26 Agosto 2017
“Um dos componentes decisivos do pontificado de Francisco é o fato de ele ser o ‘primeiro papa não europeu’. Como ‘americano’, Francisco traz para Roma algumas características decisivas do ‘caráter americano’.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 23-08-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Ser uma tradição, e não uma doutrina, permitiu-lhe permanecer e, ao mesmo tempo, mudar” (O. Paz)
Relendo com grande interesse o magnífico discurso que Octavio Paz fez em Estocolmo, em 1990, intitulado “Em busca do presente” e proferido por ocasião da entrega do Prêmio Nobel de Literatura, encontrei uma surpreendente chave de leitura do papado de Francisco.
Eu sabia que Francisco traz no coração a palavra de Paz, mas não imaginava que encontraria definido com tanta lucidez um recorte transversal deste pontificado, quase profetizado com mais de 20 anos de antecedência.
Gostaria de oferecer um breve quadro a respeito, do qual é possível tirar algumas consequências para um juízo honesto sobre as características desta histórica passagem magisterial.
Não raramente, esquece-se que um dos componentes decisivos do pontificado de Francisco é o fato de ele ser o “primeiro papa não europeu”. Como “americano”, Francisco traz para Roma algumas características decisivas do “caráter americano”.
No texto citado, O. Paz identifica o traço saliente do espírito americano em uma característica que identifica, já na origem, os países “conquistadores” – ou seja, a excentricidade insular inglesa e a excentricidade peninsular ibérica – que, na América do Norte e na América Latina, teriam adquirido um forte senso da “diferença”, tornando-se, a Norte, “excentricidade exclusiva” e, a Sul, “excentricidade inclusiva”.
Esse caráter “excêntrico” é um ótimo critério de compreensão do “primado da periferia”: é um mundo, cuja literatura chegou a ser conhecida e reconhecida apenas no século XIX, que leva a Roma uma percepção da tradição diferente e que propõe uma tradução tão fiel quanto audaz.
Não por acaso, foi um teólogo sul-americano – Marciano Vidal – que fez do modo mais radical a questão da “reconhecibilidade” de Francisco como papa. Ele se perguntou, de modo afiado: “Como foi possível que, desde a noite de 13 de marco de 2013, pudemos reconhecer em Francisco o papa e bispo de Roma, embora as suas linguagens – verbais e não verbais – fossem tão diferentes em relação ao passado?”. A sua resposta é muito instrutiva: porque tínhamos o “pressentimento” disso.
A partir do Concílio Vaticano II, o povo de Deus “sabia” que uma coisa do gênero poderia acontecer. E, assim que aconteceu, teve os critérios para reconhecê-la. O Concílio Vaticano II lançou as premissas para a “descentralização eclesial”, convocando a Roma, pela primeira vez, uma Igreja Católica de cinco continentes diferentes e introduzindo a lógica de uma “atualização pastoral” que permitia que a tradição, finalmente, renovasse a nobre práxis de tradução e de recompreensão, como sempre tinha acontecido ao longo dos séculos, e que os fatos traumáticos dos séculos XIX e XX pareciam ter bloqueado.
Essa “excêntrica americana” de Francisco tem consequências doutrinais muito relevantes. Não pode ser reduzida nem a anedota antropológica, nem a curiosidade de caráter, nem a perigo apocalíptico: na forma da linguagem verbal e não verbal de Francisco, está em jogo a tradição doutrinal católica, captada em uma fase de precioso desenvolvimento.
Uma tradução da tradição ocorre ao vivo, diante dos nossos olhos. Com as categorias introduzidas por dois grandes teólogos do século XX (G. Lindbeck e A. Dulles), podemos dizer que estamos lidando aqui com um modelo diferente de relação com a doutrina e com a revelação.
A um modelo “proposicional” ou “experiencial” de doutrina, substitui-se um modelo “cultural-linguístico”. Poderíamos dizer que, à clássica oposição entre proposição dogmática objetiva e experiência de salvação subjetiva, substitui-se a complexa mediação linguística, verbal e não verbal.
A tradução da doutrina envolve mudanças decisivas no plano da linguagem. Cuidado ao negá-los, permanecendo em uma visão superada daquilo que é doutrina eclesial. Não surpreende que, justamente alguns setores americanos – estilizados em pré-compreensões europeias – sejam os mais relutantes em reconhecer essa dinâmica preciosa.
Ao contrário do que muitas vezes se repete – ou seja, que as novidades de Francisco dizem respeito à disciplina e não à doutrina –, é preciso reconhecer que, às novidades doutrinais – devidas à necessária tradução da tradição –, devem se acompanhar as novidades disciplinares, processuais, estruturais. Estas permitem que a Igreja não apenas “saiba que deve sair”, mas saia de verdade! E elas dizem respeito, inevitavelmente, ao respeito das “cúrias”. Onde haja “cúria”, um equilíbrio diferente entre sujeitos deve ser assegurado, para honrar uma “realidade mais importante do que a ideia”.
Em conclusão, a atenção à “periferia” poderia ser, na verdade, não apenas uma exigência nativa do Evangelho, mas também uma projeção sobre o Evangelho dessa característica “excêntrica” da América e da América Latina em particular, como fruto da excentricidade exclusiva da Inglaterra e da excentricidade inclusiva da Espanha e de Portugal.
No magistério de Francisco, fala a história dessa “excentricidade”, primeiro herdada e, depois, reelaborada pela cultura civil e eclesial americana. Uma relação diferente entre autoridade e liberdade, que caracteriza a história americana em relação à europeia, leva a Roma novas prioridades e novos estilos, dos quais o Vaticano II nos deu o gosto e o pressentimento.
Vai levar tempo para compreender plenamente, por parte de todos, que não se trata de uma “heresia perigosa”, mas de uma “parrésia providencial”.
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Papa Francisco e a ''excentricidade americana'' em Roma. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU