13 Julho 2017
“Os Estados nacionais, embora expressivos também das características histórico-antropológicas dos seus respectivos povos, têm uma estrutura política totalmente independente da proveniência étnica dos habitantes. Não é por nada que a maior democracia do mundo, os Estados Unidos da América, formada desde o início por cidadãos de proveniência diferente, sempre se inclinou em favor do ius soli [direito de solo].”
A opinião é do filósofo italiano Roberto Esposito, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas. O artigo foi publicado no jornal La Repubblica, 11-07-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Há muito tempo somos submetidos a uma escolha seca entre sangue e solo. O que deve determinar a cidadania de sujeitos de proveniência estrangeira deve ser o sangue, ou seja, a descendência de pelo menos um progenitor já cidadão do novo país, ou o solo, isto é, o simples fato de ter nascido naquele território?
Embora alguns países adotem uma legislação mista, os princípios que guiam essa opção parecem claros e alternativos. Por um lado, a assunção da linha hereditária que se transmite de pai para filho; por outro, a ideia de que cada indivíduo possa aceitar livremente as leis vigentes do Estado em que nasceu.
Os motivos de civilização que levam a escolher o ius soli, se satisfeitas algumas condições, são evidentes. O fato de as prerrogativas – sejam culpas ou méritos – dos pais recaírem sobre os filhos é um princípio arcaico varrido pelas legislações modernas. Os Estados nacionais, embora expressivos também das características histórico-antropológicas dos seus respectivos povos, têm uma estrutura política totalmente independente da proveniência étnica dos habitantes. Não é por nada que a maior democracia do mundo, os Estados Unidos da América, formada desde o início por cidadãos de proveniência diferente, sempre se inclinou em favor do ius soli.
Enquanto isso, a incerteza entre os dois princípios, nos países europeus, nasce de uma história mais complexa, marcada longamente pela presença de posses coloniais em que o componente étnico desempenhou um papel nada secundário.
Mas, na discussão em curso, achatada demais sobre a atualidade, não se deu atenção suficiente ao fato de que a própria distinção entre sangue e solo é uma conquista recente, que nasce da vitória das democracias sobre o nazifascismo. Este não só não a reconhecia, mas também ligava sangue e solo em um vínculo racial do qual fazia decorrer toda a sua política interna e externa.
Uma reconstrução extremamente acurada está em um livro de Paolo Lombardi e Gianluca Nesi, Sangue e suolo (Ed. All’Insegna del Giglio). Na realidade, pesquisas sobre origens mistéricas e ocultistas do nazismo não são novas – basta pensar, na Itália, nos trabalhos de Giorgio Galli, como o recente Hitler e la cultura occultista (Ed. Rizzoli, 2013).
Quanto ao destaque da mística do sangue sobre a corrupção do léxico conceitual alemão, o livro de Jean Chapoutot, La legge del sangue. Pensare e agire da nazisti (Einaudi), fornece um amplo material. Mas o espaço ainda insondável que o livro de Lombardi e Nesi preenche é justamente aquele que, na ideologia nazista, aperta em um único nó sangue e solo – precisamente aquele que, no debate atual sobre a concessão da cidadania, se gostaria de dissolver.
Os autores reconstroem a formação da concepção nazista, já perfilada no primeiro texto de Hitler de 1925, “Uma prestação de contas”, que depois confluiu no Mein Kampf. Ela afunda as raízes em uma série de ideias e símbolos delirantes e incoerentes, que, mesmo assim, constituíram um pano de fundo fora do qual é difícil explicar o amplo consenso de que o regime gozou. No centro, está o nexo muito sólido entre sangue e solo, fundamentado, por um lado, sobre a nacionalização do sangue e, por outro, sobre a biologização do solo. Falando de “espaço vital”, os nazistas invertiam toda uma tradição jurídica, de matriz romana, conferindo ao seu território os atributos de um organismo vivo em necessária expansão.
Apenas a purificação do sangue alemão, com a eliminação daquilo que o envenenava, garantiria o domínio de um espaço imperial da Mancha aos Urais. Assim como o solo devia ser aspergido com o sangue daqueles que o habitavam, também assim o sangue puro da raça superior era um só com a terra trabalhada pelos camponeses-guerreiros de estirpe germânica. A vida dos alemães era aquilo que fecundava aquela terra, como as plantas que nela cresciam. Muitos dos chefes nazistas, como Walther Darrè – ex-autor de “A nova nobreza de sangue e solo” – e Himmler, vinham de estudos agrários. Quem sabia modificar os frutos de uma árvore também podia modificar segmentos da espécie humana.
O próprio avanço da Wehrmacht para leste, avassalador até a Batalha de Stalingrado, foi concebido em nome do vínculo indissolúvel entre terra e sangue. O planejamento da Europa nazista, projetada em 1940 e levada adiante até 1943, destruindo milhões de vidas humanas, previa a constituição de três grandes espaços, funcionais ao poder do Reich:
um primeiro círculo, de sangue puríssimo, correspondente aos territórios de língua alemã da Europa Central;
um segundo círculo, de sangue misto a ser purificado, constituído pelos territórios antigamente colonizados pelos povos germânicos que, depois, se perderam; e
um terceiro círculo, formado por nações que seriam atraídas à órbita econômica alemã, como a Ucrânia. Essas seriam as fronteiras do Reich milenar, dividido, através de um muro muito sólido de sangue, dos territórios mais orientais, integralmente escravizados.
A ideia de fundo que orientava esse plano insano era de que o solo torna-se aquilo que é o sangue daqueles que o pisam se for reconstruído em torno do valor biológico que ele expressa.
Neste ponto, restam duas questões em aberto. A primeira é aquela que liga o plano de expansão a leste ao genocídio. Embora no processo de Nuremberg tal nexo não foi estabelecido e os responsáveis pelo plano não foram condenados, o genocídio é, ao mesmo tempo, o pressuposto e o resultado da política externa de Hitler, como se deduz facilmente do fato de que, em todos os cálculos numéricos sobre as populações a serem assentadas ou deslocadas, falta exatamente o número de judeus efetivamente eliminados.
O outro ponto é que, na atual unidade europeia, realizada sob a hegemonia econômica da Alemanha, naturalmente em um horizonte totalmente diferente do nazista, seria possível entrever pelo menos algo daquele projeto. Mas se equivocaria, já que, na ambição hegemônica nazista, a economia e até mesmo a política sempre estavam subordinada à diferença de sangue.
É mais um motivo, para nós, para a escolha pelo ius soli, livre do vínculo com o sangue, ao se conferir a cidadania na Europa.
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Quando os nazistas pregavam o “ius sanguinis”. Artigo de Roberto Esposito - Instituto Humanitas Unisinos - IHU