04 Novembro 2016
Entre lembranças e a indignação de quem ainda sofre os efeitos da destruição pela lama, Seminário Rio de Gente apresentou estudos que revelam a dimensão dos impactos ambientais e sociais na bacia do Rio Doce.
Painel discute impactos sociais sobre os atingidos Foto: Julia Moraes / Greenpeace
A reportagem é publicada por Greenpeace, 02-11-2016.
No centenário Hotel Providência, antigo seminário de freiras e internato de moças que recebeu os desabrigados pela lama da mineradora Samarco logo após o rompimento da barragem de Fundão, pesquisadores, ambientalistas, estudantes, lideranças comunitárias e alguns dos atingidos se reuniram para discutir a dimensão dos impactos causados pelo desastre, um ano atrás.
O Seminário Rio de Gente, realizado nos dias 31/10 e 1/11, apresentou as primeiras avaliações dos estudos independentes que foram financiados com recursos de doações obtidos com shows beneficentes um mês após a tragédia. Pesquisadores de universidades e institutos brasileiros vêm analisando o tamanho dos danos ambientais e sociais nas áreas de água, flora, fauna, saúde e direitos dos atingidos a partir de expedições à região para coletar dados e amostras.
Os estudos vieram suprir a carência por parte das comunidades de dados oficiais que ou não existem ou não são divulgados pelo poder público. E o que se pôde constatar são implicações profundas, abrangentes e de longo prazo não só para a natureza, mas para a vida das pessoas. Não bastasse quem perdeu tudo no rompimento da barragem, a lama de rejeitos continua a fazer estragos e a impor sofrimento.
No caso da água, por exemplo, diante da inviabilidade de captá-la no rio, a tendência é que muitos procurem poços artesianos de forma desesperada, sem avaliar sua qualidade. A realidade encontrada por pesquisadores do Instituto de Biofísica da UFRJ foi a de agricultores familiares usando a água dos poços em suas plantações e para consumo humano e dos animais sem saber que estão com níveis de ferro e manganês bem acima do permitido até mesmo para a irrigação.
Ou seja, a contaminação da lama nos rios também chegou ao subterrâneo. “É uma água de péssima qualidade, com gosto, cheiro e cor. Embora os altos níveis desses metais não ofereça risco de toxidade no consumo das plantas, eles prejudicam o seu crescimento e podem inviabilizar o cultivo. Ouvimos muitos relatos de agricultores que estão passando dificuldades, sem fonte de renda, pois muitas de suas plantações morreram após serem regadas ou não estão se desenvolvendo ou dando frutos”, conta o pesquisador André Pinheiro de Almeida. Para a saúde humana, o risco da ingestão direta da água com excesso de manganês pode causar infertilidade e sintomas próximos ao Parkinson em longo prazo.
Segundo ele, a recuperação da contaminação por metais não será algo fácil ou rápida. “O metal não vai deixar de ser metal nem vai sair do rio sozinho. Ao contrário, espera-se que com o período de chuvas a lama acumulada nas margens volte a lançar mais poluentes para as águas”, diz Almeida.
A acumulação de metais pelos animais também é foco de atenção dos pesquisadores da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana), pois, por meio da cadeia alimentar, a contaminação na água pode se espalhar pelo ambiente terrestre e afetar a biodiversidade. Os girinos, por exemplo, são larvas aquáticas de animais terrestres que podem acumular os poluentes em seus organismos e transmiti-los para os predadores. “Como é praticamente impossível impedir que os animais acessem as áreas contaminadas, o nosso trabalho é de observação de como esse processo de bioacumulação se expande. É um estudo de longo prazo”, afirma a doutora em Zoologia Flora Juncá.
Do lado social, os efeitos da lama também se revelam devastadores para famílias que ainda lutam para recuperar suas vidas e fazer garantir seus direitos. Tanto pelos problemas de saúde físicos e emocionais causados pela lama quando pela quebra dos modos de vida, lazer e trabalho de quem tinha uma relação de interdependência com o rio.
“A empresa segue a lógica econômica de reconhecer como impactos apenas os danos estruturais das casas ou de quem perdeu sua atividade de renda, mas quando você chega em campo e aprofunda a investigação com as pessoas e entra em suas histórias, descobre que há danos intangíveis mais profundos que extrapolam a restrição da Samarco e estão sendo negligenciados”, diz Hauley Alvim, sociólogo, surfista e um dos pesquisadores do estudo sobre impactos sociais com os atingidos na foz do Rio Doce, em Regência (ES).
