09 Novembro 2017
Publicamos aqui o texto da conferência proferida por Raniero La Valle, jornalista e ex-senador italiano pelo Partido Comunista Italiano, no dia 25 de agosto de 2017, em Assis, no congresso sobre o tema “Como dar futuro à virada profética de Francisco”.
O artigo foi publicado no blog pessoal de La Valle, 08-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"O artigo é composto por cinco teses, uma conclusão e um apêndice mais dramático", segundo o autor.
O Deus que surpreende é o Deus anunciado pelo Papa Francisco. Ainda na quarta-feira passada, na sua catequese, o papa falou do Deus que cria novidade, porque é o Deus das surpresas. Certamente, não é esse o único Deus em circulação. Há o Deus pregado por inércia por toda a Igreja, o Deus pregado na Igreja italiana. Mas não é um Deus que surpreende, não desperta maravilha, é o Deus que jaz no Catecismo, que, há muito tempo, não desperta mais ninguém.
Depois, há o estereótipo do Deus demiurgo, todo-poderoso, depositado na cultura comum, compartilhado seja por aqueles que o afirmam, seja por aqueles que o negam, seja por aqueles que o ignoram.
O Deus que irrompe na Igreja de Francisco é diferente. Em um mundo curvado e exposto às piores surpresas, ninguém pensava que pudesse haver uma surpresa por parte de Deus. Ou, pelo menos, não se pensava mais nisso, desde que o Concílio foi calado. Por isso, a Igreja tinha se tornado tão tétrica, e a fé estava indo embora como a água do balde de uma fonte ressecada.
Mas eis que, há quatro anos, apareceu um Deus que surpreende. Para o mundo, foi um resplendor repentino, uma extraordinária novidade; para os arqueólogos do sagrado, em vez disso, foi uma surpresa ingrata, um incidente imprevisto, uma ruptura nos regulamentos. Por isso, os mais papistas do que o papa se tornaram, justamente eles, antipapistas.
Isso explica a solidão institucional do Papa Francisco e a hostilidade com a qual ele é combatido, e é por isso, porque queremos ficar ao seu lado, que estamos reunidos aqui em Assis.
Não é a primeira vez que Deus nos surpreende, que há o impacto com um Deus como antes não se havia pensado. Portanto, acima de tudo, devemos fazer um esforço de memória, para não esquecer que há uma história atrás de nós.
Então, no princípio, há o Deus que surpreende Adão no ato mesmo de criá-lo, colocando ao seu lado a mulher, depois que ele a sonhara, como diz Francisco, e ambos fazendo-os à sua imagem, ou seja, dando-lhes o dom da liberdade, a responsabilidade de escolha entre o bem e o mal.
Depois, há o Deus que surpreende Noé, salvando-o com os filhos e todos os animais, desde o menor até o maior, mas salvando também a terra que nunca mais, em virtude da sua aliança, como prometeu, será devastada pelo dilúvio, isto é, não será destruída, mas sobre a qual, ao homem, se pedirá contas do sangue do homem.
Depois, há o Deus que surpreende Abraão, prometendo-lhe um filho e um povo; mas depois salva a sua própria promessa, rompendo a ideologia sacrificial de Abraão e tirando das suas mãos o filho já preparado para ser oferecido em holocausto no Monte Moriá.
Depois, há o Deus que surpreende Moisés, fazendo-o levar o povo com os pés secos para fora do Egito e caminhando com ele por 40 anos no deserto; certamente, a Páscoa foi uma bela surpresa, que, não por acaso, é recordada ao longo dos séculos.
Depois, há o Deus que surpreende Jonas, arrependendo-se do mal que lhe havia feito anunciar a Nínive e, com um golpe de cena, desmente a sua profecia, salvando a grande cidade estrangeira com os 120.000 habitantes e uma grande quantidade de animais.
Depois, há Jesus, que surpreende a todos na sinagoga de Nazaré quando desmonta a profecia de Isaías; de fato, ele confirma a profecia da misericórdia e da graça, mas silencia e abandona a profecia do dia de vingança de Deus, que deveria vir para alegrar os aflitos de Sião. E os judeus nazarenos ficaram tão surpresos e irritados com isso que, já na época, queriam matá-lo.
Depois, há Jesus que surpreende a Samaritana no poço de Jacó, fazendo-se reconhecer como Messias e dizendo-lhe que chegou a hora, e é esta, em que não se adorará nos santuários ou em Jerusalém, mas adorarão o Pai em espírito e verdade.
E depois há o Deus que se revela à Igreja primitiva, que, no hino da Carta aos Filipenses, canta as mais incríveis das surpresas, que Cristo Jesus, embora existindo na forma de Deus, não manteve para si como uma usurpação o ser igual a Deus, mas despojou a si mesmo, assumindo a condição de escravo e fazendo reconhecer como homem, até a morte e morte de cruz.
Por isso, esse é um Deus que nos faz passar de surpresa em surpresa; e, na verdade, a cada uma dessas surpresas corresponde o início de uma fase nova da história da salvação. Muda Deus e muda o mundo, Deus aparece na história como nunca havia aparecido ou como nunca havia sido compreendido antes, e muda a história dos homens.
Como isso pode acontecer, se Deus é sempre o mesmo, e nele não há sombra de variação (Tiago 1, 17)? Acontece porque é inesgotável o conhecimento de Deus, e sempre há um Deus inédito, que espera ser publicado. Sempre há novas edições do único Deus, e, à medida que o Deus inédito torna-se “editado”, os homens progridem no face a face com ele. De edição em edição, não é Deus quem muda, mas, como dizia o Papa João XXIII sobre o Evangelho, somos nós que começamos a compreendê-lo melhor. Deus cresce com o crescer da Palavra que o diz, mas, na realidade, quem cresce, quem muda é a nossa percepção de Deus, a nossa capacidade de acolher a sua oferta de vida. Nova é a edição em que, de um tempo ao outro, ele é conhecido, representado, anunciado e recebido na humanidade e na Igreja.
É por isso que, não só como metáfora, é possível falar de um Deus que surpreende, de um novo anúncio ou de uma nova descoberta de Deus. Aliás, foi precisamente essa a tarefa atribuída pelo Papa João ao Concílio, que nós interpretamos, em vez disso, como um Concílio de reforma da Igreja; a tarefa era de investigar e enunciar o tesouro da fé “daquele modo que os nossos tempos exigem” (ea ratione quam tempora postulant nostra); e essa é a razão mesma do pontificado de Francisco.
Porém, pode-se objetar (e, por isso, os doutores da lei e os escribas estão hoje em pé de guerra) que o ciclo das edições acabou, porque já houve a edição definitiva de Deus, que é a que foi publicada por Jesus. E isso é muito verdade, aqui está toda a nossa fé; aqui, a partir do prólogo do Evangelho de João, está todo o cristianismo, está o seu Filho único que mostrou o Pai, que o deu a conhecer, que o editou, que dele “fez a exegese”.
Mas é verdade aquilo que foi dito por um grande jornalista, Mario Missiroli, que foi diretor do Messaggero e do Corriere della Sera, em uma sentença que se tornou de uso comum: “Não há nada de mais inédito do que o editado”.
Assim também o Deus publicado por Jesus, mesmo depois de 2.000 anos, está em grande parte inédito. E o está desde então, tanto é verdade que, na conclusão dos Evangelhos, João diz que, se colocássemos por escrito todas as coisas manifestadas por Jesus, o mundo inteiro não bastaria para conter os livros que se deveria escrever.
Se isso era verdade no início, também o foi depois; ou, melhor, deve-se dizer que, encerrada a temporada fulgurante dos primeiros quatro grandes Concílios, a Igreja passou por uma atormentada recepção do Deus de Jesus, da Idade Média até o segundo milênio. E não só por tudo o que de Deus havia permanecido inédito, mas também porque o editado foi, pouco a pouco, enterrado e encoberto por glosas que nem sempre contribuíram para tornar o original mais inteligível e fruível.
Por isso, em um certo ponto, um cristianismo apaixonado invocou que não se acrescentassem glosas sobre glosas, mas se retomasse nas mãos o texto editado livre das glosas, sine glossa, como dizia São Francisco. E é justamente a partir desse voltar ao texto original transmitido por Jesus que o inédito emerge e que, de novo, irrompe no mundo o Deus da surpresa, o Deus que fascina.
Na minha opinião, é isso que o Papa Francisco está fazendo, essa é a verdadeira reforma e o carisma do seu pontificado; esse é o porte da sua escolha estratégica de sair do palácio e de viver em Santa Marta para abrir, a cada dia, o Evangelho, trazer novamente à tona o Deus que havia sido obscurecido, publicar uma edição d’Ele não censurada pelos escribas e transmiti-la a todo o povo.
Mas, se é isso que está acontecendo, é legítimo ler o tempo de virada que estamos vivendo como o início de uma nova fase da história da salvação. Aliás, a linguagem secular também diz isso, que hoje estamos não tanto em uma época de mudanças, mas sim em uma mudança de época.
Porém, não se trata apenas de ficar olhando, mas, como dizia o padre Balducci, de “forçar a aurora a nascer”, porque o advento deste tempo novo é uma questão de vida ou de morte. De fato, o mundo não pode continuar assim. Basta ver o cemitério do Mediterrâneo, já vigiado por navios e homens armados, para entender em que ponto estamos.
E isso acontece porque a profecia do padre Balducci não se tornou realidade ou ainda não se tornou realidade. A profecia – ou a esperança – era de que quem tomaria nas mãos essa passagem de época seria um homem novo, o homem planetário, um “homem inédito”, como o escolápio florentino o chamava.
Essa esperança não se realizou, e, ao contrário, o homem já editado, que bem conhecemos, está caindo novamente no obscurantismo, na guerra, nas formas discriminatórias e esmagadoras do passado. As ideologias acabaram ou foram mortas, mas a política está morta, e o Espírito está no exílio.
Por que não apareceu o homem inédito? Porque, antes, devia se manifestar o Deus inédito. O homem é imagem de Deus; não há homem novo, não há homem inédito, se não houver um Deus ainda mais compreendido, um Deus para se assemelhar novamente, um Deus que surpreende.
Mas de que edição de Deus precisamos hoje? Cada edição de Deus corresponde a uma exigência nova, a uma pergunta urgente que irrompe do coração da humanidade ferida, em um dado momento da sua história.
Por exemplo, neste 500º aniversário da Reforma, pudemos revisitar os impulsos que deram origem à iniciativa de Lutero. Falamos a respeito disso também em um colóquio com os protestantes nos últimos dias em Camaldoli. Demo-nos conta de como, hoje, as exigências e os problemas mudaram de tal modo que custamos até a entender o porquê daquele confronto tão duro sobre a doutrina da justificação, que surgiu de uma obsessão antipelagiana e de uma leitura radical de Agostinho e de Paulo.
Aquela edição luterana de Deus, com efeito, respondia ao tormento da cristandade da época, uma vez afirmado que fora da Igreja não há salvação, estava angustiada com o problema de quem e como poderia se salvar, com que obras, ou graças a qual capricho de Deus. E também a questão deles era de vida ou de morte, ou, melhor, de uma morte eterna.
Hoje, a sensibilidade mudou totalmente e, como o Papa Emérito Bento XVI escreveu recentemente, as pessoas não pensam, de fato, em ser justificadas por Deus, mas pensam que é Deus que deve se justificar por todo o mal que permite sobre a Terra. De fato, a pergunta de hoje não é aquela que Heidegger formulou no seu tempo, mas que desatentamente foi ignorada, se apenas um Deus pode nos salvar; a dolorosa pergunta de hoje é se nós podemos nos salvar, quando não temos respostas para o gemido do mundo que nós mesmos desfiguramos, quando não temos nem projeto, nem coração para parar a corrida ao suicídio empreendida pelos chefes dos povos.
E é precisamente nesse buraco negro existencial e político que irrompe a surpresa do Deus da misericórdia. Não é que Deus se tornou misericordioso hoje, mas é que muitas sombras cobriam o seu rosto. E eis que aquele Deus que permanecera inédito para muitos é hoje publicado, enquanto se prefere manter nas prateleiras o “Rex tremendae maiestatis” cantado no “Dies irae”, tenta-se manter na surdina o Deus da vingança invocado por Isaías, obscurece-se o Juiz inapelável dos infernos dantescos e dos condenados da Sistina.
E isso porque, como escreveu o Papa Francisco na bula de convocação do ano da misericórdia, Misericordiae vultus, um Deus que parasse na justiça não seria nem mesmo um Deus. Ou, com respeito a esse Deus, nós somos ateus.
Como Ernst Bloch respondeu a Jürgen Moltmann, que, depois de uma conferência dele, perguntara-lhe perplexo: “Sr. Bloch, o senhor é ateu, não é verdade?”. E Bloch respondeu: sou ateu por amor de Deus.
O Deus editado pelo Papa Francisco é um Deus que “primeireia”, que é sempre primeiro no amor, é um Deus que perdoa sempre; é um Deus que “se troca” com o homem (Paulo) ao carregar o seu pecado e a cruz; é um Deus que não escolhe entre eleitos e não eleitos, mas elege a todos para além de toda religião e cultura, não fica atrás da porta do santuário vigiada pelo guardião, mas sai para ser encontrado em espírito e verdade, não é o Deus da casuística, mas da verdade, não da equação de uma pesagem igual, mas do dom sem comércio, não o Deus da guerra – que, diz Francisco, não existe – mas o Deus da paz, um Deus não violento, um Deus que não está com a cidade reluzente, mas com o mendigo que morre na Via Ottaviano, não está nas lanchas que se aferram às presas, mas nos botes que afundam e nos navios das ONGs que, contra as regras, correm para salvá-los.
Nós dizemos que esse é o Deus surpreendente pregado por Francisco. Mas não é o Deus de Francisco, é o Deus da edição extraordinária do século XX. Essa leitura de Deus cresceu no tempo junto com a fé do povo de Deus e irrompeu depois da grande tragédia dos totalitarismos, da Guerra Mundial, da Shoá, da bomba atômica.
O próprio Papa Francisco não poderia publicá-la hoje se essa nova edição de Deus não tivesse sido preparada em uma Igreja que passou pela grande tribulação da modernidade, da apostasia das massas e da ansiedade pela sua agonia, expressada na carta do cardeal Suhard, traduzida para a Itália pela Corsia dei Servi [“família espiritual” tradicionalista italiana] e pelo Mons. Montini.
Essa nova figura de Deus, depois, veio à tona com o Concílio Vaticano II, com o qual o Papa Francisco é um só, de modo que o Concílio e o seu pontificado devem ser vistos não como dois eventos à distância de 50 anos um do outro, mas como um único evento. O trajeto é da Gaudet Mater Ecclesia à Evangelii gaudium, da Lumen Christi, Lumen Gentium à Misericordiae vultus, e a data-símbolo que os une é o dia 8 de dezembro, fim do Concílio e início do ano da misericórdia.
Por isso, o Deus inédito do Papa Francisco não é um Deus extemporâneo, importado para São Pedro do fim do mundo, como em uma viagem atrasada das caravelas de Colombo. E Francisco não é um papa excêntrico, apátrida, é um papa muito romano. O Deus que ele anuncia é um Deus bem plantado na tradição e que passou por todos os crivos da Igreja Romana. Ou seja, esta nova edição de Deus não carece de imprimatur.
Comecemos pela Pacem in terris. É aí que foi “aggiornato” o magistério dos papas do século XIX, que opuseram uma interdição divina à liberdade política e à liberdade de consciência, definidas como “um delírio”; é na encíclica do Papa João XXIII que a liberdade se torna a própria dignidade do homem e não pode ser constrangida em nome da verdade. Contra toda censura exigida ao papa pelos revisores, verdade, liberdade, justiça e caridade não são postas na encíclica em escala hierárquica, mas no mesmo plano, como mestras e guias para levar os homens à paz. Por isso, Deus é o Deus da liberdade, não é o Deus nem de Constantino, nem de Teodósio, nem dos chamados príncipes ou partidos cristãos.
Depois, veio o Concílio que, como Jesus na sinagoga de Nazaré, calou uma vingança de Deus pelo pecado do homem, não falou de um homem decaído, privado dos dons divinos e condenado ao trabalho como pena e aos partos dolorosos. Deus, de acordo com o Concílio, é o Deus da eleição, que não se arrepende de ter escolhido todos os homens como seus filhos, não os abandonou depois da queda e não expulsou ninguém do jardim. E ele também não deixou o homem à baila de si mesmo, como dizia uma péssima tradução do Eclesiástico, mas o “deixou entregue à sua própria decisão”, como diz a Gaudium et Spes no número 17, fazendo uma tradução melhor dessa passagem bíblica.
E, depois, houve a virada ecumênica do Concílio, pela qual as outras Igrejas são verdadeiras Igrejas, as sementes do Verbo estão espalhadas por toda parte, e “não há dúvida de que o Espírito Santo já agia no mundo antes de Cristo ser glorificado”, como diz o decreto Ad Gentes, n. 4.
Depois, foi a vez de Albino Luciani, que foi papa exatamente pelo tempo para dizer que Deus é pai, mas também mãe, isto é, figura de todas as relações de verdadeiro amor entre os homens. Deus é um beijo, como dizia o padre Benedetto Calati.
Depois, foi a vez de Bento XVI com a Comissão Teológica Internacional, que disse que as crianças mortas sem o batismo também podem se salvar. Assim, terminou o Limbo, e Deus não é mais concebível como aquele que mantém as crianças em “banho-maria” por toda a eternidade porque não houve ninguém que encontrasse a água para batizá-las, como dizia São Tomás, e só assim fazê-las entrar na Igreja como que por uma porta. E, se Deus ama e acolhe as crianças que não entraram na Igreja, é plausível que ele também faça isso com os adultos, de modo que a Igreja não é mais representável como a casa de Raab, fora da qual estamos entregues ao extermínio.
Bento XVI reconheceu ainda uma descontinuidade da Igreja na sua relação à modernidade, abandonou uma leitura histórica do mito do pecado original e, depois, como papa emérito, reconheceu a evolução do dogma e repudiou como “totalmente errada” a doutrina anselmiana da reparação devida ao Pai pelo Filho na cruz, enquanto que, na cruz, estava o Pai não menos do que o Filho; de modo que o teólogo ex-papa aposentou, com o seu fundamento, todo o andaime da ideologia sacrificial que, durante séculos, enrijeceu o cristianismo da misericórdia.
Por fim, foi a vez da Comissão Teológica Internacional, que argumentou a maior surpresa, a do Deus não violento; esta, com a assinatura do cardeal Müller, explicou que, também na Bíblia, há mal entendidos de Deus, de modo que uma leitura fundamentalista da Bíblia é um suicídio do pensamento e, na irreversível despedida do cristianismo das ambiguidades da violência religiosa, reconheceu o traço de uma virada epocal, a graça de um discernimento que inaugura uma nova fase da história da salvação e uma oportunidade real para se repensar a própria ideia de religião.
E foi tudo isso que confluiu no Deus inédito anunciado por Francisco, cujo magistério, por isso, tem um altíssimo conteúdo doutrinal; e é muito estranho que o porte doutrinal da reforma iniciada pelo Papa Francisco, que está bem presente para aqueles que acusam o papa de heresia, não seja reconhecida e compreendida, ao contrário, por muitos que se dizem defensores do Papa Francisco.
O que fazer agora para dar um futuro à virada profética de Francisco?
Detenho-me apenas a três propostas concretas.
1. Enquanto o ex-Papa Bento admite que, no Catecismo da Igreja Católica, há coisas já superadas, como a doutrina errada da reparação, o Pe. Carlo Molari escreveu, na sua contribuição a este congresso, que o Catecismo deveria ser mudado para fazer com que ele corresponda à nova perspectiva evolutiva.
Portanto, há na Igreja de hoje um grande problema que é o Catecismo. Mas eu não acredito que a proposta deva ser a de mudá-lo, é perigosa demais; penso, em vez disso, que é hora de colocar os catecismos nas prateleiras, pois as novas edições dos catecismos nunca poderão aferrar o vento que sopra a partir das sucessivas edições de Deus. Depois do Concílio, nós, com Dossetti e Alberigo, de Bolonha, reunindo vozes de todo o mundo, conseguimos evitar que a Igreja se desse uma Lex Ecclesiae Fundamentalis, que teria sido uma espécie de constituição eclesiástica no lugar do Evangelho. Mas ninguém evitou que se publicasse um novo Catecismo da Igreja Católica, e, também nesse caso, trata-se de pôr o Evangelho novamente no seu lugar.
2. A segunda coisa a se fazer, na minha opinião, é de pôr a mão novamente nos livros litúrgicos. Se a lex orandi é também a lex credendi, hoje esse equilíbrio deve ser reconstruído, não só porque há leituras e orações que, não interpretadas criticamente pelo povo no momento mesmo em que são proclamadas, são um suicídio da fé, mas também porque deve ser ressignificado toda a estrutura sacrificial e expiatória da liturgia e da vida.
3. A terceira coisa a se fazer diz respeito não apenas ao futuro da Igreja, mas também ao futuro do homem, mas é uma coisa tão grande que não pode ser esgotada em poucas palavras. É a questão dos migrantes e da unidade humana.
A discussão está aberta. Não se trata apenas de romper as regras para socorrer os migrantes, o que, para o cristão, não é só o exercício de um direito, mas é um dever. Trata-se de mudar as regras e de afirmar e sancionar o direito humano universal de migrar, de viver no lugar onde cada um possa não só salvar a sua vida, a “vida nua”, mas também de realizar melhor a própria humanidade.
Ao julgar a interdição que a Europa e agora também a Itália opõem ao povo dos migrantes, nós, no site Chiesa di Tutti, Chiesa dei Poveri, pronunciamos a grave palavra “genocídio”. A razão é que o povo dos migrantes é um povo de muitas nações, identificado pela tragédia comum da fuga da guerra, da violência, da fome, da seca, da exploração colonial, da miséria endêmica vigiada pelo Banco Mundial. Fazer com que eles não existam para nós, barrá-los nas jangadas e nos botes antes de chegarem, obstaculizar o seu desembarque com as armas e os “códigos” ministeriais, enviá-los de volta para terras de prisão que não são a pátria deles, inventar-se álibis de ajudá-los na casa deles, isto é, continuar morrendo nos infernos deles é um genocídio. É melhor condenar o genocídio antes, em vez de comemorá-lo ou negá-lo depois.
Se, junto com o Deus da misericórdia, a misericórdia entra novamente no mundo, podemos evitar esse genocídio; então, os povos se misturarão e se tornarão uma só humanidade: e, por isso, as reformas deverão ser feitas, o dinheiro não poderá mais estar sozinho no comando, o direito retomará o seu primado sobre a economia e sobre o poder, e nada mais será como antes. Assim, o tempo novo pode vir e ser este.
Raniero La Valle
Assis, 25 de agosto de 2017
Francisco, ostium ou katékon?
Se assim for, é legítimo dizer que a virada profética do pontificado franciscano pode ser a fenda que abre para uma nova fase da história da salvação e, por isso, da história do mundo; pode ser aquela porta através da qual se possa – todos juntos, começando pelos pobres – entrar na era nova; poderíamos chamá-la, recordando o Evangelho, de a “porta das ovelhas”, o ostium ovium.
Mas esse discurso pode parecer gratificante demais, e esta conclusão pode ser criticada como otimista demais e cair sob a advertência dirigida aos profetas que contam os seus sonhos (Jeremias 23, 27), que profetizam de acordo com os seus desejos, que dizem paz, e a paz não existe (Ezequiel 13, 10).
É claro, eu me distanciaria com esforço dessa interpretação do pontificado de Francisco, que faz com que ele pareça para mim um pontificado messiânico, que anuncia um tempo novo, e um tempo que é este. É a hipótese que eu mantive firmemente, e que alimentou minha esperança até aqui. Mas eu também tenho medo de que isso possa não ser verdade, não hoje.
Então, me arriscaria a dizer que pode haver uma segunda interpretação do pontificado de Francisco, embora mais dramática. A segunda interpretação é que ele representa, em vez disso, uma força frenante, a última defesa antes da catástrofe, o evento-surpresa que impede que a catástrofe ocorra. Há uma passagem messiânica da Segunda Carta aos Tessalonicenses, em que Paulo diz que está em curso um “mistério da anomia”, que Jerônimo traduz como “misterium iniquitatis”. Mas Paulo fala justamente de um mistério da anomia, que é, ao mesmo tempo, ausência de lei, destruição, apostasia.
Pois bem, esse mistério da anomia é contido por uma força que o contrasta, que Paulo chama de katékon, “aquele que contém, detém”. É essa força que quer ser de barreira ao mistério da anomia e detém aquilo que Paulo chama de “anomos”: trata-se do homem sem lei que pretende se colocar no lugar de Deus, de um poder que se faz poder para si mesmo, desvinculado de toda lei, “legibus solutus”, portanto, o poder absoluto; alguns o chamaram de anticristo. Em uma leitura feita no presente, essa figura do anomos, do “sem lei”, poderia ser identificada no atual poder global, o poder que domina no sistema da globalização selvagem; ele é sem lei, porque nenhuma lei o prevê, opera em um nível, o internacional, onde o direito só obriga os condescendentes, e os pactos são rasgados um depois do outro, do Protocolo de Kyoto ao tratado antimísseis, passando pelo pacto para instaurar dois Estados na Palestina, às convenções sobre a liberdade dos mares e sobre o direito dos requerentes de asilo; é um poder que governa revogando as leis, desregulando as relações, garantindo imunidade e segurança apenas ao dinheiro e tornando a guerra o árbitro.
Ora, de acordo com essa passagem da carta de Paulo, deveria se levantar uma força que o detém, que deveria impedi-lo de levar a história ao colapso, um katékon, precisamente. Mas qual é essa força? Segundo Tertuliano, era o Império Romano, que, com o direito, freava as forças da destruição. De acordo com Carl Schmitt, trata-se de “uma força frenante capaz de deter o fim do mundo”, que, segundo ele, foi o império cristão, a cristandade constantiniana. Nenhum dos dois tinha razão, e hoje é a própria Igreja de Francisco que declara encerrada a era da cristandade e decide sair dela.
Em vez disso, poderia ser o pontificado do Papa Francisco o verdadeiro ponto de resistência, a porta corta-fogo que intercepta e detém as forças que obedecem à sedução do fim. Antes que o amor acabe, antes que a fé acabe, antes que desapareça a proteção da criação, o mundo ainda jogaria, assim, a sua carta, confiando na misericórdia de Deus. Esse poderia ser o sentido deste pontificado.
Além disso, viram-se sinais evidentes disso. Ele era papa há pouco tempo e, de Lampedusa, Francisco detinha a Itália e a Europa de darem livre curso aos massacres no Mediterrâneo e as advertia contra o genocídio iminente em relação ao povo dos migrantes. O pontificado acabara de começar, e, com uma iniciativa inédita de oração global, Francisco conseguia parar a corrida rumo à guerra contra a Síria, que teria levado ao extremo o desastre já feito no Oriente Médio. Por fim, recusando-se a reconhecer que o extremismo terrorista pode ser remetido ao Islã, tirou lenha da fogueira e impediu que precipitássemos em uma guerra religiosa, que teria sido a guerra do fim.
Nesse sentido, a Igreja de Roma, em diálogo com as outras religiões e Igrejas, se pôs como força frenante em relação à catástrofe anunciada, como um katékon semelhante ao mencionado por Paulo. E, ao exercer essa ação frenante, o Papa Francisco fez com que fossem entrevistas as linhas da terra nova, que podemos hoje prefigurar, mas na qual ainda não podemos entrar.
Por isso, o pontificado Francisco, embora permanecendo messiânico para esse olhar lançado sobre o tempo novo, poderia ser lido como katekônico ou agônico, pela luta engajada contra as forças da destruição, para salvar o futuro histórico da humanidade amada por Deus.
Se isso for verdade, e se São Paulo tiver razão, tudo isso explica o furor com que o Papa Francisco é combatido. Porque o katékon deve ser removido do caminho pelas forças de destruição, que pretendem realizar a sua obra até o fim. Então, a reforma da Igreja não é só para uma Igreja em saída; inesperadamente, a Igreja Católica torna-se o katékon que, como dizia Carl Schmitt, “detém o fim do mundo”.
Mas, se essa é a parte que cabe à Igreja romana, ela não deve ser sofrida como um fato, como um destino, mas deve ser explicitamente assumida por uma cristandade consciente. Se o papel histórico é de parar o fim, então ele deve ser assumido como uma tarefa. Neste caso, nós, o que fazemos?
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A virada profética de Francisco: um Deus que surpreende. Artigo de Raniero La Valle - Instituto Humanitas Unisinos - IHU