23 Outubro 2015
Há pouco mais de sete anos, a deputada colombiana Clara Rojas acordou de um pesadelo que mudou sua forma de enxergar o mundo.
Sequestrada pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) em 2002, quando era assessora da então candidata presidencial Ingrid Betancourt, Rojas viveu em cativeiros da guerrilha na selva colombiana até 2008, quando foi libertada em meio a negociações mediadas pelo falecido presidente venezuelano Hugo Chávez.
A entrevista é de Ruth Costas, publicada por BBC Brasil, 22-10-2015.
"No cativeiro, você não tem nada. Então começa a dar valor a essas coisas simples que fazem com que a vida seja linda", contou à BBC Brasil.
Durante os anos em que esteve sequestrada, além de ter de lidar com as condições adversas da vida na selva, os deslocamentos constantes para fugir do Exército e o medo de um fim trágico, Rojas ficou grávida e acabou separada do filho, Emmanuel, quando ele tinha apenas 8 meses.
Segundo a imprensa colombiana, a gravidez teria sido fruto de um relacionamento com um guerrilheiro, mas Rojas nunca falou oficialmente sobre o tema. O parto, uma cesárea, foi feito em plena selva por um integrante das Farc com alguns semestres do curso de medicina, de acordo com a ex-refém.
Após ser libertada, Rojas pode reencontrar o filho. O menino foi localizado em um orfanato para onde foi encaminhado depois que a família de camponeses que o recebeu das Farc teve de levá-lo a um hospital, doente e desnutrido.
Hoje, Rojas diz que a necessidade de construir um ambiente familiar estável para o filho lhe deu forças para superar o trauma do sequestro. "Decidi perdoar quem me sequestrou porque considerei que isso me permitiria seguir adiante. E de fato permitiu", contou.
Eleita deputada por Bogotá, Rojas tornou-se uma grande entusiasta do processo de paz. Para ela, o fato de o presidente colombiano, Juan Manuel Santos, e o líder das Farc, Timoleón Jiménez, terem concordado em assinar um acordo definitivo em março mostra que o fim do conflito é "possível".
Em entrevista à BBC Brasil, a ex-refém falou sobre quais os riscos para o avanço desse processo e como acredita que o Brasil pode contribuir para estabilizar a Colômbia em um cenário pós-conflito.
Eis a entrevista.
Como o passar dos anos mudou sua visão sobre o sequestro?
Essa foi uma experiência muito forte. Não consigo nem colocá-la em palavras. Mas diria que uma situação como essa faz com que você amadureça. Antes [do sequestro] eu não dava importância a coisas como acordar e poder dar graças a Deus por estar viva. Ver o amanhecer, ainda que esteja chovendo. Às vezes você pode não dar valor ao fato de que quando se levanta, a primeira coisa que recebe é um bom dia da família, das pessoas que te amam. Alguém te oferece um suco de laranja e você rejeita. No cativeiro, você não tem nada. Então começa a dar valor a essas coisas simples que fazem com que a vida seja linda.
Poderia dar centenas de exemplos. E do oposto também: problemas que antes [do sequestro] eram "gravíssimos" [e agora são pequenos]. Sei lá. se você chega em algum lugar e não está vestido adequadamente. Ou quer comprar coisas. No cativeiro, como você não tem nada, aprende a dar menos valor às coisas e mais valor ao ser humano e à vida. Isso é muito valioso. Sempre fui uma pessoa tranquila, mas agora sou mais tranquila.
Como a senhora conta a história do sequestro a seu filho?
Da maneira mais transparente e simples possível, para não gerar trauma. Escrevi vários livros. O último se chamou "Cartas a Emmanuel" e nele tento dar um contexto do que foi o conflito na Colômbia em palavras simples. A ideia é explicar a ele por que fui sequestrada, por que ele nasceu na selva, por que fomos privados de nossa liberdade por quase seis anos, no meu caso, e, no caso dele, por que esteve tanto tempo separado da mãe. Ele conheceu a história nesses termos e conseguiu aceitá-la. Somos uma família atípica, mas hoje muitas famílias são diferentes. É possível que Emmanuel tenha alguns vazios, não só porque estivemos separados mas porque também não tem pai. Mas acho que o processo de adaptação foi bom. Essas são situações que a vida cria e que precisamos aceitar. Estamos bem.
Como foi retomar a vida depois de tantos anos sequestrada?
Consegui permanecer na Colômbia e me relançar na política. Minha adaptação foi rápida e positiva. Tinha um grande motivador que era a necessidade de levar a vida adiante por meu filho. Queria conseguir um ambiente familiar estável. Muitos compatriotas me apoiaram no ponto de vista emocional e me abriram portas. Foram solidários e afetuosos.
Hoje como é sua relação com os outros ex-reféns das Farc e Ingrid Betancourt, em particular?
Quando nos sequestraram não nos conhecíamos e vínhamos de lugares diferentes. E, com o passar do tempo, cada um voltou para sua vida. Tenho cada vez menos contato com eles. Eventualmente nos encontramos em alguns eventos e nos cumprimentamos como se reencontrássemos um companheiro da universidade que não víamos há muito tempo. Mas não há nenhuma relação em particular, nem com Ingrid Betancourt. Ela vive fora do país e só fico sabendo dela pela imprensa.
A sra agora é deputada. Está preparada para dividir espaço no Congresso com gente que hoje é da guerrilha se o processo de paz avançar?
Você nunca está preparado para isso. Mas se essa for a decisão dos colombianos, é preciso aceitá-la. Não fui eu que elegi os companheiros que hoje estão no Congresso, foi o povo da Colômbia - e é preciso respeitá-los. Mas até que cheguemos a isso haverá todo um processo, levará tempo. Teremos uma justiça de transição. Um tema importante a ser tratado são os delitos de lesa-humanidade. Será preciso definir a situação jurídica de todos esses membros das Farc.
Mas a representação política está sendo discutida. Os líderes da guerrilha poderão ser eleitos?
Ainda não está definido quem deve participar da política. Tal como está hoje a lei (que estabelece) o marco jurídico para a paz, quem cometeu delitos de lesa-humanidade será vetado. Há agora uma demanda para levantar essa exigência e permitir que os líderes que participaram dessas barbaridades possam entrar na política. Mas isso ainda está sendo discutido.
O acordo que será assinado no ano que vem (entre governo e guerrilha) será levado a referendo. O que acontece se for rejeitado?
Essa é uma boa pergunta. Isso aconteceu na Guatemala. Houve um processo de paz e a sociedade não o aprovou. Mas acho que essa situação não vai acontecer na Colômbia porque já vimos as vantagens da paz. Houve uma trégua por parte das Farc e a violência caiu muito. As pessoas sentiram a mudança.
A sra. se preocupa com a possibilidade de que haja impunidade para delitos graves?
Em termos gerais acho que o que se queria na Colômbia é que todos (os responsáveis por esses delitos) fossem para a cadeia. Ao que parece, isso não vai ser possível. Mas me parece valioso que haja um processo de justiça, uma sanção. Temos um debate hoje sobre qual será a pena (para os guerrilheiros), se (vão) para a cadeia (comum) ou se terão a liberdade restrita em algum lugar especial. O objetivo da justiça transicional também é ressocializar as pessoas, evitar que voltem a delinquir. Entendido isso, esse tipo de justiça é aceitável.
E sobre a incorporação à vida civil, as vítimas devem aceitar que em alguns anos podem ir ao mercado e se encontrar com ex-guerrilheiros?
É possível que isso aconteça. Mas nós já vivemos essa experiência na Colômbia. Já passamos por vários processos de paz. Um deles há mais de 30 anos, com a (guerrilha) M19, que teve êxito. Hoje temos um prefeito de Bogotá que foi do M19. Há dois senadores que também fizeram parte desse grupo. E, paradoxalmente, hoje todos estão em partidos diferentes. Essas pessoas demonstraram seu compromisso com a civilidade. Esperamos que as Farc também sigam esse caminho.
É possível perdoar?
Sim. Apesar de que uma coisa é o processo de reconciliação da sociedade e outra o processo individual de cada um que passou por uma situação grave (envolvendo violência provocada pela guerrilha). Eu decidi perdoar quem me sequestrou porque considerei que isso me permitiria seguir adiante. E de fato permitiu. Mas há pessoas que resolveram não perdoar e também têm esse direito. Gostaria que elas pudessem perdoar, porque acho que essa é a melhor forma de reconciliação, mas isso não pode ser imposto.
O Brasil pode contribuir para a paz na Colômbia?
Rojas: Sim. Vocês têm experiências muito boas no setor agrícola, além de poder contribuir com investimentos. Parte importante da tarefa de alcançar a paz na Colômbia é permitir que essas pessoas (da base da guerrilha) sejam incorporadas à sociedade e à vida civil. Elas precisam de oportunidades de trabalho e capacitação para ter um modo de vida digno. Acho que as excelentes experiências do Brasil no setor agrário (de apoio a agricultura familiar) podem ser úteis (no pós-conflito). Por exemplo, eu conheço os programas (de apoio) das mulheres camponesas.