Ele cita como exemplo o caso de um rapaz que é pescador, surfista, dono de pousada e pai. “Há uma sobreposição de danos que a empresa não reconhece. São histórias de quem teve rompida sua ligação com o ambiente e com a comunidade”, afirma.
Ao avaliar o que foi feito no âmbito da justiça neste primeiro ano pós desastre, o promotor de Meio Ambiente do Ministério Público de Minas Gerais, Carlos Eduardo Ferreira Pinto, apontou como a tragédia socioambiental se tornou uma tragédia processual, a partir de disputas de competência na justiça que levam à protelação das medidas, e do “Acordão” firmado com a União e os governos de Minas e Espírito Santo que só serviu para blindar os responsáveis e terceirizar as consequências do desastre.
“Precisamos rediscutir o acordo, que abriu caminho para a própria Samarco decidir o que fazer. Não são raros os descumprimento de obrigações, e as multas ambientais aplicadas são cosméticas, não trazem nenhum resultado para a comunidade, a empresa sempre recorre”, afirma. Apesar de o Acordo Interfederativo ter sido anulado, as empresas continuam atuando com base no que foi firmado nele.
A Fundação Renova, criada pela Samarco, Vale e BHP por meio do “Acordão” para ser a gestora de todas as ações de compensação e reparação, tem em seu conselho deliberativo apenas membros indicados pelas empresas. Na prática, é a Samarco decidindo o que é mais importante reparar e onde, quanto e quando aplicar os recursos, e não as comunidades estabelecendo suas prioridades. “Até o momento, o que está em andamento é a construção do dique de contenção na região de Bento Rodrigues. O argumento é de segurança, mas o que vemos são fortes indícios de uma grande estrutura de barragens que contemple um sistema maior de rejeitos, como já estava nos planos de expansão da empresa antes do desastre. O MP é totalmente contrário a isso”, denuncia o procurador.
No segundo dia do Seminário, os participantes se dividiram na parte da manhã em duas visitas de campo a locais onde as pesquisas de flora e saúde foram desenvolvidas. No caminho, foi possível ver como o desastre ainda se faz presente no "encontro das águas", do Ribeirão do Carmo com o rio Gualaxo, na lama que se acumula em suas margens e eliminou a mata ciliar, nas casas destruídas ou soterradas, nas marcas do barro nas árvores revelando o nível da onda marrom que as atingiu.
"O que mais me chocou nesse caminho foi ver o gado deitado sobre a lama ao lado do rio, bebendo aquela água suja, comendo o capim plantado pela Samarco para disfarçar o problema. Como o gado, vivem as pessoas, também de forma disfarçada. Para mim falta dignidade, e isso é o mínimo que qualquer um tem na vida”, disse a médica e presidente do Instituto Saúde e Sustentabilidade, Evangelina Vormittag.
“Eu não tinha me aproximado tão perto da água suja desde o desastre. Hoje foi um dos dias mais tristes da minha vida. Mas esse sentimento tem de ser exposto na medida em que estimula o trabalho. Temos que aproveitar as oportunidades como a deste encontro para estabelecer as ações futuras”, defendeu Shirley Krenak, uma das lideranças da comunidade indígena Krenak.
No final do encontro, uma roda de discussão trouxe muitos momentos de lembranças doloridas, sentimentos sufocados e pedidos indignados de justiça, mas também ideias e propostas sobre como dar encaminhamento aos estudos e potencializar a força coletiva da comunidade em ações diretas. Entre as iniciativas, a de se criar núcleos catalizadores nos locais atingidos, criando uma rede de colaboradores do Rio Doce.
“O desastre é tão grande que quando olhamos as consequências para todos a impressão é de ser impossível recuperar isso. Mas isso acredito que, com a mobilização de todos, de cada um, podemos fazer com que esse mal seja compensado mais rápido, e impedir que outras tragédias como essa aconteçam. Esperamos que esses estudos possam contribuir nessa direção”, diz Fabiana Alves, da campanha de Água do Greenpeace.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Desastre em Mariana: uma tragédia ainda em curso - Instituto Humanitas Unisinos - IHU