19 Outubro 2016
“A pior decisão é tratar a Rússia bruscamente”. O historiador da Igreja ortodoxa Giovanni Codevilla, autor de uma monumental História da Rússia e dos países limítrofes, em quatro volumes, acaba de publicar o último da série, A nova Rússia – 1990-2015. O Vatican Insider o entrevistou no momento em que as trombetas da guerra ficam cada vez mais sinistras e parecem voltar a soprar ventos da Guerra Fria na Europa.
Giovanni Codevilla lecionou por muito tempo Direito Eclesiástico Comparado na Universidade de Trieste e hoje é um dos maiores estudiosos europeus de história das relações entre Estado e Igreja na Rússia e na Europa oriental.
A entrevista é de Domenico Agasso Jr e publicada por Vatican Insider, 18-10-2016. A tradução é de André Langer.
Professor, as últimas decisões militares da OTAN em relação ao leste parecem levar a um isolamento da Rússia de Putin. Estamos às voltas novamente com a Guerra Fria?
Parece-me um desastre certa política exterior dos Estados Unidos. Devemos lembrar o que aconteceu no Iraque ou na Líbia. Ao não terem uma história diplomática, neste sentido são claramente inferiores aos russos. Por exemplo, existe a colaboração que Putin começou com Erdogan, e isso depois da derrubada de um avião militar. Infelizmente, a Europa sofre a política externa estadunidense. Deve haver uma possibilidade de chegar a um “modus vivendi” com a Rússia, devemos conhecer sua maneira de pensar. A pior decisão é tratar bruscamente com os russos.
Falemos sobre o último volume da sua história do país. O que descobriu sobre a situação religiosa da Rússia atual?
Devemos distinguir o ponto de vista oficial dos dados de fato. Antes de tudo, em 1990 foi promulgada uma lei que garantia a absoluta liberdade de culto a todas as religiões. Os ortodoxos não gostaram muito desta lei, e em 1997, Boris Yeltsin, apesar de ser contra, teve que ceder e promulgar uma nova lei que favorecesse mais a Igreja ortodoxa, segundo a qual se reconhecem quatro religiões “históricas” para a Rússia: a ortodoxia, o islã, o budismo e o hebraísmo. Todas as demais podem existir legitimamente sempre e quando agirem no âmbito da própria comunidade e não façam proselitismo.
Como é definido e compreendido o proselitismo na Rússia?
Há uma sentença da Corte Constitucional russa que define o proselitismo como a tentativa de converter mediante a violência, o engano e o dinheiro. Mas, na realidade, é proibida como proselitismo qualquer atividade para converter à própria fé. O problema é a maneira como se interpreta a lei. E, recentemente, houve novas restrições com normas que deveriam funcionar para frear o fundamentalismo islâmico, mas que na realidade afetam principalmente os cristãos evangélicos. Devemos reconhecer que a história ainda conta muito. No final do século XVI, o jesuíta Possevino contava que o czar Ivan o Terrível, após saudar as delegações estrangeiras, lavava as mãos para se purificar.
Falemos sobre as relações entre a Igreja católica e a Igreja ortodoxa russa. O encontro em Cuba entre o Papa e o Patriarca Kirill foi um passo importante...
Claro, foi importante. A relação, como se sabe, tem claros-escuros. Há as aberturas que a Igreja católica espera e a extrema prudência do mundo ortodoxo russo. Agora, depois da conclusão dos trabalhos da última sessão da Comissão para o Diálogo Católico-ortodoxo, que aconteceu em Chieti (Itália), os ortodoxos russos pediram que se incluísse na agenda a questão dos greco-católicos, dos “uniatas”. Eles apresentam o problema ao sustentar que a volta à plena comunhão com Roma das chamadas Igrejas “rutenas”, isto é, aquelas que até o final do século XVII faziam parte da Confederação Polonesa-Lituana, teve motivos principalmente políticos, devido à ingerência dos soberanos poloneses. Na realidade, a questão é muito mais complexa...
Poderia explicá-la?
Até mesmo alguns historiadores russos da Igreja reconhecem que o fenômeno não pode ser explicado unicamente pelas pressões do soberano polonês. Naquela época, houve uma fratura entre o episcopado e os leigos. O Patriarcado de Constantinopla tinha dado um grande poder às confrarias dos leigos, e os bispos praticamente estavam “submetidos”. Este foi um dos motivos que levou os bispos das Igrejas “rutenas” a aproximar-se de Roma. Também devemos recordar que estes bispos viram o nascimento do Patriarcado de Moscou, reconhecido pelo Patriarca de Constantinopla em 1589 depois que este último tivesse sido preso durante um longo tempo em Moscou em uma espécie de jaula de ouro. Os bispos “rutenos”, que preferiram permanecer com Constantinopla, decidiram dirigir-se a Roma.
Para voltar ao presente: é difícil imaginar que a Santa Sé pudesse abandonar a Igreja greco-católica mais importante, ou seja, a ucraniana, que tem milhões de fiéis nos Estados Unidos, na América do Sul e na Austrália. O problema ucraniano se complica pela existência, como se sabe, de outras duas Igrejas ao lado da Igreja vinculada a Moscou: a Igreja ortodoxa do Patriarcado de Kiev e a Igreja autocéfala ucraniana, para não mencionar grupos menores. E o Patriarcado de Moscou teme uma hemorragia de fiéis para a Igreja do Patriarcado de Kiev, em vista de uma unificação da Ortodoxia ucraniana, segundo o lema preferido dos autocéfalos: “Uma nação, uma língua, uma Igreja”.
A Ucrânia é, entre outras coisas, um país em que a prática religiosa ainda tem muita vida e força, e no qual o número das comunidades ortodoxas das três jurisdições (18.284) é superior ao número das comunidades ortodoxas de toda a Federação Russa (16.076), e devemos ter em conta que a população russa é três vezes a da Ucrânia.
Você diz isto porque acredita que a prática religiosa não é tão forte no resto da ex-União Soviética?
De fato, na Rússia aumenta o número das igrejas, dos lugares de culto, que contam com financiamento estatal, mas a prática religiosa diminuiu em relação aos primeiros anos após a queda do comunismo soviético, quando, usando uma expressão de Stefano Carpio, “batizava-se com a mangueira”, porque havia muitíssimos pedidos para voltar à fé depois da experiência do ateísmo de Estado. Agora, exceto no Natal e na Semana Santa, a frequência com que as pessoas participam dos serviços religiosos é baixa e o processo de secularização é visível.
Como se comporta o Estado?
A ortodoxia transformou-se na religião do Estado. O Estado se coloca como protetor da Igreja e esta se coloca como elemento de legitimação do poder (primeiro do czar e agora do presidente). Putin financia as organizações que defendem os valores cristãos. E, por isso, gosta dos tradicionalistas do Ocidente.
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“A pior decisão é tratar a Rússia bruscamente”. Entrevista com Giovanni Codevilla - Instituto Humanitas Unisinos - IHU