Também seria ideal que muitos empresários brasileiros pudessem ajudar a gerar emprego sobretudo na região amazônica. Temos mais de 400 municípios com ingerência ou influência das Farc. Se nessas regiões se fizesse uma campanha para promover o investimento estrangeiro e gerar trabalho, poderíamos dar às pessoas perspectiva de vida para que elas não tenham a tentação de voltar a atividades ligadas à extorsão, sequestro ou cultivo de droga.
E em um eventual diálogo de paz com a guerrilha ELN (Exército de Libertação Nacional)?
Seria uma coisa muito boa (se o Brasil pudesse ajudar). É fundamental que o ELN possa também aderir ao processo de paz. E contarmos com o apoio do governo brasileiro para isso (diálogo) seria ideal.
O Brasil tomou uma distância nesse caso recente que levou a Venezuela a fechar a fronteira com a Colômbia...
Sim. Isso não foi bom porque vínhamos de uma relação bilateral boa. Quando o problema limítrofe com a Venezuela foi levado a OEA (Organização dos Estados Americanos), em Washington, o Brasil se absteve. Não foi uma boa mensagem para Colômbia, nem para os colombianos. Esperávamos um apoio mais direto. Talvez por isso se tomou uma distância (nas relações bilaterais) que eu creio que seria bom tentar reverter.
Qual os maiores riscos ao processo de paz com as Farc?
O que está sendo assinado precisa corresponder ao que as partes realmente querem e elas precisam estar comprometidas a implementar o acordado. Também é preciso decidir sobre elementos operacionais como a entrega de armas e suas condições. Pode haver problemas. Mas esperamos que a maturação das negociações permita a solução dessas questões. É possível chegar a paz. O caminho não é fácil, nem simples, mas ninguém disse que seria fácil.
Há vontade suficiente dos dois lados para avançar?
Sim. Mas, infelizmente, também parece que alguns setores da sociedade não estão de acordo (sobre o modo como o processo de paz está sendo conduzido). Suas críticas são muito fortes. (Eles defendem) que há retrocesso. É importante que consigamos uma coesão. Porque o mandato (para o governo negociar a paz) já existe. Nós queremos a paz. Esses setores podem moderar um pouco suas pretensões. Estamos em período eleitoral - teremos eleições regionais no dia 25 - e é possível que as diferenças sejam ressaltadas por isso. Em novembro, já teremos um ambiente de maior coesão no país.
O ex-presidente Alvaro Uribe é uma dessas figuras que tem se oposto ao processo. Como vê suas críticas?
Toda oposição é saudável. Mas às vezes são feitos alguns pronunciamentos (duros) que geram reações de outros setores... Tenho certeza que, uma vez passado o processo eleitoral, todas essas situações serão decantadas e poderemos entender todos os colombianos que o que temos é uma grande oportunidade chegar a paz. Isso é importante para que possamos evoluir e ser uma potência, como o Brasil.
Há um ano, já em meio às negociações de paz, as Farc emitiram um comunicado dizendo que não a reconheciam como vítima. Como a Sra. interpretou esse comunicado?
Esse comunicado me pegou de surpresa. Acho que havia pessoas negociando em Havana e outras na selva, manejando o dia-a-dia de combates e sequestros (de onde partiu o comunicado). Muitos desses negociadores já viviam há muitos anos no México ou Venezuela. Acho que alguns na Europa também. Para mim, eles estavam tentando demonstrar que não acreditavam ter "vítimas".
Sendo eu uma figura pública na Colômbia, talvez ao me atacarem estavam atacando todos aqueles que quisessem dar seu testemunho (sobre o que sofreram com a guerrilha). Nunca recebi nenhuma explicação por parte deles. Na época, eu era co-diretora da Comissão de Paz e renunciei (a este cargo). Mas ainda continuo fazendo parte da comissão e apoio o processo de paz.
Internamente eles (Farc) parecem estar em um processo de evolução (para decidir) se reconhecem ou não suas vítimas. Recentemente Timoleón Jimenez (líder máximo das Farc) disse que não iria pedir perdão às vítimas - ainda mais porque, na sua visão, algumas teriam sido "inventadas".
Muita gente teve de deixar suas casas por causa das Farc, milhares foram sequestrados, houve genocídios, barbáries, recrutamentos (forçados), enfim, tantos delitos. E ainda é difícil para eles reconhecer isso. Eles se "pintam" como se fossem vítimas do status quo político. (Por outro lado), nos acordos de Havana eles manifestaram que estão de acordo com uma justiça especial para a paz. Isso já é um início de responsabilidade. De certa maneira estão reconhecendo que há vítimas.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
'Perdoei quem me sequestrou para poder seguir adiante', diz ex-refém das Farc - Instituto Humanitas Unisinos - IHU