05 Mai 2016
Às vezes, parece que só a violência contra os meninos desperta o escândalo geral. Como se a violência, o abuso sexual de meninas fizesse parte de um destino inevitável. O das mulheres. Que, desde pequenas, devem aprender quem manda. Porém, as pequenas sabem se rebelar. E colocam a vida em risco. Pequenas grandes heroínas.
A opinião é da jornalista italiana Bia Sarasini, ex-diretora da revista feminista italiana Noi Donne, em artigo publicado no jornal Il Manifesto, 04-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Não encontra bálsamos e conforto em nada a dor pela morte violenta da pequena Fortuna Loffredo, a menina jogada de uma sacada pelo homem que a agrediu sexualmente, como defende a acusação de uma investigação que, com paciência, chegou ao fim de um caso que remonta a dois anos atrás.
A mãe também não os encontra, ela que, com rosto dolorido e com raiva não dissimulada, mostra a foto da sua bela menina de cachos dourados. E também não os encontram aqueles que, consternados, se veem catapultados para dentro de uma história que não gostariam de conhecer, que não gostariam de saber que existe. Tanto é o horror que ela desperta.
No entanto, meninas e meninos falaram. E foram ouvidos. E essa é a única coisa que consola, na horrível história. Que se preste fé aos relatos dos pequenos, que não sejam liquidados como bobagens, criancices, justamente.
Porque os pequenos e as pequenas sabem, veem, pensam. De maneira diferente dos adultos, até mesmo aqueles adoráveis e benévolos. Começando pelos pais, que, nesta época e nesta parte do mundo em que as crianças são um bem escasso, idolatram as criaturas, mas nem por isso realmente as escutam ou as veem. A extrema proximidade, a partilha dos tempos e dos divertimentos que caracteriza hoje as relações entre adultos e crianças, entre restaurantes, viagens, TV, sorvetes e McDonald's – inconcebíveis em épocas em que as crianças viviam em mundos bem separados, até se criarem regras e jogos totalmente delas – não tornam os mundos mais transparentes uns aos outros.
As crianças sabem que os adultos mandam, são mais fortes, sabem especialmente que os pais, em geram os "grandes", têm segredos dos quais elas estão excluídas.
Há uma pergunta que atormenta a mãe de Fortuna: "Por que ela não me disse nada?". Ela deve ter sido aterrorizada, ameaçada pelo seu agressor. Uma criança, menor do que Fortuna, teria sido jogada do mesmo modo. Talvez seja realmente muito difícil falar. Como se faz para dizer que você não é tão inocente, tão bela e limpa como os grandes veem as suas criaturas?
A pedofilia corta como uma faca uma zona muito obscura, quase insondável. Porque todos amamos as crianças. Que são ternas, belas, desejáveis, por definição. Tocá-las, acariciá-las, apertá-las é uma alegria, faz parte da relação entre grandes e pequenos. Além disso, para crescerem, elas precisam da proteção dos adultos, "devem" despertar ternura.
Mas só se considerarmos a palavra "pedofilia" no significado original da palavra grega, amor pelas crianças, é que somos todos pedófilos. Não no sentido restrito atual, de perversão sexual. Que indica a superação de uma fronteira, talvez sutil, mas clara.
Uma fronteira com a qual se brinca muito. Pensemos nas meninas supererotizadas, hipersexualizadas no modo de se vestir contemporâneo. Sexies, como as pop-stars ou, os as atrizes ou modelos muito jovens que habitam as redes sociais e os vídeos de moda e de fofoca. Por sua vez, infantilizadas.
É um jogo, é um sistema de signos, certamente não é uma prática sexual, certamente não é uma ação criminosa e violenta. No entanto, faz alusão, indica, sugere. Uma possibilidade, um desejo. Ao mesmo tempo, esconde, exatamente como décadas atrás a repressão sexual vivida dentro das boas famílias pequeno-burguesas.
Esse me parece ser o contexto pertinente, que deve ser interrogado com mais de uma pergunta, não a degradação do bairro de Parco Verde a Caivano. Muitos fazem sociologia mesquinha nestes dias, como se o hábito à ilegalidade fosse uma espécie de chave para explicar tudo. É uma equação simples, fundamentada em uma falsa lógica.
A pedofilia não tem nada a ver com o estado de bem-estar social, com riqueza e pobreza. Talvez mudem o estilo, a linguagem, até mesmo as posturas do corpo, mas a pedofilia é uma perversão que não conhece fronteiras de classe. Não podemos nos tranquilizar de que, no nosso mundo, isso seria impossível para nós.
E essa é a dor mais profunda. Saber que, por mais que nos obstinemos a proteger as nossas criaturas, até trancá-las em vidas totalmente projetadas com antecedência, nunca conseguiremos saber tudo, entender tudo.
Mas eu não pretendo mudar de assunto. A amiga de Fortuna, a menina que falou, mostrou uma coragem excepcional. Denunciou, usou toda a sua força para dizer, para contar. Confiou, entendeu que não lhe diriam "você está inventando histórias". O silêncio dos pequenos muitas vezes é fruto de tentativas fracassadas, de discursos que começaram e caíram no vazio, na distração de "grandes" que os acariciam e se voltam para o outro lado. Sem captar os sinais.
Uma última consideração. O fim violento de Fortuna – nunca um nome foi menos apropriado – nos lembra que a pedofilia atinge as meninas. Às vezes, parece que só a violência contra os meninos desperta o escândalo geral. Como se a violência, o abuso sexual de meninas fizesse parte de um destino inevitável. O das mulheres. Que, desde pequenas, devem aprender quem manda. Porém, as pequenas sabem se rebelar. E colocam a vida em risco. Pequenas grandes heroínas.
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A pedofilia não tem fronteiras de classe nem de gênero. Artigo de Bia Sarasini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU