09 Março 2017
“O apelo à consulta feito por Correa sobre os paraísos fiscais nem mesmo contribuiu para um exercício pedagógico que incitasse à reflexão de um tema tão importante. (...) A consulta passou quase despercebida. Esta praticamente transformou-se em um ‘fantasma’ eleitoral”, escrevem Alberto Acosta e John Cajas Guijarro, em artigo publicado por Rebelión, 07-03-2017. A tradução é de André Langer.
“Quando o saque se torna uma forma de vida para um grupo de pessoas, com o passar do tempo estas pessoas criam para si mesmas um sistema legal que as autoriza e um código moral que as glorifica” – Frédéric Bastiat, economista liberal francês (1801-1850).
Nas eleições equatorianas de 19 de fevereiro de 2017, além de escolher os governantes do país para os próximos quatro anos (ou talvez menos, dependendo de como avançar a crise), foi feita a seguinte pergunta:
“Você concorda que, para desempenhar uma dignidade de eleição popular ou para ser servidor público, seja proibido ter bens ou capitais, de qualquer natureza, em paraísos fiscais?
Portanto, no prazo de um ano, contado a partir da divulgação dos resultados definitivos da presente consulta popular, a Assembleia Nacional reformará a Lei Orgânica do Serviço Público, o Código da Democracia e as demais leis que sejam pertinentes, a fim de adequá-los ao pronunciamento majoritário do povo equatoriano.
Neste prazo, os serviços públicos que tiverem capitais e bens de qualquer natureza em paraísos fiscais deverão acatar o mandato popular, e seu descumprimento será motivo de destituição. Sim______ Não______”.
Esta pergunta era a peça central do chamado “pacto ético” anunciado por Rafael Correa no dia 24 de maio de 2016 em seu relatório anual de trabalho. Ele o fez precisamente em meio ao escândalo provocado nessa época pelas revelações dos “papéis do Panamá” e pela vinculação de vários funcionários do correísmo. Foi uma espécie de fuga para frente. Assim, já desde as suas origens, o “pacto ético correísta” soava como um oximoro com sabor de sarcasmo. Correa chamava à ética exatamente depois da revelação de vários casos de corrupção no próprio correísmo, especialmente pela vinculação dos “papéis do Panamá” com a corrupção na Petroecuador.
Tão particular e contraditória origem do “pacto ético correísta” nos dá o argumento central para afirmar que esse “pacto” é a semente de um novo fetiche do correísmo, um a mais em uma longa lista. Mas a condição fetiche do pacto não está apenas em sua origem, mas em muitas outras condições que lhe permitiram nascer.
O apelo de Correa à ética é um fetiche claro, pois com que cara o correísmo se apresenta como o “grande campeão” contra a corrupção, quando dentro do seu próprio governo vai se descobrindo uma galopante corrupção? A “matriz corruptiva” do correísmo fez com que houvesse casos que mesmo após serem conhecidos no exterior, não foram investigados no país ou foram investigados com uma lentidão comprometedora. Basta pensar no caso da Odebrecht: Correa expulsou esta empresa por ser “corrupta e corruptora” em 2008, mas alguns anos depois, após uma reunião com o então presidente Lula, ela retornou e recebeu vários contratos sem licitação. Outro exemplo foi a proteção para a saída da Petrobras, sem que a empresa assumisse suas responsabilidades no Equador (situação que teria dado argumentos à Occidental na arbitragem internacional que acabou sendo vencida pelo Estado equatoriano, e que poderia pesar em muitos outros litígios petroleiros).
Estes são apenas dois exemplos de uma série de casos de uma corrupção exposta inclusive por ex-funcionários correístas, mas que Correa minimiza dizendo que são ridículas, assim como a propina “não representou perdas econômicas para o Estado”. O correísmo chegou inclusive a propor a falácia de que há corrupção no setor público por causa de um corruptor privado e estímulos externos, como a existência de paraísos fiscais. Semelhante afirmação significaria, por exemplo, que para reduzir a corrupção no setor público bastaria eliminar estes paraísos, como propôs o próprio Correa.
Esta última é uma verdadeira falácia, pois, não poderiam os corruptos encontrar outros mecanismos para apropriar-se de fundos públicos e depositá-los em um lugar seguro? As práticas de esconder recursos nos paraísos fiscais não vão desaparecer nem mesmo com a consulta que Correa propôs em seu “pacto ético”, na medida em que se fortaleceria a figura dos “laranjas”. Esta é uma questão que a lei que a Assembleia Nacional deve aprovar deve considerar. Além disso, os paraísos fiscais oficialmente reconhecidos no país são aqueles que constam da lista do Serviço de Rendas Internas, que podem ser excluídos sem necessariamente guardar correspondência com os paraísos fiscais realmente existentes no mundo (por exemplo, Hong Kong).
Mesmo no caso concreto dos paraísos fiscais, o correísmo não tem qualidade ética para levantar a luta contra estes. Recordemos que, para favorecer empresas de mineração – sobretudo chinesas –, Correa pediu a eliminação de uma disposição legal que proibia as empresas estrangeiras, que trabalhavam no Equador, de estarem em paraísos fiscais. Além disso, Correa, por decreto, em setembro de 2015, derrogou a disposição que impedia vinculação com os paraísos fiscais àqueles que pretendiam ser fornecedores do setor público.
Tenhamos presente, também, que entre os correístas há vários militantes com depósitos ou empresas em paraísos fiscais, como, por exemplo, o Procurador-Geral Galo Chiriboga, a ex-ministra dos Transportes e Obras Públicas Maria de los Ángeles Duarte, ou Carlos Pareja Yanuzzelli no mundo petroleiro (envolvido no caso de corrupção “mais grave dos últimos 10 anos”, segundo o próprio Correa). Mais, Correa pôs no pelourinho para o escárnio público os jornalistas equatorianos que ajudaram a expor a podridão dos “papéis do Panamá”.
Certamente, tais práticas de penalização não são novas. Correa, que quer aparecer como interessado na transparência, perseguiu diretamente membros de um observatório cidadão que revelou as gestões obscuras de seu irmão com empresas do Estado: dois observadores do caso conhecido como “grande irmão” foram condenados a um ano de prisão. Algo semelhante acontece com os membros da Comissão de Luta contra a Corrupção, organizada pela sociedade civil, por iniciativa dos movimentos de trabalhadores e indígenas, que foram alvo de vários processos penais por apresentarem denúncias de corrupção no governo correísta.
Quanto a um verdadeiro Pacto Ético – além do mais indispensável –, por que não se faz uma apresentação pública de todos os funcionários que entre 2007 e 2016 tiveram contas ou empresas domiciliadas em paraísos fiscais? Por que se esperou até a revelação dos “papéis do Panamá” para que o tema adquirisse relevância? Inclusive, por que não aprovou em 2009 a proposta de lei de extinção de domínio, que permitia ao Estado tomar posse dos bens apreendidos em operações de narcotráfico e de corrupção, que estariam a cargo dos tribunais penais e não dos tribunais civis? Esta última reforma legal deu bons resultados na Colômbia.
Chega a ser irritante o fato de que Correa trate de encabeçar a reivindicação para que os equatorianos não expatriem seus recursos, quando ele mesmo – com os recursos obtidos de um banco graças a um julgamento que ganhou quando já era presidente – comprou um apartamento na Bélgica, país que na Europa é considerado como um paraíso fiscal.
Quer gostemos ou não, o problema da corrupção não é apenas externo, mas interno. Grande parte da corrupção originou-se do próprio fato de que o correísmo centralizou muito poder, sem ter uma fiscalização séria. Procurador, auditor fiscal, juízes e juízas, assim como a Assembleia Nacional foram testemunhas surdas, cegas e, sobretudo, mudas dos contínuos abusos de poder. Tal abuso de poder é parte da essência da corrupção, como foi definido na página 25 do Plano de Governo da Aliança País 2007-2011, em 2006.
Mesmo em termos econômicos evidencia-se a condição fetiche do “pacto ético correísta”. As próprias fontes oficiais assinalam que somente entre janeiro de 2014 e outubro de 2016 saíram do país cerca de 4,5 bilhões de dólares para paraísos fiscais (segundo as investigações dos “papéis do Panamá”). Tiveram que passar 10 anos para que Correa se desse conta do problema dos paraísos fiscais, apesar de que as fugas para esses destinos de capitais, muitas vezes de origem ilícita, sejam milionárias? Era mais urgente definir, em 2011, o futuro dos cassinos e das touradas em nível cantonal, através de consulta, e não definir naquela época a questão dos paraísos fiscais?
Se é tão urgente impedir a fuga de recursos para paraísos fiscais, por que não foi apresentado antes um projeto de lei econômico-urgente que regulasse o papel que estes cumprem nas contas de funcionários públicos e familiares assim que se tomou conhecimento dos “papéis do Panamá”? Correa, que atualmente controla diretamente 100 dos 130 membros da assembleia parlamentar, poderia ter proposto uma reforma legal que impedisse, de repente, que os funcionários públicos tivessem vínculos com paraísos fiscais. Considerando que o correísmo fez tantas reformas legais desse tipo, uma a mais não teria sido coisa do outro mundo (e sem o custo da realização desta consulta).
Na verdade, Rosanna Alvarado, vice-presidenta da Assembleia Nacional – destacada militante do Aliança País, partido de Correa – disse, no dia seguinte à consulta, no dia 20 de fevereiro de 2017, que esta não era necessária.
O apelo à consulta feito por Correa sobre os paraísos fiscais nem mesmo contribuiu para um exercício pedagógico que incitasse à reflexão de um tema tão importante. No Equador, não houve um grande debate sobre o tema, ao contrário do que defendem alguns funcionários públicos e meios de comunicação afins ao correísmo. A consulta passou quase despercebida. Esta praticamente transformou-se em um “fantasma” eleitoral. Basta observar que não se esgotou o fundo concedido pelo Conselho Nacional Eleitoral, destinado ao financiamento da campanha sobre esta questão. Esta é uma situação quase única na história deste mecanismo.
A consulta sobre os paraísos fiscais se deu em meio à odisseia eleitoral vivida no dia 19 de fevereiro, onde as sombras da fraude e da corrupção obscureceram uma confusa contagem de votos do primeiro turno das eleições. Tão confusa era a situação que Correa antecipadamente comemorou – com grande entusiasmo – o sucesso do seu binômio eleitoral em um único turno a partir dos resultados de um exit poll financiado com fundos públicos e que provou ser espetacularmente equivocado (ou manipulado?). Depois, em meio às fortes suspeitas de fraude, e seguindo seu estilo contraditório, Correa afirmava que “se alguém tivesse que falar de fraude deveria ser o Aliança País”. Tamanha foi a confusão que até mesmo os meios de comunicação se focaram, uns em posicionar a vitória de Moreno no primeiro turno, e outros em posicionar Lasso como credor de um segundo turno.
Em meio a esse alvoroço, os resultados da consulta popular sobre o “pacto ético correísta” passaram a segundo plano. No entanto, o correísmo beneficiou-se do caos eleitoral para tirar proveito desta consulta para legitimar o seu “pacto ético”. De fato, ao se tomar conhecimento de que 55% dos eleitores votaram pelo “sim” na consulta popular, Correa assumiu o resultado como um sucesso. Devemos reconhecer que fora do país o fato foi recebido com algum interesse.
Acabar com os paraísos fiscais é uma tarefa urgente (mas não a única) para frear a especulação desenfreada do capitalismo em sua fase imperialista. O mercado financeiro internacional, sobretudo através da especulação, é um motor de aceleração impiedoso de todos os fluxos econômicos: exacerba a exploração da força de trabalho para além da capacidade dos aparelhos produtivos e exacerba os extrativismos (que Correa tanto estimula, diga-se de passagem) para além da resistência e resiliência da Terra. Tudo com a finalidade de garantir os processos mundiais de acumulação capitalista.
O trabalho de acabar com os paraísos fiscais parece simples, mas é extremamente complexo. Este objetivo não se conseguirá com simples declarações ou ações com pouco conteúdo efetivo. Mais, semelhante processo requer uma ação conjunta em nível global, incluindo a formação de uma institucionalidade mundial diferente. Portanto, não é sequer confiável a “luta” do correísmo contra estes verdadeiros oásis de corrupção internacional, se, simultaneamente, não se fizer algo sério para situações de corrupção descontrolada dentro de casa, como as que se vive atualmente no Equador.
Por isso, a convocatória para a consulta proposta pelo presidente Rafael Correa para impedir que cheguem ao poder aqueles que têm depósitos ou empresas que escondem suas propriedades em paraísos fiscais foi uma manobra política. Essa manobra, aparentemente, concentrou-se em três objetivos: permitir que Correa participe da campanha eleitoral; desgastar a imagem do candidato Guillermo Lasso; e, aproveitar a distração da opinião pública – sobretudo internacional – para posicionar a futura imagem “progressista” de Rafael Correa.
Sobre o primeiro objetivo, no começo da convocatória para o “pacto ético” parece que Correa pensou em usar a consulta como uma janela para entrar diretamente na campanha eleitoral presidencial e dos deputados. No entanto, de fato, a consulta transformou-se em um “fantasma”, o que suscita algumas perguntas: por que Correa não embarcou de cheio na campanha pelo “Sim” nesta consulta popular? Será que ficou com medo de que a consulta se transformasse em um referendo contra ele?, que, com certeza, teria perdido, como aconteceu nas eleições de 2014. Por conseguinte, o primeiro objetivo do correísmo não foi plenamente alcançado. Aliás, vale a pena mencionar que a oposição realmente tomou a consulta como inútil, e desperdiçou a oportunidade para unir seus votos contra o correísmo sem ter que se complicar com embaraçosas alianças.
Sobre o segundo objetivo, obviamente, a consulta estava dedicada ao candidato da banca: Lasso, considerando que este possui propriedades em paraísos fiscais, informação que se tornou pública logo depois que Correa lançou seu “pacto ético”. No entanto, a briga entre Correa e Lasso apresenta uma chamada paradoxal, pois, de fato, foi com o correísmo que Lasso “melhorou exponencialmente sua renda”. Além disso, o próprio Correa chegou a admitir que, em seu governo, “o único problema da banca são os grandes lucros”.
E, com efeito, durante o correísmo a banca atingiu os lucros mais altos da sua história, sendo o Banco de Guayaquil (propriedade de Lasso) o terceiro banco com maiores lucros do país. O Banco de Guayaquil foi, inclusive, o principal beneficiário dos investimentos e depósitos da Corporação Financeira Nacional, pelo menos em 2011. Ou seja, no econômico o correísmo não foi um grande opositor dos bancos, e até no político houve uma época em que Correa e Lasso se encontravam sem problema. Agora, ao contrário, já confirmado o segundo turno, Correa, por um lado, minimiza a candidatura de Lasso afirmando que será “fácil de derrotá-lo”, e em seguida, convoca para o confronto contra o banqueiro, e inclusive chegou a afirmar que, no caso de vitória de Lasso, poderia haver uma perseguição contra ele.
O objetivo que parece atingir-se com clareza é o uso da consulta, em meio à distração eleitoral de uma campanha caracterizada pela apatia, para posicionar – particularmente fora do Equador – o “Correa progressista”. De fato, Correa começou a promover a “inovação” de seu “pacto ético” e chegou a dizer que levaria a proposta equatoriana contra os paraísos fiscais às Nações Unidas. Se a isto acrescentarmos que Correa possui no exterior o seu próprio coro de bajuladores, incluindo vários meios de comunicação internacionais, então, com muita segurança, o posicionamento futuro do caudilho no exterior será promovido com força.
Por isso, temos a impressão de que a luta contra os paraísos fiscais no Equador corre o mesmo risco que, no seu tempo, correram o Bem Viver e o próprio discurso de esquerda: um uso fetiche, vazio de conteúdo, contraditório desde as suas origens, encaminhado a favorecer a imagem do correísmo, neste caso mais do caudilho, tanto em nível local como no exterior.
Deve ficar claro que, com isto, não negamos em absoluto o eco internacional da consulta feita no Equador e como esta poderia efetivamente ajudar a desarmar os paraísos fiscais, contribuindo para posicionar a discussão sobre esta questão. Mas, na verdade, o que tratamos de dizer é que o correísmo se lançou para uma consulta que, mesmo em termos jurídicos, era desnecessária. Na vida política equatoriana acabou sendo um “fantasma” e, pior ainda, acabou transformando a luta contra os paraísos fiscais em um fetiche a mais do correísmo.
Em outras palavras, a consulta fantasma permitiu que a bandeira da luta contra os paraísos fiscais fosse roubada pelo correísmo para que este, uma vez mais, vendesse uma imagem de “reivindicação e luta social” aos olhos do país e do mundo. Imagem que contrasta com os múltiplos casos de corrupção que carcomem o correísmo internamente. Mesmo esta imagem do correísmo contrasta com o fato de que o correísmo serviu como alavanca em benefício dos grandes grupos econômicos do país, que – sem dúvida – possuem interesses em paraísos fiscais. O próprio correísmo disse-o em um documento interno: “nunca antes os grupos econômicos poderosos estiveram melhor, nunca antes os mais excluídos da Pátria estiveram menos pior”.
Em síntese, a consulta proposta pelo presidente Rafael Correa sobre os paraísos fiscais era desnecessária. E ao não haver um debate sério e amplo, um tema de semelhante magnitude passou pela vida política do país como “fantasma”. O resto é pura propaganda e fetichismo, especialmente pensados na imagem do caudilho em seu retiro belga. Caudilho que, desde já com suas promessas messiânicas de retorno, parece ser o novo aspirante ao título de “eterno ausente”.
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Entre paraísos e fantasmas: como Correa prepara o seu futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU