18 Mai 2017
Brecha na legislação permitirá 37 novos alteamentos de barragens pela técnica “a montante”, a mesma empregada em Fundão, da Samarco, que se rompeu, matou 19 pessoas e causou o maior acidente ambiental da mineração no mundo.
A reportagem é de Lucas Simões, publicada por jornal O Beltrano, 16-05-2017.
Um ano e meio após o maior crime socioambiental envolvendo uma empresa de mineração no mundo, no traumático rompimento da barragem de Fundão, no distrito de Bento Rodrigues, em Mariana (MG), em 5 de novembro de 2015, o fantasma do “alteamento à montante” ainda ronda o Estado. São, hoje, 37 bombas-relógio em forma de barragens de rejeito de mineração sendo armadas em Minas. E outras 120 já armadas e que podem explodir a qualquer momento, sem controle dos órgãos públicos.
Alteamento a montante é a técnica de ampliação de barragens de rejeito de mineração que foi utilizada em Fundão (mais informações no final do texto). Mais rápida e barata para as empresas, a técnica foi proibida de ser empregada para novos projetos no Estado por não ser comprovadamente segura. Mas não para os projetos que já estavam em processo de aprovação à época do acidente. E estes somam o incrível número de 37 barragens com pedido de aprovação junto aos órgãos ambientais do Estado.
Lista das 37 barragens que pretendem usar o alteamento a montante
Uma delas encontra-se, inclusive, na ferida aberta de Mariana, na Mina de Alegria, onde a mineradora Vale pretende retomar as atividades parcialmente paralisadas desde o acidente da Samarco (com sua barragem esgotada, a Mina de Alegria utilizava Fundão para depositar parte de seus rejeitos). A mina esta a apenas seis quilômetros do epicentro da tragédia. Para ampliar a barragem, a Vale pretende usar a mesma técnica de engenharia já condenada em decreto pelo governo do Estado.
Esse decreto, de número 46.993/2016 – assinado pelo governador Fernando Pimentel (PT) e chamado de revisão de uma “legislação antiquada e ineficaz” pelo secretário de Estado de Meio Ambiente de Desenvolvimento Sustentável, Sávio Souza Cruz -, proibiu o alteamento à montante para futuras barragens em Minas Gerais. Como ação emergencial, até que o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Copam) elabore diretrizes para dar aplicabilidade à lei, sem data estabelecida de conclusão, o decreto também exigiu que as barragens antigas, alteadas a partir da técnica condenada, passassem por uma ‘Auditoria Extraordinária de Segurança’ e que as empresas elaborassem Plano de Ação de gestão de segurança.
Os relatórios técnicos e documentos tinham prazo de entrega até 1º de setembro do ano passado. Porém, passados nove meses da data máxima, apenas 25 empreendimentos cumpriram com a normativa, conforme informou ao O Beltrano a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). E isso representa apenas 21% do total de 120 barragens alteadas a montante existentes em Minas, conforme dado da Agência Nacional de Engenharia.
As empresas listadas abaixo são as que cumpriram a normativa:
Já os 37 pedidos de licenciamento de novos alteamentos a montante foram enviados à Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam), órgão vinculado à Semad e responsável pela análise, entre 2010 e 2015, antes portanto da publicação do decreto do governador no Diário Oficial de Minas Gerais, em 3 de maio de 2016. Destes pedidos, 16 são da mineradora Vale e incluem duas solicitações feitas em 2014 para obter a Licença Prévia (LP), de análise do impacto ambiental, e da Licença de Instalação (LI), que autoriza o início de obras nas Barragens B3 e B4, na Mina de Mar Azul, em Nova Lima, na Grande BH.
A Vale também aguarda, desde 2012, pedidos para retomar e expandir a Licença de Operação (LO) para obras em duas minas que também usam o alteamento a montante na região Central do Estado: a Mina Timbopeba (Barragem Doutor), em Ouro Preto, e já citada Mina da Alegria (Barragem Campo Grande), em Mariana.
Fundão – Mariana | Foto: Felipe Werneck/Ascom Ibama
As duas minas, Timbopeba e Alegria, foram imediatamente afetadas pela tragédia de 2015 e, no mesmo mês da catástrofe, a própria Vale admitiu a redução das atividades na Mina Timbopeba, em comunicado ao mercado financeiro – embora a Mina da Alegria também tenha registrado queda no fluxo de produção. Procurada, a Vale não respondeu se pretende retomar ou expandir as atividades nas minas ampliando suas barragens com alteamento a montante.
Mesmo sem um posicionamento claro da empresa, o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou uma Ação Civil Pública contra o Governo de Minas, em 4 de novembro de 2016, se referindo ao decreto do governo como um “impulsionador de método assassino”. Na ação, o MPMG pede a antecipação de tutela e a proibição do Estado de conceder ou renovar licenças ou autorizações que envolvam instalações ou ampliações de barragens de rejeitos de mineração baseadas na técnica de alteamento a montante.
Segundo a promotora Andressa de Oliveira Lanchotti, coordenadora da área de Meio Ambiente, a ação do MPMG é fundamental para impedir não só a ampliação de novas barragens com o método de alteamento a montante, como diz o decreto nº46.993/2016, mas também para anular o funcionamento de todas as 120 barragens que já aplicaram a técnica no Estado, além de impedir o alteamento das 37 barragens que aguardam licenciamento para começar ou expandir suas atividades.
“A técnica de alteamento a montante é obsoleta. Existem outras tecnologias para a disposição e gerenciamentos dos rejeitos de mineração mais modernas e seguras. De acordo com a legislação atualmente em vigor, caso não sejam acolhidos os pedidos liminares postulados na inicial da Ação Civil Pública, as barragens construídas por meio da técnica de alteamento a montante que se encontram em licenciamento no Estado de Minas Gerais (antes do decreto), poderão vir a receber licenças ambientais, o que gerará riscos à segurança da população e ao meio ambiente”, avalia a promotora.
“Recomenda-se a suspensão da concessão de todas as Licenças Prévia – LP, e Licenças de Instalação – LI, para barragens de rejeito, como também, a suspensão de todas as Licenças Prévia e Licenças de Instalação porventura já concedidas para barragens de rejeito no Estado, até que a legislação e os estudos sobre a matéria estejam no estado da arte necessários a produzir a segurança da sociedade e do meio ambiente, como também, até que o Sistema Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (SISEMA) proporcione a estrutura e as condições necessárias à correta avaliação técnica, ampla e completa dessas estruturas”, diz parte da Ação Civil Pública.
Fundão – Mariana | Foto: Felipe Werneck/Ascom Ibama
Além disso, na Ação Civil Pública, o MPMG também requer que seja declarado nulo o artigo 8º do Decreto nº 46.993/2016, justamente o artigo que não prevê mudanças para os 37 pedidos de licenciamentos feitos antes do decreto. “A revogação/anulação do art. 8. do decreto 46.993/2016, caso o restante do texto mantenha a sua redação original, impedirá a instalação de novas barragens ou a ampliação das já existentes”, completa a promotora.
O processo ainda está em análise na 3ª Vara de Fazenda Pública e Autarquia de Belo Horizonte e teve o primeiro despacho concluso do juiz para vistas do Ministério Público em 23 de janeiro deste ano. Apesar disso, a promotora Alessandra Lanchotti disse que “o MPMG ainda não foi intimado para tomar ciência de eventual decisão proferida relativa aos pedidos liminares elencados na inicial, os quais poderão ou não ser acolhidos pelo Juízo da Vara da Fazenda Pública Estadual”.
Caso o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) forneça uma decisão favorável ao MPMG, o órgão pede que em eventual descumprimento da decisão judicial, o Estado tenha que arcar com uma multa de R$ 500 mil por cada ato praticado.
O método de alteamento de barragens a montante consiste em criar degraus de escoramento utilizando os próprios rejeitos como base. Esse escoramento é, portanto, feito dentro do reservatório de rejeitos, onde os materiais depositados são estão misturados a água e formam um enorme lago de lama instável.
“É um método em que você não tem controle sobre a proteção, porque ela é feita em cima de rejeitos e sedimentos voláteis. E há maiores chances de rupturas e imprevisibilidades porque o escoramento, ou a parede para impedir que os rejeitos vazem, é construída em cima dos próprios rejeitos, ou seja, em solo irregular e muitas vezes úmido ainda. O método mais seguro é o alteamento a jusante, uma construção de proteção feita na área seca, onde não há rejeitos. Mas esse tipo de técnica normalmente fica entre 60% a 70% mais cara que o método a montante”, diz o engenheiro Dinésio Franco, especialista em barragens. “Depois de Fundão, várias empresas passaram a evitar a técnica a montante, justamente pelo medo de não ser liberado o licenciamento”, completa Dinésio.
Diante das polêmicas e restrições ao método de alteamento de barragens a montante, a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), ainda em 1993, foi categórica ao afirmar que “não se recomenda o alteamento da barragem pelo método montante”, segundo o item 4.3 da publicação “Elaboração e apresentação de projeto de barragens para disposição de rejeitos, contenção de sedimentos e reservação de água”. Porém, na versão mais atualizada da mesma norma, de 2006, a recomendação não aparece mais.
O engenheiro Dionésio Franco, responsável por elaborar a norma em 2003 e um dos revisores da atualização de 2006, explica que houve modificações tecnológicas na engenharia que permitiram a mudança. “Antes, a gente não tinha tecnologia para usar o método a montante. Era muito mais arriscado. A partir de 2006, com tecnologia, a segurança passou a ser maior. Ainda que esse tipo de técnica não seja a mais segura. Por isso, foi retirado das normas da ABNT a não-recomendação para o método a montante”, diz Dinésio.
Fundão – Mariana Foto: Felipe Werneck/Ascom Ibama
A Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) vai publicar, ainda neste mês, o Inventário de Barragens 2016, com todos os detalhes das auditorias e adequações realizadas nas barragens mineiras, bem como suas informações técnicas detalhadas. Porém, para o engenheiro Joaquim Pimenta Ávila, um dos projetistas da barragem de Fundão, um dos maiores problemas em relação às barragens é a fiscalização.
“Certamente, com as leis, tenta-se fazer algo. Mas existe uma falha e um atraso na fiscalização das barragens de rejeitos de minério por falta de técnicos. Se forem três ou quatro para fazer todo o serviço no Estado, é muito. Isso precisa melhorar de forma urgente para garantir uma segurança real das barragens”, diz o engenheiro.
Confira a localização das 37 barragens no mapa abaixo:
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