30 Setembro 2016
"A contribuição dos canonistas, por antiga tradição, não é só um cuidadoso exercício de uma técnica jurídica, mas também valiosa concretização de uma profecia eclesial. Infelizmente, hoje, sentimos falta quase totalmente da profecia dos canonistas."
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, leigo, professor do Pontifício Ateneu S. Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua.
O artigo foi publicado no seu blog Come Se Non, 27-09-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Desde o início do debate sinodal sobre a família, no início de 2014, ficou claro que um dos nós sobre os quais se apontariam a atenção e a elaboração eclesiais era a "lei canônica sobre o matrimônio" e a sua adequação para o anúncio do Evangelho na sociedade aberta. E todos os observadores puderam constatar que, nos discursos na Aula durante o Sínodo duplo, sobretudo aos canonistas seria necessário um suplemento de ânimo e uma ideia genial, um esforço extremo e um gesto atlético para introduzir novas distinções e reformular antigas verdades. No entanto, o que vimos, ao menos na Aula sinodal, foi muito diferente: quase todos aqueles que tomaram a palavra in re canonica muitas vezes brilharam por indistinção, por rigidez, por grosseria e por surdez. Encouraçando-se com a lei vigente, negavam a possibilidade de qualquer reformulação, de qualquer revisão, de qualquer reforma. Muitas vezes, pareciam vigilantes apenas de acordo com o mundo, não de acordo com o Evangelho. Temiam o futuro como a irrupção do mal, não esperavam mais a irrupção do bem "como um ladrão".
No debate científico, no entanto, não faltam contribuições de valor, que saem do canto da autorreferencialidade do código e configuram perspectivas significativas de reforma. Gostaria de considerar três vozes "laicas", que emergem do debate atual e que merecem uma atenta reflexão. São laicas não só por serem elaboradas por homens laicos, mas porque surgem de ambientes acadêmicos estatais e não eclesiais.
O professor Pierluigi Consorti, intervindo com um comentário no post anterior, focaliza uma série de questões que não estamos habituados a ouvir da voz dos canonistas. Eis as suas palavras, com algumas ênfases sublinhadas por mim:
"Eu imagino que uma leitura atual da instituição do matrimônio na realidade eclesial não pode se separar de uma reconstrução histórica que parta do dado evangélico e siga um itinerário quase bimilenar. Essa longa história produziu curvas nada fáceis de sintetizar, que, no entanto, precisam de uma síntese atual. Dou alguns exemplos: ‘O matrimônio é um sacramento’, mas os sacramentos, para serem tais, devem ter um fundamento evangélico: ele existe? Além disso, a sacramentalidade depende da fé e da reta intenção: todos os matrimônios, portanto, são magicamente sacramento? O direito canônico atual olha para o matrimônio apenas na fase genética (matrimônio ato) e avalia a sua validade observando apenas o momento da manifestação do consentimento (que é considerado como a essência do contrato): que espaço resta ao matrimônio entendido como relação? Parece-me que há muito material para pensar sobre como deve ser definida a questão hoje, tocando pontos nevrálgicos que não devem ser simplisticamente olhados através das lentes da tradição. A tradição serve se ajuda a comunicação do Evangelho, caso contrário, deve ser deixada.
Também poderia ser útil reler Mateus 19, 3-12, que é geralmente considerado como o fundamento evangélico da indissolubilidade do matrimônio cristão, como indiretamente voltado a negar a legalidade do repúdio (que não é exatamente o divórcio consensual). Os fariseus colocam Jesus à prova para ver se ele seguia o ensinamento jurídico mais restritivo (o repúdio apenas da mulher por parte do homem só é lícito no caso em que ela cometa adultério) ou o mais amplo (o repúdio apenas da mulher por parte do homem é lícito em mais casos: esta última hipótese – digamos, liberal – era proposta pela escola rabínica da qual Jesus provavelmente era mais próximo). Jesus Cristo evita a armadilha jurídica e muda o discurso (ele também faz isso no caso do julgamento da adúltera). Ele propõe a esses fariseus que não se confrontem sobre o dado jurídico para ver quem está errado e quem tem razão, mas que busquem o desígnio de Deus. Que nem todos podem entender. Parece-me que a questão ainda hoje é esta: <<<buscar o desígnio de Deus sem ficar atolados nas lógicas das escolas jurídicas."
Outro canonista, Stefano Sodaro, também ele laico, intervindo com outro comentário no mesmo post, traz à tona com clareza as potencialidades que o direito canônico poderia desempenhar. Também neste caso sublinho alguns aspectos do seu texto:
"A reflexão [...] e o comentário do Prof. Consorti dizem uma complexidade do Humano, por isso mesmo sacramento, quando posto diante do anúncio evangélico, que, um pouco paradoxalmente, a configuração dogmática dos sete sacramentos acabou bloqueando e fossilizando, como se todo o simbólico pudesse cair no jurídico, e a teologia toda, no código de direito canônico, que, como instrumento pastoral, já se tornou o fim ao qual a própria pastoral deve tender.
Porém, ao menos dois perfis, na minha modestíssima opinião, testemunham obstinadamente essa complexidade dentro do próprio ordenamento canônico.
Um é relativo à impossibilidade, normativamente estabelecida, de que as sentenças eclesiásticas sobre o estado das pessoas, incluindo, portanto, o matrimonial, alcancem a completude formal e irreformável do caso julgado.
E o outro é relativo à presença pacífica, embora de acordo com os cânones orientais – mas sempre católicos –, de que homens casados recebam o sacramento da Ordem até no grau presbiteral, implementando, com isso, uma admirável – mas, para nós, latinos, bastante desconcertante – dupla presença de laços existenciais que insistem em todas as dimensões da vida. Padres uxorados [casados], ‘esposos’ - recorrendo à linguagem de certa retórica inflacionada um pouco emocional demais – de uma comunidade concreta, não menos do que uma mulher concreta.
O direito da Igreja vive uma profunda contradição, os seus especialistas deveriam se alegrar em vez de ficarem escandalizados, porque, na escola da história, também se poderia dizer que ‘dogma crescit cum credente’.
É normativa apenas a perspectiva escatológica, em que, das três virtudes teologais, só o amor permanece."
Como terceiro canonista laico, gostaria de considerar um dos mais conhecidos historiadores do direito canônico, Carlo Fantappié, que, no seu recentíssimo volume Ecclesiologia e canonistica (Veneza: Marcianum Press, 2015), aborda em oito ensaios a questão da relação entre teologia e direito, com algumas conclusões (p. 431-439) que merecem ser relatadas, embora em grande síntese, com os grifos do próprio autor:
"A partir da Idade Média até o Vaticano II, o funcionamento do sistema matrimonial canônico foi se formando com base na combinação de uma estrutura substancial com uma estrutura formal. Para a formação da primeira, pode-se dizer que contribuíram três esquemas conceituais que, embora amadurecidas em épocas diferentes, no fim do processo definitório, se uniram em uma única construção teórica: o esquema dos tria bona de origem agostiniana, dominante até o século XI; o esquema da natureza consensual e das propriedades essenciais, elaborado nos dois séculos posteriores; o esquema dos fins por um longo tempo hierarquicamente ordenados, e, pelo Vaticano II, unificados e pareados" (p. 431).
"A composição desses diferentes aspectos constitutivos de uma construção orgânica pode ocorrer mediante a seleção dos elementos essenciais dentre aqueles não essenciais e a sua conexão em uma rede de relações lógicas. Entre os séculos XIII e XX, teólogos e canonistas deram a essa edifício complexo do matrimônio a forma de uma estrutura lógica fundamentada na definição real e nas quatro causas da filosofia aristotélico-tomista" (p. 432).
"A partir desses elementos, deduz-se que a estrutura substancial e formal do matrimônio são tributárias de uma concepção do mundo substancialista e estática. Dentro desse modelo, o sujeito não é concebido de modo autônomo, não existe senão como agente formal que realiza operações pré-ordenadas da estrutura ontológica do ser, a sua liberdade de ação não é efetiva, mas depende das regras pré-determinadas pelo esquema estrutural em que está rigidamente enquadrado. Os atos praticados por esse agente são atos categoriais e, por isso, desprovidos de história: não há um antes e um depois que possam modificar o significado da ação. Movemo-nos em um universo ontológico fora do mundo da vida" (p. 434).
Como aparece com clareza a partir dessa sequência de citações, o trabalho ao qual os canonistas são esperados é de grande relevo e irá se tornar essencial e decisivo para receber plenamente o texto da Amoris laetitia e as suas amplas consequências pastorais. Entre as quais deveremos considerar o "gap" que se criará entre identidade pastoral e identidade jurídica dos sujeitos, à espera de uma plena regularização que só poderá ocorrer quando o direito canônico substancial (e não só o processual) tiver encontrado novos equilíbrios e novas categorias.
Mas isso implica que todos os canonistas (clérigos e laicos) se disponibilizem a refletir não apenas de lege condita, mas também de lege condenda. O serviço eclesial requerido aos técnicos do direito eclesial exclui o fechamento das corporações. Com as palavras que abrem o estudo citado por C. Fantappié, podemos compreender o que exige essa abordagem crítica:
"... requer que se dê atenção às perguntas teóricas e às exigências substanciais a que quiseram responder os diversos modelos de matrimônio, em vez das respostas dadas por uma corporação de estudiosos que, evitando enfrentar as aporias, as passagens descobertas e os pontos críticos do sistema matrimonial, tem a intenção de reafirmar a sua continuidade e coerência" (p. 399).
Dar voz e forma a essas dificuldades e propor para elas soluções e remédios convincentes é aquilo que são chamados a fazer os canonistas realmente disponíveis a fornecer à Igreja a sua necessária contribuição, que, por antiga tradição, não é só um cuidadoso exercício de uma técnica jurídica, mas também valiosa concretização de uma profecia eclesial. Infelizmente, hoje, sentimos falta quase totalmente da profecia dos canonistas.
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"Amoris laetitia", o debate aberto sobre o direito canônico e a falta de profecia dos canonistas. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU