe é moral".
Em "O desafio da paz", os bispos descrevem as armas nucleares como "um poder que nunca deve ser usado", mas reconhecem que o mundo da Guerra Fria foi uma época precária em que a posse de armas tornou-se necessária para a segurança em alguns casos, ecoando a mensagem do Papa João Paulo II para a Assembleia Geral da ONU, em junho de 1982.
"Na atual conjuntura, a 'dissuasão' baseada no equilíbrio, certamente não como um fim em si mesma, mas como um passo a caminho de um desarmamento progressivo, ainda pode ser considerada moralmente aceitável", disse o Papa.
"Lembre-se, [João Paulo II] vinha da Polônia e a Polônia ainda [estava] sob domínio soviético", afirmou Drew Christiansen, reconhecido professor de ética e desenvolvimento humano global na Universidade de Georgetown e pesquisador do Berkley Center for Religion Ethics and World Affairs. "Ele preocupava-se que o ocidente não enfraquecesse ante a ameaça soviética naquela altura".
No entanto, tal aceitação veio com ressalvas. Como tinha dito João Paulo II, "para assegurar a paz, é indispensável não se satisfazer com o mínimo [uma política de dissuasão], que está sempre suscetível ao perigo real de explosão".
"Foi parte da dissuasão não buscar a superioridade nas armas nucleares", afirma, "mas sim buscar o equilíbrio e trabalhar pelo desarmamento. Deveria ser um passo rumo ao desarmamento... a dissuasão, mesmo em 1983, nunca foi considerada uma estratégia de paz adequada em longo prazo".
Christiansen diz que, nas últimas décadas, "a Santa Sé começou a sinalizar que a dissuasão não é uma razão forte o suficiente para manter armas nucleares".
O Papa Francisco começou a sugerir que se distanciasse do apoio à política de dissuasão numa palestra da conferência da ONU para começar a elaborar o Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares. "Até que ponto é sustentável uma estabilidade baseada no medo, quando na verdade aumenta o medo e prejudica as relações de confiança entre os povos?", perguntou o Papa na conferência, em março.
"Precisamos ir além da dissuasão nuclear", acrescentou. "A comunidade internacional é chamada a adotar estratégias prospectivas para promover o objetivo da paz e da estabilidade e evitar abordagens míopes para os problemas que envolvem a segurança nacional e internacional".
O objetivo do desarmamento nuclear já foi adotado pelos líderes estadunidenses antes. O presidente Ronald Reagan, no início de seu segundo mandato, parecia muito alinhado com o pensamento da Igreja. "Só há uma maneira de reduzir os custos da segurança nacional de maneira segura e legítima: reduzir a necessidade de segurança. ... Nosso objetivo é que um dia eliminem-se totalmente as armas nucleares da face da Terra", disse, no segundo discurso de posse.
Reagan e o presidente soviético Mikhail Gorbachev passaram a última parte da carreira política trabalhando pela redução de armas nucleares, com muito sucesso.
Embora os EUA e a Rússia juntos ainda possuam mais de 90% das armas nucleares do mundo, os estoques dos dois diminuíram, indo de um pico de mais de 60.000 armas em meados da década de 80 para menos de 15.000 hoje.
Em um discurso de 2009, em Praga, o Presidente Obama declarou “clara e veementemente que os Estados Unidos estavam comprometidos com a busca pela paz e pela segurança de um mundo sem armas nucleares". Depois, o presidente ganhou o Nobel da Paz, em grande parte por esse discurso. Porém, os esforços de desarmamento subsequentes tiveram resultados desapontadores.
"Em seus primeiros anos, o governo Obama conseguiu algum desarmamento, mas em seguida esse impulso começou a desacelerar", diz Christiansen. "E foi aí que a Santa Sé e outros começaram a ficar muito preocupados".
O Presidente Donald Trump tem sinalizado uma vontade de revisitar as etapas dos Estados Unidos em relação ao desarmamento. Após detonar o atual tratado nuclear com a Rússia durante a campanha de 2016, Trump teria dito ao presidente russo Vladimir Putin que estendê-lo era ruim para os Estados Unidos quando Putin levantou essa possibilidade.
Os bispos estadunidenses continuaram pressionando as potências nucleares do mundo para continuar a “elaborar o novo Tratado START [o tratado nuclear dos EUA com a Rússia] e suas robustas medidas de verificação para reduzir ainda mais o número de armas", como declarou o bispo Oscar Cantú, presidente da comissão da qual Colecchi é líder, em uma carta ao Secretário de Estado estadunidense Rex Tillerson.
"Solicitamos compromissos ousados e concretos para acelerar o desarmamento nuclear verificável", acrescentou Cantú.
Maryann Cusimano Love, professora de Relações Internacionais na Universidade Católica da América, disse ao NCR que "a Igreja é contra as armas nucleares desde antes de elas existirem. Historicamente, a Igreja tem um importante papel na tentativa de chamar a atenção para questões relativas a armas nucleares e caminhar rumo a soluções pacíficas [e] continua fazendo isso por meio desta conferência".
A ameaça de guerra nuclear não é a única razão por que a Igreja tem levantado preocupações a respeito de arsenais nucleares. Aconteceram milhares de testes nucleares desde o bombardeio de Hiroshima e Nagasaki, "que causaram impactos humanitários, ambientais e de saúde pública que permanecem até hoje", relata.
A possibilidade de terroristas adquirirem armas nucleares também torna o desarmamento mais urgente do que nunca. "A dissuasão não detém os terroristas; eles não têm nenhum território para defender”, diz Colecchi. "Seu objetivo é criar instabilidade, medo e terror. Reduzir o número de armas nucleares no mundo... é um caminho muito melhor para a segurança no futuro".
Colecchi ainda acrescentou que o caminho para o desarmamento é claro e que os Estados Unidos e a Rússia devem começar a encerrar seus programas nucleares e a encorajar as outras potências nucleares menores a fazerem o mesmo. "Isso precisa ser feito com cuidado; mas precisa ser feito depressa," diz. "Porque o tempo da dissuasão nuclear moralmente aceitável está se esgotando."
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A Igreja e a mudança para o urgente desarmamento nuclear - Instituto Humanitas Unisinos - IHU