Educar a língua para bendizer e falar palavras verdadeiras. Comentário de Adroaldo Palaoro

28 Fevereiro 2025

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 8º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 6,39-45.

Eis o texto.

“...sua boca fala do que o coração está cheio” (Lc 6,45)

Contam que o fabulista Esopo esteve um tempo a serviço de Xantu. Este o enviou ao mercado para que comprasse o melhor que encontrasse. Esopo foi e comprou uma língua.

- Esta língua é o melhor que encontraste?

- Sim, com a língua podemos expressar amor, verdade, louvor, ânimo... A língua permite às pessoas se comunicarem, se entenderem.

Passado um tempo, o patrão tornou a enviar Esopo ao mercado e lhe pediu que, desta vez, lhe trouxesse o pior que pudesse encontrar. Esopo foi e voltou com outra língua.

- Isso foi o pior que encontraste?

- Sem dúvida. Com a língua podemos caluniar, mentir, ofender, injuriar, odiar...

De fato, com as palavras podemos fazer rir ou chorar, afundar ou levantar, confundir ou iluminar. Uma palavra pode ser uma carícia ou uma bofetada. Há palavras que doem mais que golpes e causam feridas interiores muitos difíceis de serem curadas.

Precisamos aprender a “bendizer” (bene-dicere: dizer bem), falar positivamente, evitando toda palavra desestimuladora, ofensiva, cortante, que separa ou semeia discórdia. Lamentavelmente, estamos nos acostumando com a violência verbal, sobretudo através das redes sociais. Cada vez mais, o falar cotidiano e o falar político deixam transparecer uma agressividade que habita no coração das pessoas. Das bocas, brotam com fluidez uma linguagem dura, implacável e destruidora. Palavras ofensivas e cortantes, ditas com a intenção de ridicularizar e desprezar, desqualificar e destruir.

Por isso, em nosso contexto atual, as palavras, em vez de serem pontes de comunicação e encontro, estão se transformando em muros que nos separam e nos dividem. Palavras histéricas que causam espanto, gritos ou bofetadas que buscam ferir. Palavras, uma amontoados de palavras mortas, retóricas, sem conteúdo, mera ginástica verbal, sem verdade. Ditas sem o menor respeito a si mesmo e aos outros, para confundir, para arrancar aplausos, para ganhar seguidores, para acusar o outro, sem necessidade de provas, mesmo sabendo que o outro é inocente, para escapar da própria responsabilidade.

Todo genocídio começa sempre com a desqualificação verbal do adversário, que cria as condições para o desprezo, o maltrato e inclusive o desaparecimento físico. Os colonizadores europeus chamaram os índios de selvagens e irracionais; os escravagistas qualificaram os negros de bestas; os nazistas denominavam os judeus e ciganos de ratos e porcos; os comunistas soviéticos qualificavam os dissidentes como hienas; os torturadores só veem em suas vítimas como bestas subversivas... Um esgoto verbal para semear ódio, divisão, intolerância, preconceito, impossibilidade de encontro; expressões de um coração apodrecido e contaminado pelos piores venenos.

Nunca chegaremos à paz nem à convivência provocando o desprezo e a mútua agressão. Que paz se poderá conseguir entre pessoas que se insultam e não respeitam mutuamente suas ideias diferentes? Por que temos de desprezar, ofender e considerar como inimigo a alguém que pensa de maneira diferente?

Somente aqueles que buscam, com espírito desarmado e lúcido, formas abertas de convivência, se aproximarão da paz. Com posturas dogmáticas e humilhantes nunca construiremos uma sociedade próspera e criativa; nunca chegaremos à paz se continuamos alimentando fanatismos e ofensas, se coagimos as pessoas com graves ameaças e insultos, se buscamos reduzir ao silêncio a quem pensa diferente.

Quando numa sociedade as pessoas têm medo de expressar o que pensa e sente, destrói-se a convivência democrática.

É preciso evangelizar nossa interioridade para dominar nossa agressividade e pronunciar palavras positivas, que animem, que entusiasmem, evitando toda palavra ofensiva ou irônica. É preciso, antes de tudo, fazer chegar a mensagem da Boa Nova até as extremidades mais profundas de nosso ser que costuma expelir veneno e palavras ácidas, fomentando conflitos, intrigas e separações.

