04 Mai 2016
Devemos dizer, da mesma forma, que o uso dos corpos das crianças para fins sexuais esconde uma sexualidade masculina arcaica, sobre a qual ninguém jamais se interrogou realmente, e uma subalternidade feminina que as mulheres não querem ver.
A opinião é da diretora de cinema e escritora italiana Cristina Comencini, em artigo publicado no jornal La Repubblica, 03-05-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
É preciso ter a coragem que tiveram as crianças napolitanas de Caivano, na Itália: olharam e contaram sem medo as cenas de abuso sexual sofridas por elas e pela sua amiga morta.
A coragem, portanto, de se verem naquelas cenas, de terem consciência de si mesmas e dos adultos que estavam sobre os seus corpos. Os homens e as mulheres devem fazer a mesma coisa, olhar para o desejo masculino, para a sexualidade dos homens com a mesma verdade amarga: a sexualidade masculina, formada em milênios de história, contém a opressão, a ambivalência entre amor e posse violenta, a sedução da inocência inconsciente que torna aqueles gestos carregados de um erotismo que, durante os séculos, não era visto como doente.
E as mulheres devem ver a subalternidade feminina que encobre tudo, justifica tudo para preservar os laços familiares, ter um homem, conservar a normalidade aos olhos dos outros, sacrificando os próprios filhos, legado, também aqui, de milênios de história.
E a Igreja também deve ter essa coragem, não só para denunciar e punir os abusos, mas também para realmente colocar em prática o ensinamento revolucionário do Evangelho: "Não escandalizem as crianças".
Ela deve analisar, entender profundamente porque, em um ambiente de apenas homens, que escolheram a castidade, o corpo das crianças, imagem daquela pureza tão decantadas, é usado e depredado. Quando lançamos a campanha Mai più complici [Nunca mais cúmplices], dissemos que a violência contra as mulheres é um fenômeno antigo, que é usado hoje contra a nova liberdade das mulheres, chamamos os homens para falar sobre isso ao nosso lado.
Devemos dizer, da mesma forma, que o uso dos corpos das crianças para fins sexuais esconde uma sexualidade masculina arcaica, sobre a qual ninguém jamais se interrogou realmente, e uma subalternidade feminina que as mulheres não querem ver.
Só se ampliarmos o nó estreito das relações físicas ímpares que a história entre os sexos nos entregou, só se vermos a nós mesmos nessas relações, como fizeram as crianças napolitanas, é que poderemos transformar o sorriso de Fortuna [Loffredo, menina italiana de seis anos, abusada e assassinada em junho de 2014], exibido pela mãe, em uma alegria privada e verdadeira.
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Os adultos salvos pela força das crianças. Artigo de Cristina Comencini - Instituto Humanitas Unisinos - IHU