19 Agosto 2017
Uma estudiosa de Guy Debord propõe pistas para acessar o pensamento do filósofo. Sua obra central, que completa 50 anos, vasculhou as lógicas de dominação do capitalismo contemporâneo
O artigo é de Iná Camargo Costa, publicado por Outras Palavras, 17-08-2017.
Logo depois de publicar seu livro A sociedade do espetáculo (1967), Guy Debord fez um filme com o mesmo nome (1973) no qual retoma todos os procedimentos do cinema de agitprop desenvolvido na Rússia revolucionária por gente como Eisenstein, ao mesmo tempo em que faz avançar tanto as propostas dos seus antecessores quanto as que enunciou no livro, que foi pensado entre outras coisas como uma intervenção no debate estético-político francês. Disponível no YouTube com legendas em português, este filme merece ser visto e revisto, pois a totalidade dos seus argumentos está ali exposta, bem como a resposta que Guy Debord queria dar no plano da política e da arte. No plano da política, trata-se de resgatar o programa da democratização radical do modo de produção e, por consequência, de revolucionar por completo o modo de vida sob o capitalismo (ainda em aliança com a fraude chamada socialismo nos anos de 1960-70). O filme já seria uma expressão legítima deste processo de luta, na medida em que identifica e denuncia processos, agentes, modos de expressão artístico-publicitários, etc., e já é uma proposta prática e artística do que fazer (para citar Lenin, uma das referências de Debord).
A começar pela publicidade, os processos fundamentais da nossa sociedade do espetáculo continuam os mesmos, mas seus agentes já foram substituídos por outros menos toscos, de modo que uma atualização do filme (não do livro) poderia reaproveitar sua estrutura básica (no sentido do détournement, como ele mesmo fez com os filmes então apreciados espetacularmente pelos cinéfilos franceses) e substituir as cenas daquele presente francês por cenas do nosso presente (2017). Desconfio que os resultados seriam igualmente impressionantes. Um filme assim diria muito mais do que a quase totalidade dos discursos supostamente críticos dos processos a que temos assistido espetacularmente nos anos que se seguiram às manifestações de junho de 2013.
O texto que segue foi preparado para uma exposição do tema aos integrantes da Brava Companhia de teatro em 2009 (reproduzida a seguir) e acolheu de modo radical a proposição debordiana do détournement. Isto é: salvo pela edição, tudo o que será lido está no livro A sociedade do espetáculo. Aqui a sua função é contribuir para apropriações do pensamento debordiano que sejam mais produtivas do que até agora tem acontecido, pelo menos no Brasil, em que se observa o lamentável fenômeno da apropriação espetacular de um pensamento que se pretende crítico do espetáculo.
Espetáculo é ao mesmo tempo uma relação social e a relação interpessoal mediada por imagens. É o modelo atual da vida que domina na sociedade. É a justificação total das condições e dos objetivos do sistema capitalista.
O espetáculo é o discurso ininterrupto que a ordem atual faz a respeito de si mesma. É um monólogo laudatório. Começa no pseudo-diálogo da vida cotidiana e familiar, desenvolve-se na vida econômica, é cultivado metodicamente na universidade e constitui o oxigênio dos meios de comunicação.
Como elemento constitutivo do espetáculo, a publicidade é mentira metódica. Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da mentira anterior. Cada queda de uma figura do poder totalitário revela a comunidade ilusória que a aprovava por unanimidade.
O espetáculo é absolutamente dogmático e, ao mesmo tempo, não pode chegar a nenhum dogma sólido.
A sociedade do espetáculo deita raízes em todas as formas sociais que a precederam. Mas a ordem das coisas que está no âmago da dominação do espetáculo moderno nasceu no mesmo momento histórico em que a representação do proletariado (suas organizações) passou a opor-se radicalmente à classe: o primeiro passo deu-se quando o bolchevismo triunfou na Rússia e a social-democracia lutou vitoriosamente pela velha ordem.
O segundo passo foi dado pelo stalinismo que instrumentalizou a Terceira Internacional como força de apoio da sua diplomacia para sabotar todos movimentos revolucionários e apoiar governos burgueses dos quais esperava retribuição em seus negócios mundiais.
O fascismo – passo seguinte –, por mais que seja adepto da mais conservadora ideologia burguesa, em si mesmo não é fundamentalmente ideológico. Ele é arcaizante em seu recurso ao mito para organizar a comunidade definida por pseudo-valores arcaicos como raça, sangue e chefe. O fascismo é arcaísmo tecnicamente equipado e constitui um dos fatores do espetáculo moderno, a começar pelo papel essencial que desempenhou na destruição do antigo movimento operário (previamente desarmado pela social-democracia e pelo stalinismo).
O fim da União Soviética e seus satélites (ocorrido no ínicio dos anos de 1990), a aliança da mistificação burocrática, significa que a burguesia perdeu o adversário que objetivamente a sustentava unificando de modo ilusório a negação da ordem presente.
O proletariado não foi suprimido, como afirmam os intelectuais a serviço da sociedade do espetáculo. Ao contrário, ele se amplia com a extinção do campesinato e com a extensão da lógica do trabalho assalariado para os “serviços” e as profissões intelectuais – entre as quais a de artista. E o trabalho intelectual assalariado tende a seguir a lei da produção industrial da decadência, na qual o lucro do empresário depende da rapidez da execução e da má qualidade do material utilizado.
A crítica à sociedade do espetáculo só terá consequência prática se apontar para a organização revolucionária. E tem que ser globalmente formulada contra todos os aspectos da vida social, que estão sob o encanto do fetiche da mercadoria.
A cultura é a esfera geral do conhecimento e das representações do vivido. Numa sociedade dividida em classes, ela é o poder de generalização que existe em separado, como divisão intelectual do trabalho e trabalho intelectual da divisão. Mas a cultura é também o lugar da busca da unidade perdida. Nesta busca, a cultura como esfera separada é obrigada a negar a si mesma, produzindo-se como intervenção crítica da economia política.
A crítica espetacular do espetáculo, funcional a ele, é um empreendimento da sociologia, que estuda a separação recorrendo às ferramentas conceituais e materiais produzidas pela separação. A apologia do espetáculo, ou publicidade, por sua vez, constitui um pensamento do não pensamento, um esquecimento explícito da prática histórica. O falso desespero da crítica espetacular e o falso otimismo da pura publicidade do sistema são idênticos enquanto pensamento submisso.
Para destruir a sociedade do espetáculo é preciso pôr em ação uma força prática. A teoria crítica do espetáculo só se torna verdadeira ao unificar-se à corrente prática da negação da sociedade de classes. E esta negação, a retomada da luta de classes revolucionária, se tornará consciente de si ao desenvolver a crítica do espetáculo, que é a teoria das suas condições reais, as condições práticas da opressão atual.
O espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo o sistema ideológico: o empobrecimento, a subordinação e a negação da vida real.
O espírito do espetáculo é completamente despótico. Nunca a censura foi tão perfeita. Esta sociedade já não aceita ser criticada. O discurso espetacular silencia tudo o que é propriamente secreto e tudo o que não lhe convém.
A ignorância dos espectadores nasce daquilo que o espetáculo ensina. O discurso do espetáculo não deixa espaço para resposta. A lógica só se forma socialmente pelo diálogo; não é fácil e ninguém quer ensiná-la aos espectadores. Por outro lado, nenhum drogado estuda lógica porque já não precisa dela e já não tem esta possibilidade.
A preguiça do espectador é a mesma de qualquer intelectual, do especialista formado às pressas, que vai sempre tentar esconder os estreitos limites dos seus conhecimentos através da repetição dogmática de algum argumento de autoridade sem qualquer lógica.
O discurso da sociedade do espetáculo é falacioso, enganador, impostor, sedutor, insidioso e capcioso.
A maior exigência da máfia, onde quer que esteja, é estabelecer que ela não existe, ou que foi vítima de calúnias. Este é apenas o seu primeiro ponto de semelhança com o capitalismo e a sociedade do espetáculo.
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Para compreender a Sociedade do Espetáculo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU