26 Setembro 2017
“A boa continuidade de sérios estudos sobre o matrimônio e sobre a família precisava justamente dessa abençoada descontinuidade em relação ao Instituto João Paulo II anterior. Para poder finalmente se permitir a traduzir serenamente a tradição familiar na língua dos homens e das mulheres de hoje.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua, em artigo publicado por Come Se Non, 23-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O novo motu proprio Summa familiae, reformulando a instituição do Instituto João Paulo II, introduz algumas novidades importantes no panorama teológico e pastoral contemporâneo. Gostaria de apresentar uma breve leitura do documento e considerá-lo como um dos efeitos do “trabalho sinodal” que culminou na exortação apostólica Amoris laetitia. Ou, melhor, como direi em seguida, esse motu proprio assume precisamente da Amoris laetitia a tarefa de uma profunda autocrítica da teologia e da pastoral familiar, do modo como se desenvolveram ao longo dos últimos 35 anos.
Com um paralelismo muito eficaz, o texto da Summa familiae põe em relação o Sínodo de 1980, cujas consequências foram a exortação apostólica Familiaris consortio e, depois, a fundação do Instituto João Paulo II, com o duplo Sínodo de 2014-2015, ao qual se seguiu a exortação apostólica Amoris laetitia, da qual surge hoje a exigência de uma profunda revisão do ato instituidor do instituto, que, desde então, tinha se dedicado ao estudo da teologia e da pastoral matrimonial e familiar. Esse desenvolvimento, de acordo com o texto da Summa familiae, “exige que – também em nível de formação acadêmica – na reflexão sobre o matrimônio e sobre a família, nunca faltem a perspectiva pastoral e a atenção às feridas da humanidade”.
Portanto, decorre daí a integração de uma “perspectiva pastoral” e de uma nova atenção às “feridas da humanidade”: uma maior atenção à história e à concretude impõe uma revisão da impostação dos estudos promovidos pelo instituto. Daí deriva, por consequência, uma necessidade de aprofundamento “metodológico”, para que a abordagem ao matrimônio e à família responde realmente à realidade contemporânea: “A mudança antropológico-cultural, que influencia hoje todos os aspectos da vida e requer uma abordagem analítica e diversificada, não nos permite limitar-nos a práticas da pastoral e da missão que refletem formas e modelos do passado”. A fidelidade à tradição exige um acordo mais radical entre intelecto de amor e sábio realismo.
De tudo isso, decorre a necessidade de dar “um novo ordenamento jurídico” ao instituto, para que a visão clarividente de 35 anos atrás possa aderir melhor à realidade atual. E aqui está a decisão, considerada no seu centro: “Portanto, cheguei à deliberação de instituir um Instituto Teológico para as Ciências do Matrimônio e da Família, ampliando o seu campo de interesse, tanto em relação às novas dimensões da tarefa pastoral e da missão eclesial, quanto em referência aos desenvolvimentos das ciências humanas e da cultura antropológica em um campo tão fundamental para a cultura da vida”.
O fronte da reforma, portanto, é duplo: por um lado, a mudança da perspectiva pastoral e eclesial, por outro, o reconhecimento do necessário debate para a teologia com as ciências humanas e a cultura antropológica.
Segue-se a isso uma série de seis artigos, com os quais são realizados alguns atos jurídicos de relevância diversa, dos quais enfatizo apenas os seguintes:
- é instituído o Pontifício Instituto Teológico João Paulo II Para as Ciências do Matrimônio e da Família, que substitui de nome e de fato o instituto anterior. Também no título nota-se a ampliação do âmbito de pesquisa.
- as competências do instituto são correlacionadas com as de outras instituições da Santa Sé, como a Congregação para a Educação Católica, o Dicastério para os Leigos, a Família e a Vida, a Pontifícia Academia para a Vida.
É evidente que o novo instituto, embora se colocando no rastro da academia inaugurada há 35 anos, constitui uma significativa reforma dela, em pelo menos dois perfis fundamentais:
- por um lado, no modo de entender a “pastoral familiar”, compreendida de acordo com as diretrizes da “conversão pastoral” e da “identidade missionária” poderosamente repropostas na Evangelii gaudium e na Amoris laetitia;
- por outro, no plano refinadamente acadêmico, requer metodologias de pesquisa diferenciadas, mais amplas e mais aderentes à realidade atual: é todo um modo de fazer teologia que é aqui repensado e submetido a uma acusada revisão.
Justamente esse grande projeto de repensamento, encontra na Amoris laetitia a sua base de formulação e de orientação mais adequada. Não só porque ele busca superar aquela “moral fria de escritório” (AL 312) que, muitas vezes, tinha se expressado com particular insistência justamente a partir das cátedras do Instituto João Paulo II, mas também porque encontra, nos números 35-37 da Amoris laetitia, a sua base original de argumentação.
Poderia ser útil formular, quase em forma de “decálogo”, as principais “vozes” daquela “salutar autocrítica” que não só levou à reformulação do ordenamento jurídico do instituto, mas também contribuiu eficazmente para delinear os seus novos conteúdos e as suas novas instâncias metodológicas.
As “dez palavras” que aqui elaboro – com base no ditado literal da Amoris laetitia 35-37 – também podem ajudar a justificar a exigência de reforma que, na Summa familiae, encontrou lúcida realização. Como muitos desses defeitos foram o fruto da abordagem largamente compartilhada no interior do Instituto João Paulo II – e talvez até aperfeiçoada por ele – será possível compreender bem porque a exigência de superação assumiu a forma de uma verdadeira “refundação” do instituto:
Eis, portanto, o Decálogo elaborado pela Amoris laetitia para uma “salutar autocrítica”:
1. A denúncia estéril: “Não tem sentido limitar-nos a uma denúncia retórica dos males atuais, como se isso pudesse mudar qualquer coisa” (AL 35).
2. A pretensão normativa: “De nada serve também querer impor normas pela força da autoridade” (AL 35).
3. Apresentar as razões e as motivações de uma escolha: é preciso “apresentar as razões e os motivos para se optar pelo matrimônio e a família, de modo que as pessoas estejam mais bem preparadas para responder à graça que Deus lhes oferece” (AL 35).
4. Modos inadequados de expor as convicções e de tratar as pessoas: “Às vezes a nossa maneira de apresentar as convicções cristãs e a forma como tratamos as pessoas ajudaram a provocar aquilo de que hoje nos lamentamos, pelo que nos convém uma salutar reação de autocrítica” (AL 36).
5. Desequilíbrio entre fim unitivo e fim procriativo: “Muitas vezes apresentamos de tal maneira o matrimônio que o seu fim unitivo, o convite a crescer no amor e o ideal de ajuda mútua ficaram ofuscados por uma ênfase quase exclusiva no dever da procriação” (AL 36).
6. Um acompanhamento inadequado aos novos casais: “Não fizemos um bom acompanhamento dos jovens casais nos seus primeiros anos, com propostas adaptadas aos seus horários, às suas linguagens, às suas preocupações mais concretas” (AL 36).
7. Abstração e idealização teológicas: “Apresentamos um ideal teológico do matrimônio demasiadamente abstrato, construído quase artificialmente, distante da situação concreta e das possibilidades efetivas das famílias tais como são. Essa excessiva idealização, sobretudo quando não despertamos a confiança na graça, não fez com que o matrimônio fosse mais desejável e atraente; muito pelo contrário” (AL 36).
8. A presunção de autossuficiência da doutrina: “Durante muito tempo pensamos que, com a simples insistência em questões doutrinais, bioéticas e morais, sem motivar a abertura à graça, já apoiávamos suficientemente as famílias, consolidávamos o vínculo dos esposos e enchíamos de sentido as suas vidas compartilhadas” (AL 37).
9. O matrimônio concebido mais como ato do que como relação: “Temos dificuldade em apresentar o matrimônio mais como um caminho dinâmico de crescimento e realização do que como um fardo a carregar a vida inteira” (AL 37).
10. Não substituir, mas formar as consciências: “Também nos custa deixar espaço à consciência dos fiéis, que muitas vezes respondem o melhor que podem ao Evangelho no meio dos seus limites e são capazes de realizar o seu próprio discernimento perante situações onde se rompem todos os esquemas. Somos chamados a formar as consciências, não a pretender substituí-las” (AL 37).
Em cada um desses 10 pontos, o trabalho de repensamento, nos conteúdos e nos métodos – assim como são lucidamente apontados pela Summa familiae – indica, ao mesmo tempo, o espaço exigente tanto para o surgimento de um novo instituto, quanto para o declínio do anterior.
A boa continuidade de sérios estudos sobre o matrimônio e sobre a família precisava justamente dessa abençoada descontinuidade. Para poder finalmente se permitir a traduzir serenamente a tradição familiar na língua dos homens e das mulheres de hoje: que são mais frágeis, mas também mais ricos; que são mais simples, mas também mais complicados; que vivem famílias deformadas, mas também informais; que atestam a fé mais com a intimidade do que com as formas; que, enfim – no mesmo momento – são mais indiferentes e mais apaixonados.
Dessa realidade complexa, fora de qualquer maximalismo e fundamentalismo, deverá se ocupar o trabalho acadêmico e pastoral do novo instituto, a serviço não só de uma Igreja mais serena e dinâmica, mas também de uma cultura ainda sedenta de palavras verdadeiramente sérias.
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A Summa familiae do Papa Francisco: uma ''salutar autocrítica''. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU