14 Outubro 2015
Sem Francisco, o nosso mundo e a nossa modernidade seriam extremamente mais pobres. Para todos, incluindo os não crentes.
Publicamos aqui a segunda parte do editorial de Eugenio Scalfari, jornalista e fundador do jornal italiano La Repubblica, 11-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Nas páginas do nosso jornal hoje há textos aprofundados sobre os vários aspectos da situação no Oriente Médio [...]. Portanto, não tenho nada a acrescentar, exceto uma consideração sobre os protagonistas dessa história que envolve o mundo inteiro por causa das suas repercussões não apenas políticas, mas também sociais e econômicas, sobre as matérias-primas, sobre os fluxos migratórios, sobre as religiões.
Pois bem, examinando todos esses entrelaçamentos de interesses, valores, fés religiosas, fundamentalismos, cobiças por poder, mas também desejos de liberdade, de igualdade, de direitos, de solidariedade, parece-me que os protagonistas são três: Obama, Putin e o Papa Francisco.
Obama
O presidente dos EUA tem um objetivo em mente: em um mundo multipolar, ele quer que os EUA indique qual é a música a ser tocada e o seu ritmo, e são os EUA o regente da orquestra que coordena os vários instrumentos.
É claro que os instrumentos são diferentes entre si, alguns mais importantes do que outros, e há espaço também para os solistas de importância tal a ponto de serem equiparados ao regente da orquestra, mas é sempre ele que dá o início até mesmo ao solista e que guia, com a sua baqueta, o grand finale. Essa é a função que Obama dá aos EUA, e a missão confiada é a da pacificação, do progresso civil e, obviamente, do papel norte-americano.
Putin
Putin está consciente de que dirigir a orquestra inteira e escolher o texto a ser tocado não é tarefa sua. Até mesmo nos tempos da URSS e do mundo dividido em dois por ideologias contrapostas, o império norte-americano era muito maior do que o soviético, que não podia fazer bloco nem mesmo com o Estado comunista chinês.
Putin não tem mais uma ideologia para ser usada como instrumento político, nem uma economia poderosa que o sustente; ao contrário, ele versa em condições econômicas extremamente agitadas. Ele não tem nem uma força militar importante como a que os EUA seriam capazes de preparar em caso de necessidade. No entanto, ele joga com coragem e com grande habilidade a sua partida na Europa e no Oriente Médio.
Na Europa, ele quer cercar as suas fronteiras com um cinturão de Estados neutros, que corresponde mais ou menos aos dominados (com dificuldade) pela URSS. O caso ucraniano é o mais significativo, mas não é o único.
No Oriente Médio, o "czar" quer poder se assomar às margens mediterrâneas e ter voz econômica e política também no tabuleiro. A Crimeia era fundamental para a presença russa no Mar Negro, mas o Mediterrâneo é ainda mais importante por razões óbvias, e a presença dos russos na Síria é motivada principalmente por esse objetivo: equipar no Mediterrâneo uma base que não seja apenas – como já é – um porto de ancoragem, mas uma presença econômica do tipo daquelas que, no Renascimento, as bases comerciais das repúblicas marinhas italianas e de Veneza, em particular, tiveram.
É isso que Putin quer, e ele sabe, no entanto, que pode estipular um acordo com os EUA e com Obama, em particular, porque não é óbvio que aquele que vai sucedê-lo em um ano vai conceder à Rússia o papel de ator coadjuvante que Obama, embora tentando limitá-lo, ainda está disposto a lhe reconhecer. O acordo entre os dois será alcançado nos próximos dias, e certamente a posição de Assad, que de fato representa um ponto de passagem de uma mediação mais do que nunca necessária, não será um obstáculo.
Papa Francisco
O terceiro protagonista, o Papa Francisco, move-se em dimensões completamente diferentes, não políticas, mas religiosas. A sua visão religiosa, porém, é tão revolucionária que exerce efeitos políticos relevantes dos quais Francisco está perfeitamente consciente.
A declaração – o cerne da pregação papal – de que Deus é único em todo o mundo, embora seja descrito e conjugado pelas várias confissões através das sagradas escrituras diferentes entre si, é um ponto fundamental com consequências políticas extremamente importantes.
O Deus único exclui todo fundamentalismo e, ao contrário, aponta para um Deus próprio e o contrapõe ao dos outros. O terrorismo do califado muçulmano com os seus camicazes que sacrificam as suas jovens vidas a fim de matar outras é uma monstruosa derivação do fundamentalismo do qual o Deus único de Francisco é a mais absoluta negação.
Na sua visão moderna da Igreja, o papa também exerce muitos outros efeitos positivos sobre a orientação política dos povos e das suas classes dirigentes, mas o principal para todos os efeitos é justamente a religião do Deus único. A plateia de Francisco é o mundo inteiro, mas especialmente a América do Sul, a África, o Oriente Médio, as ilhas da Indonésia, a Polinésia, as Filipinas. Índia e China são continentes mais remotos em relação a um papa cristão que, de fato, também estende a mão para esses Estados continentais. Ele já pôs os pés na Índia meridional, entrando em contacto com milhões de pessoas.
Sem Francisco, no entanto, o nosso mundo e a nossa modernidade seriam extremamente mais pobres. Para todos, incluindo os não crentes. Ele, mesmo sendo portador da fé que o possui inteiramente, é o papa mais secular da história cristã. Ele sabe disso e não se lamenta disso. Uma massa de crentes também é secular, porque é consciente do livre arbítrio e o usa com responsabilidade, assim como, do mesmo modo, o secular não crente o usa.
Infelizmente, também acontece que crentes e não crentes usam o livre arbítrio da pior maneira possível. Temos diante dos olhos os exemplos mais hediondos ou mais estúpidos disso, e, francamente, eu não saberia dizer qual dos dois exemplos é o mais difícil de se combater e de suportar.
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Os protagonistas da história hoje: Obama, Putin e Francisco. Artigo de Eugenio Scalfari - Instituto Humanitas Unisinos - IHU