O próprio Jesus já nos alertou sobre isso: “é do coração que saem as más intenções: homicídios, adultérios, prostituições, roubos, falsos testemunhos e calúnias” (Mt 15,19)

Precisamos, com urgência, recuperar uma palavra próxima e sincera que possibilite e favoreça a autêntica comunicação. Comunicar-se é abrir a própria interioridade, iluminada pelo Espírito.

A tecnologia moderna tornou mais importante o meio que a mensagem. Nem os celulares, nem os correios eletrônicos, nem os blogs, nem as redes sociais, nem as páginas web..., estão ajudando a nos comunicar-melhor. Pelo contrário, estão se tornando ferramentas de conflitos e violências, onde os covardes disparam ofensas e se escondem.

Como consequência, apesar de possuírem os mais sofisticados aparelhos de comunicação, as pessoas estão vivendo cada vez mais sozinhas, sem ninguém a quem compartilhar seus medos, suas angústias e problemas. Elas estão se tornando estranhas dentro da própria casa, repetindo rituais vazios, conversando com personagens distantes e desconhecidos, sem comunicar-se com os membros da própria família.

Igualmente instigantes são as imagens do “cisco” e da “trave” usadas por Jesus. O afã de corrigir os outros é uma constante, sobretudo no campo religioso (legalismo, moralismo...); não há nada mais perigoso na vida real que essa prática, não só porque nunca podemos estar seguros do que é melhor para o outro, mas porque tendemos a corrigir o outro a partir de nossa superioridade moral que acreditamos ter. No momento em que nos sentimos superiores, seja moral ou intelectualmente, estamos incapacitados para ajudar.

A atitude de superioridade nasce sempre da superficialidade, ou seja, está em estreita relação com nosso falso ser. A couraça que nos envolve é o único que consideramos e nos interessa. Em termos de interioridade, cremos que é suficiente com aquilo que aprendemos dos outros.

Quem se sente perfeito e olha os defeitos ou limites do outro com atitude julgadora é, para Jesus, um hipócrita, pois está tão focado em ver o “cisco” no olho do irmão que ignora a “trave” que está no seu. Hipócrita é aquele(a) que está tão ocupado em demonstrar que cumpre as normas e em velar para que sejam cumpridas que se torna incapaz de ver seus próprios erros e defeitos.

Faz-se urgente re-conectar-nos com a Fonte, onde o coração é continuamente gerado, sustentado, alimentado pelo amor de Deus que o irriga, que o restaura. O coração profundo pode estar desprezado, adormecido, fechado, mas não pode morrer.

“O homem bom tira coisas boas do bom tesouro do seu coração”.

O coração de cada um está habitado de sonhos de vida, de futuro, de projetos; aqui, todo ser humano sente-se seduzido pelo que é verdadeiro, bom e belo; busca ardentemente a pacificação, a unifica-ção interior, a harmonia com tudo e com todos...; sente ressoar o chamado da verdade, o magnetismo do amor, da plenitude; sente-se atraído por um desejo irreprimível de auto-transcendência...

Quando nosso coração está centrado em Deus, ou seja, quando ele se percebe que vem d’Ele, vive para Ele e para Ele retorna, tudo está em seu lugar, tudo vai bem. É “árvore boa que dá bons frutos”. As “coisas” não são obstáculos, e as pessoas muito menos. Nem sequer o nosso próprio e ambíguo “eu” é tentação.

Até nossos instintos mais primários ficam integrados nessa corrente de amor recebido e amor entregue.

Para meditar na oração:

Se a nossa oração for um autêntico face-a-face com Deus, ela deverá fazer emergir à nossa consciência as profundidades desconhecidas do nosso ser.

Deus libera em nós as melhores possibilidades, recursos, capacidades, intuições... e nos faz descobrir em nós, nossa verdade mais verdadeira de pessoas amadas, únicas, sagradas, responsáveis... É ele que “cava” no nosso coração o espaço amplo e profundo para nos comunicar a sua própria interioridade.

É do coração iluminado pela Graça que brotarão palavras redentoras, sadias e cheias de sabedoria.

- Qual é o peso que as palavras tem no seu cotidiano? É “palavreado crônico” ou comunicação inspirada?

 

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