27 Setembro 2016
Em 24 de agosto Ingrid Betancourt (Bogotá, 1961) recebeu, por intermédio de alguns dos negociadores do Governo em Havana, a notícia de que haviam chegado a um acordo de paz com as FARC. Por mais que o esperasse, Betancourt, ex-candidata presidencial sequestrada durante quase sete anos, até sua libertação em 2008 mediante a Operação Xeque-Mate, admite que não pôde conter a emoção. Nesse dia foi à Basílica do Sagrada Coração, na Place du Tertre, onde coincidiu de encontrar vários colombianos residentes, como ela, em Paris. Na capital francesa, de onde conversa via Skype, acompanhará na segunda-feira o ato da assinatura da paz entre o presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, e o líder das FARC, conhecido como Timochenko. Acordos que põem fim a 52 anos de guerra e que precisarão ser referendados seis dias depois em um plebiscito. Apesar de ter sido convidada, motivos pessoais, afirma, a impedem de ir a Cartagena na segunda-feira.
A entrevista é de Javier Lafuente, publicada por El País, 26-09-2016.
Eis a entrevista.
Que Colômbia espera a partir de 3 de outubro?
Uma Colômbia com um nível de esperança maior, porque a esperança é um motor de mudança. A Colômbia que vai surgir depois de um “sim” no plebiscito, que é o que acho que vai acontecer, aprenderá a ser tolerante em termos políticos e sociais e a entender a justiça como uma função de reparação e construção, e não como um instrumento de vingança.
O que acha do acordo de paz?
Quando se iniciou a negociação eu não tinha muitas expectativas. Escutava as FARC, e era muito cética. No final do caminho fiquei muito surpresa pela transformação das duas partes. As declarações dos comandantes, a princípio, muito doutrinárias, fechadas, cheias de orgulho e quase prepotência, não me deixavam pressagiar o resultado que se conseguiu. Foram dados passos que nunca haviam sido conseguidos antes. A parte que ainda tem armas e uma estrutura organizacional operativa aceita depor as armas e ser julgada diante de um tribunal. Além disso, se você compara as declarações de Timochenko nas quais não se arrependia de nada com as de hoje, em que se arrepende do sequestro e afirma que foi o grande erro da organização, pessoalmente isso me toca muito.
Nas últimas semanas houve vários atos de perdão das FARC com vítimas. Como os avalia? Acredita neles?
Foi percorrido um caminho. Acho que há uma tomada de consciência.
A senhora os perdoou?
Perdoei na medida da racionalidade com que posso manejar o perdão. Emocionalmente ainda tenho sentimentos difíceis de administrar, sobretudo quando vejo o sofrimento de meus filhos. Minha ausência de quase sete anos em suas vidas deixou uma dor, e essa dor me dói.
Para que haja reconciliação é necessário o perdão?
O perdão é um caminho individual e a reconciliação é coletiva. Aceito sem problema que as FARC comecem a assumir um novo papel na Colômbia e tenham uma função na vida política. Me parece positivo que passem de um grupo armado com atividades criminosas a um partido político com projetos sociais e econômicos, com a intenção de criar um país entre todos, e não sem os outros, por eliminação e extermínio. Também é positivo que os comandantes das FARC tenham aceitado se apresentar diante de um tribunal de Justiça. Sinto que por aí a reconciliação vai por um bom caminho. Obviamente, no individual, tenho um caminho a percorrer, mas é uma situação pessoal, que depende de dores, situações e personagens específicos.
Nestes dias as FARC realizam sua última Conferência perto da região onde a senhora foi sequestrada. O que lhes diria?
Que têm uma responsabilidade muito grande. Quando alguém vê o pessoal das FARC, esses jovens, vê o campesinato colombiano com vontade de ter direito de viver decentemente. As FARC vão entrar em uma arena política difícil. Vão ter que estar unidos, não se deixar contaminar por práticas de corrupção que eles condenaram, mas das quais tomaram parte ao terem usado a corrupção como mecanismo de sobrevivência.
O que resta agora nas FARC que a senhora vê e escuta daquelas que a sequestraram?
Quando os vejo atuar há uma parte em mim que reage do fundo da selva, como sequestrada, por isso tento ser muito objetiva, pensar que estamos vivendo outro momento e que a Colômbia necessita que nós que padecemos a guerra tenhamos abertura de espírito. Vejo umas FARC que estão fazendo uma tentativa de modernização mental, de se comunicarem com o mundo de outra maneira, e isso é muito valioso, não é fácil.
Por que as vítimas diretas são as que estão sendo mais propensas a perdoar?
Porque somos os que sabemos o que significa continuar na guerra. O mais lógico é tomar medidas para que nossos filhos e netos tenham a oportunidade de viver em um país diferente. A guerra é o inimigo da felicidade. Agora, há uma parte da população colombiana que vive da guerra, que fez sua fortuna e seu poder político através da guerra. Se uma pessoa olha para a Colômbia de fora, o que surpreende não é que se assine a paz e se vença o plebiscito, o que surpreende é que haja gente ainda pensando que vale a pena votar “não” em um plebiscito que nos oferece a paz.
O que pensa da campanha do “não” de Uribe?
Uribe tentou fazer uma campanha com argumentos, mas não os tem. Todas as críticas que fez ao acordo foram se desintegrando. O único argumento que lhe resta, e ao qual se agarra de má fé, é o da impunidade, mas maior impunidade que a que há hoje na Colômbia, ligada ao paramilitarismo, ao narcotráfico, à matança de indígenas e camponeses, é impossível. O acordo não oferece uma justiça perfeita, mas pelo menos vamos escutar dizerem a verdade e a partir daí construir uma narrativa da reconciliação.
É agora ou nunca?
Para mim é agora ou nunca. Para nossa geração, se não for hoje não será até dentro de 20 anos, haverá um novo enfrentamento militar, mais desgaste. Tivemos outras oportunidades, mas todos os encontros com a história nós perdemos. O traumatismo que se criaria com a vitória do “não” é tão imenso, tão irracional, que nem o levo em conta.
Para o que a Colômbia está preparada e para o que não está?
Está preparada para que as FARC entreguem as armas, mas ainda não para acolher todos esses membros da guerrilha como cidadãos de pleno direito. Vamos ter que fazer uma imensa pedagogia. Primeiro, sobre os que vão ser anistiados, que são jovens recrutados em muitas ocasiões contra seu desejo. Esses jovens têm direito a uma oportunidade de vida digna e isso requer uma mudança nas relações sociais e econômicas que imperam na Colômbia. A outra questão é a participação política e isso vai depender da altura com que entrem (as FARC). Vão ter que enfrentar no Congresso ódios ancestrais, pessoas que representam ideologias próximas da extrema direita, o paramilitarismo. Vão ter que dar exemplo ao país de uma imensa contenção e maturidade no uso da linguagem para que se possa criar um espaço de diálogo, e não de confrontação.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“O que surpreende não é que se assine a paz, mas que haja pessoas que votem não”. Entrevista com Ingrid Betancourt - Instituto Humanitas Unisinos - IHU