19 Outubro 2016
Perante as consequências sociais da mudança climática e das migrações, Gemenne propõe a necessidade de repensar conceitos como soberania, Estado, população e território.
“A articulação entre território, população e Estado terá de ser profundamente repensada. Mas seguimos sendo prisioneiros de marcos de pensamento que datam do século XVII”. François Gemenne pesquisa o impacto social das migrações e a mudança climática na Universidade de Lieja e no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po), entre outras instituições. Antes de chegar ao país (Argentina) para participar de diversas atividades, convidado pelo Centro Franco Argentino de Altos Estudos (UBA-Embaixada da França) e pela Faculdade de Ciências Exatas, refletiu sobre esses problemas em conversa com o Página/12.
A entrevista é de Javier Lorca e publicada por Página/12, 18-10-2016. A tradução é de André Langer.
O que significa e que implicações têm a denominação de “antropoceno” para a era que estamos vivendo?
O Antropoceno é o novo período geológico em que, segundo os geólogos, estamos imersos de agora em diante. Poderia ser chamado de “era do ser humano” e se define por uma profunda ruptura: pela primeira vez, os seres humanos se converteram na principal força de transformação do planeta, acima das forças geológicas. Mas, não é apenas um conceito geológico; também é uma formidável proposta política: implica que a Terra transformou-se em um sujeito da política, não apenas um objeto.
O Antropoceno é o encontro da história do homem, que tem alguns poucos milhares de anos, com a história da Terra, que se estende por milhares de milhões de anos. No entanto, há algo de enganoso em considerar que todos os homens são igualmente responsáveis pelas transformações do Antropoceno: de fato, “a era dos humanos” é, sobretudo, a era de alguns homens, ao passo que a maioria dos seres humanos são, na realidade, vítimas destas transformações.
Que desafios esta nova era coloca para a geopolítica global? Que tensões ela provoca em conceitos chaves como território, fronteira, soberania, justiça universal?
O Antropoceno nos deve levar a rever completamente o lugar do meio ambiente na política: precisamos inventar uma nova geopolítica; literalmente, uma política da Terra. Todos os conceitos sobre os quais se baseiam as relações internacionais contemporâneas são postos em questão. A Terra já não é mais o cenário das relações de poder, é um sujeito de política, e isto implica repensar os conceitos chaves das relações internacionais. A soberania nacional, por exemplo, foi concebida no século XVII como o princípio norteador das relações internacionais: o soberano terá o controle total de um território, que se corresponderá com uma população, e esses territórios estarão separados por fronteiras.
Mas, qual é o sentido dessa soberania no momento em que os Estados vão perder porções inteiras de seus territórios pelo aumento do nível do mar? A mudança climática vai deslocar as fronteiras. E qual será a soberania dos Estados insulares engolidos pelo oceano? A articulação entre território, população e Estado terá de ser profundamente repensada. Nunca antes na história da humanidade os povos dependeram tanto uns dos outros. Mas continuamos sendo prisioneiros de marcos de pensamento e de análises que são do século XVII. O Antropoceno também nos obriga a repensar a soberania no sentido de qual será o seu significado se a Terra se tornar inabitável? Sobre o que se exercerá a soberania?
Em seus trabalhos, você analisa a situação dos “refugiados ambientais”. A quem se refere e que políticas são necessárias para abordar este fenômeno?
Atualmente, as degradações do meio ambiente, muitas das quais estão relacionadas à mudança climática, converteram-se em um importante fator de migrações e deslocamentos de populações. É uma realidade presente, não é apenas um risco futuro e distante. Os chamados “refugiados ambientais” são aqueles que se veem forçados a abandonar suas casas devido à degradação do meio ambiente, que pode ser repentina ou progressiva: enchentes, secas, a degradação dos solos, furacões, etc.
Por trás da ideia de “refugiados ambientais” há situações migratórias muito diferentes que reclamam respostas políticas também muito diferentes: uma pessoa que foge de uma catástrofe, por exemplo, não tem as mesmas necessidades que outra que migra para a cidade durante a temporada das chuvas e depois retorna para sua casa. As respostas políticas têm de ser contextuais.
Em outubro de 2015, 110 Estados aprovaram em Genebra o programa de proteção da Iniciativa Nansen, uma série de princípios para proteger da melhor maneira os direitos dos “refugiados ambientais – que não são realmente refugiados, não são reconhecidos como tais pelo direito internacional. A implementação deste programa deve ser uma prioridade nos países que o adotaram, assim como o desenvolvimento de políticas de adaptação à mudança climática que reconheçam o papel das migrações.
Como caracteriza a crise de refugiados que a Europa está atravessando, em particular com o caso da Síria, e as respostas que os Estados da União Europeia deram?
Trata-se, antes de tudo, de uma crise da humanidade. Representa o fracasso do ideal europeu e da renúncia da classe política diante das ideologias xenófobas e nacionalistas. Este período será julgado muito duramente pela história: uma das piores tragédias humanitárias acontece às portas da Europa e não somente não fazemos nada para deter a guerra na Síria, como deixamos morrer no mar aqueles que estão fugindo do inferno.
Dois terços da população síria estão sendo deslocados atualmente. A maioria, dentro da própria Síria; e cerca de cinco milhões, nos países vizinhos: Jordânia, Líbano – onde uma de cada quatro pessoas é um refugiado – e, evidentemente, Turquia – que agora é o país que abriga o maior número de refugiados do mundo. Evidentemente, uma parte importante destes refugiados desejaria ir à Europa para tentar recuperar uma vida normal, mas a única resposta que a Europa lhes dá é o fechamento e o controle das fronteiras.
Esta crise é o resultado de uma incapacidade – que já dura mais de 20 anos na Europa – para oferecer um projeto político comum em matéria de asilo e imigração. Sem projeto político, o fechamento da fronteira converteu-se no alfa e no ômega. Em vez de criar vias seguras para chegar ao continente europeu e em vez de organizar a chegada de refugiados à Europa sobre a base do modelo organizado pelos governos da Alemanha e da Suécia, os demais governos preferiram deixar que se instalem o caos e a tragédia. Os governos preferiram deixar que os migrantes se afoguem no mar em vez de permitir que tomem um avião.
Que ideias e pressupostos estão por trás das propostas de fechamento das fronteiras?
Atualmente, o fechamento das fronteiras parece ser o único horizonte das políticas migratórias na Europa e em todo o mundo, embora, sem dúvida, seja menos marcado na América do Sul. As fronteiras tornaram-se totens, porque remetem a uma grande fantasia política: a ideia de que as fronteiras são um instrumento eficaz para regular as migrações. Para a maioria das pessoas e dos governos, fechar as fronteiras vai impedir a imigração e abri-las vai criar uma imigração descontrolada. O resultado desta fantasia é que o fechamento das fronteiras aparece como a única opção possível e sua abertura, como uma utopia ingênua.
Creio que isto é interpretar profundamente mal a realidade das migrações: não é uma fronteira fechada o que vai impedir a passagem de um migrante, do mesmo modo que não é uma fronteira aberta o que vai decidir deixar seu país. Todas as pesquisas demonstram isso e, além disso, temos a evidência diante dos nossos olhos: a abertura das fronteiras no espaço de Schengen não criou um caos migratório! (NdR: o espaço de Schengen abarca 26 países europeus, nem todos parte da União Europeia.)
E neste momento a Europa enfrenta um fluxo migratório muito importante, ao passo que suas fronteiras exteriores estão sendo controladas como nunca antes. Devemos compreender que a migração não é determinada pelas fronteiras: nunca uma fronteira fechada vai evitar que seja atravessada por um migrante, porque muitas vezes sua vida depende dessa passagem. O fechamento das fronteiras não detém a migração, mas a torna mais difícil, mais cara e, sobretudo, mais mortal.
Como incide nesse contexto a ameaça terrorista?
É evidente que exerce um papel importante; seria absurdo negá-lo. Quando se é atacado, o primeiro reflexo provavelmente é fechar as fronteiras para se proteger. Mas os europeus parecem não se dar conta de que a maior parte dos terroristas nasceu e cresceu na Europa. Devemos estar conscientes de que a fronteira ainda representa, para uma parte da população, uma forma de defesa contra as ameaças externas. Há uma brecha cada vez maior entre aqueles para quem a fronteira já não representa nada e aqueles para quem as fronteiras representam a última proteção. E é particularmente isso o que pesou no Brexit. Reduzir essa brecha é um desafio essencial para as nossas sociedades.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Precisamos inventar uma nova geopolítica”. Entrevista com François Gemenne - Instituto Humanitas Unisinos - IHU