Por: Cesar Sanson | 29 Julho 2016
A tensão voltou a se elevar nos últimos dias na região da Mata Preta, em Anapu, município na região central do Pará marcado por violentos conflitos agrários e onde há 11 anos foi assassinada a missionária americana Dorothy Stang.
A reportagem é de Mariana Schreiber e publicada por BBC Brasil, 28-07-2016.
Na noite desta quarta-feira, o Ministério Público Federal solicitou ao Ministério da Justiça o envio da Força Nacional de Segurança para a área. A Secretaria Estadual de Segurança do Pará, no entanto, disse à BBC Brasil que não vê necessidade desse reforço e se considerou apta a manter a ordem no local.
Já o ministério disse que a questão ainda não estava em análise. Segundo o procurador da República Felício Pontes, que acompanha o caso, o aumento da tensão na região está relacionado ao grande fluxo migratório gerado nos últimos anos pelas obras da hidrelétrica de Belo Monte. Anapu é vizinha de Altamira, onde a polêmica usina foi erguida.
As terras sob disputa são de propriedade da União, mas hoje estão ocupadas por pequenos produtores rurais e grandes fazendeiros que dizem ter adquirido a área (os chamados lotes 69, 71 e 73) e brigam pela posse na Justiça. Os três lotes somam 9 mil hectares, o equivalente à extensão de 482 campos do estádio do Maracanã.
As denúncias recebidas pela Ouvidoria Agrária Nacional são de que esses pretensos donos contrataram pistoleiros para expulsar os produtores rurais - cerca de 250 famílias. Não há decisão judicial que autorize qualquer despejo. Autoridades ouvidas pela BBC Brasil temem por novas mortes na região. Entre julho e novembro de 2015, sete pessoas foram assassinadas em decorrência de conflitos de terra em Anapu, segundo a Comissão Pastoral da Terra.
Seis dessas mortes estariam relacionadas a uma ação de despejo semelhante realizada no lote 83. Um dos executados foi José Nunes da Cruz Silva, conhecido como Zé da Lapada, líder de um grupo de trabalhadores sem-terra. "Existem relatos de que alguns trabalhadores já foram expulsos dos lotes 69, 71 e 73 sem ordem judicial por, digamos, empregados ou jagunços dos pretensos proprietários. Há denúncia de desmatamento ilegal e também ameaças de morte que estão sendo praticadas pelos pistoleiros", disse o ouvidor agrário nacional, desembargador Gercino José da Silva Filho, após participar de uma reunião sobre a questão na quarta-feira em Brasília.
Além do reforço policial na área, a reunião também destacou a necessidade de que a Justiça agilize a conclusão dos processos sobre a propriedade das terras. Os fazendeiros que se dizem donos perderam na primeira instância, mas recorreram.
Para Pontes, que participou da reunião com o ouvidor, é importante que a União consiga retomar a posse das terras para destiná-las à reforma agrária. "Estive na região semana passada e fiquei muito assustado com os relatos que ouvi em Anapu. Os fazendeiros não conseguiram na Justiça a retirada dos colonos e estão tentando fazer isso por meio de intimidações, de queima das casas das pessoas, das plantações", disse o procurador.
Belo Monte
Os conflitos na região remontam a décadas atrás. Nos anos 1970, durante a ditadura militar, foram licitadas áreas da região amazônica para ocupação por grandes fazendeiros. No entanto, muitos deles não chegaram a ocupar a terra no prazo de cinco anos e seus contratos foram anulados na Justiça.
Apesar disso, alguns fazendeiros hoje dizem que compraram os lotes dos licitantes originários e, por isso, alegam ter direito à posse. Muitas vezes, porém, esses contratos são considerados fraudulentos e a ocupação é feita por grilagem.
"No entendimento do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) esse adquirente originário não cumpriu as cláusulas resolutivas e portanto os lotes continuam sendo de domínio público. Inclusive esses lotes continuam matriculados e registrados em nome da União", observou Silva Filho.
Segundo o procurador Felício Pontes, a maioria das famílias que hoje ocupa a área veio para trabalhar na construção de Belo Monte, do sul do Pará ou de Estados como Bahia, Piauí e Ceará. São agricultores que não quiseram voltar porque nas suas terras de origem conseguiam produzir meramente para subsistência. "Esse recrudescimento da violência na região de Anapu é consequência direta da hidrelétrica. E o poder público já tinha que estar preparado porque isso estava escrito no estudo de impacto ambiental de Belo Monte - que muitas dessas 80 mil famílias que chegariam à região não voltariam para seu lugar de origem".
O procurador opina que esses novos ocupantes são positivos para a preservação da floresta na região. "Em Anapu, a terra é muito fértil. Essas pessoas que entraram lá há quatro anos estão produzindo cacau, cupuaçu. Esse tipo de produção precisa da floresta em pé. Então, não houve desmatamento, pelo contrário. Todos eles compraram suas motos, e alguns até já compraram dois carros, um carro para o uso da família e outro para escoar a produção", contou.
Segurança
Segundo a BBC Brasil apurou, um ouvidor agrário regional que atua na área tentou, com apoio de quatro policiais da patrulha rural comunitária, acesso à região nesta semana, mas eles desistiram no meio do caminho. Quando se dirigiam ao local, encontraram famílias que haviam sido expulsas e estavam se retirando da área. Elas afirmaram que se o ouvidor e os policiais não permanecessem continuamente no local, uma mera visita de inspeção geraria represálias violentas contras os moradores tão logo os visitantes deixassem a região. Dessa forma, o grupo desistiu de ir ao local porque não tinha autorização para pernoite.
Em Anapu há também efetivos das polícias Civil e Militar. No entanto, os pequenos produtores rurais não confiam nessas instituições e dizem que parte dos agentes costumam agir em parceria com os grandes fazendeiros, segundo Felício Pontes.
De acordo com o procurador federal, ficou decidido na reunião que seria sugerido ao governo do Pará que deslocassem para Anapu agentes especializados da Delegacia de Conflitos Agrários (Deca) de Marabá, município no leste do Estado. O secretário-adjunto de inteligência e análise criminal da Secretaria de Segurança do Pará, Rogério Morais, disse à BBC Brasil que a Deca de Marabá instaurou um inquérito para apurar as denúncias e que um efetivo está se deslocando para a região da Mata Preta.
Ele afirmou, porém, não ver necessidade de envio da Força Nacional de Segurança. O pedido feito na quarta-feira foi assinado pela procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat.
"O Estado está apto a cumprir seu papel constitucional de proteção ao cidadão na área", afirmou. "A área da Mata Preta é uma área tradicionalmente conflituosa, a gente não tem nenhuma dúvida disso. Nós tivemos um fato marcante, o caso da irmã Dorothy, que causou grande comoção nacional e internacional. Não só por esse motivo, por outros também, é uma área de observação constante da secretaria".
Em carta aberta divulgada nesta terça-feira, as irmãs da congregação Notre Dame de Namur, a mesma de Dorothy Stang, disseram que iniciariam na quarta-feira de noite uma greve de fome em "protesto contra a falta de ação em defesa das 250 famílias de Mata Preta" e "até haver uma ação enérgica e decisiva em defesa das famílias e das leis do país".
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Belo Monte faz região onde irmã Dorothy foi assassinada voltar a ser palco de violência e tensão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU