A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 6º Domingo de do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lc 6,17.20-26.
“E, levantando os olhos para os seus discípulos, disse: bem-aventurados vós...” (Lc 6,20)
O cristianismo sempre proclamou a grandeza das bem-aventuranças; sempre afirmou que elas são o “coração do Evangelho”, a proclamação do Reino de Deus, a síntese da fé cristã. Mas, na realidade, são poucos os que compreendem sua mensagem e, menos ainda, os que fazem dela o núcleo real de suas vidas.
Podem as bem-aventuranças acrescentar algo a quem se sente infeliz, rejeitado, frustrado...? Não seriam as bem-aventuranças uma bela teoria sem qualquer repercussão em nossas vidas?
Sempre se disse que as bem-aventuranças são a maneira original de viver o seguimento de Jesus Cristo. Porém, estaríamos equivocados se somente víssemos nelas um código moral ou um manual de conduta. As bem-aventuranças são muito mais. Elas não são leis que se impõem de fora, mas “dinamismos vitais” que brotam de nosso ser essencial; elas emanam das profundezas do nosso coração, qual água cristalina que brota das entranhas da terra.
Por um lado, elas indicam o espírito que deve animar os seguidores de Jesus. Por outro, elas nos prometem aquilo que mais ardentemente deseja o nosso coração: a felicidade.
Todos nós carregamos na mais profundo de nosso ser uma fome insaciável de “algo” que chamamos felicidade. Por isso, quando ouvimos com atenção e sensibilidade, as bem-aventuranças despertam em nós um eco especial, reacendem a esperança e sustentam uma vida mais ousada.
O fundamento de todas as bem-aventuranças está no próprio Deus, em sua Presença e em seu reinado.
Na proclamação das bem-aventuranças, Deus se coloca como defensor e garantidor da vida dos pobres, dos que estão cansados, marcados pela dor e pela violência, e que, aos olhos dos outros, são os últimos, os “perdedores”, insignificantes. Aos olhos de Deus, no entanto, essas vidas valem, são preciosas, são a "menina de seus olhos”, precisamente porque são frágeis, ameaçadas.
A felicidade, a vida ditosa, a bem-aventurança, é que Deus pôs seu olhar sobre eles e elas
Deus se oferece a si mesmo como abundância, alegria, consolo, esperança, terra prometida, rosto visível, misericordioso, Pai-Mãe. Eis aí a bem-aventurança por excelência: Deus mesmo.
Um dos fracassos mais graves da Igreja talvez seja o de não saber apresentar o Deus cristão como amigo da felicidade do ser humano. Infelizmente, parece ser consenso afirmar que o específico “do cristão” não é buscar a felicidade, mas sim as exigências das leis, das abnegações, das penitências e mortificações. Com isso, a vida de muitos cristãos torna-se um “peso” insuportável e a imagem de Deus revela-se terrível.
Na realidade, o ser humano somente se interessará por Deus se intuir que Ele pode ser fonte de felicidade.
Esse é o primeiro dado. Todos buscamos ser felizes. Não sabemos como alcançá-la, nem onde ela pode estar, mas todos a buscamos. O ser humano sempre anda em busca da felicidade. Se não a tem, a busca; se crê possuí-la, trata de conservá-la; se a perde, esforça-se para recuperá-la. E quando renuncia a uma determinada felicidade, sempre o faz buscando outra de maior profundidade.
Se aprofundarmos um pouco, percebemos que a cada manhã nos despertamos para a felicidade. Por detrás de todas as ocupações, experiências ou acontecimentos que nos esperam está o desejo de viver com mais intensidade e com mais sentido: aqui está o cerne da felicidade.
E a felicidade não vem das coisas, dos bens, das riquezas; estas até podem nos dar pequenas satisfações, mas não a felicidade.
A felicidade não é tirar água do poço, mas ser manancial de água viva; a felicidade não é aquecer o fogo, mas ser fogo que aquece. A felicidade não é escutar música, mas ser música por dentro. A felicidade não é crer no Evangelho, mas sentir o Evangelho arder por dentro.
Não é a miséria, o sofrimento, a injustiça, nem a submissão e a resignação... que as bem-aventuranças tratam. Deus não se torna feliz com a fome, a pobreza, a dor e o pranto dos seus filhos e filhas. Neste sentido, dirigindo-se à multidão ou à sua comunidade de discípulos, Jesus emite um grito, um protesto, e nos lança um desafio em nome de Deus Pai e Mãe que Ele descobre e chama “Abba”.
O que é que leva Jesus a proclamar, com alta e viva voz, “felizes” os pobres, os que choram e padecem fome, perseguição...? A partir de onde olha Jesus e o quê vê?
Jesus não vê outra realidade; vê a mesma realidade de dor e injustiça, mas faz isso a partir de outro olhar.
Sua própria interioridade, profundidade habitada, sua ousada atitude solidária, sua paixão pelo Reino de Deus e seu compromisso com a vida em meio àquela Galiléia de injustiças e mortes prematuras, lhe permitem um olhar diferente, “a partir de outro lugar”.
Uma grande sensibilidade e pureza de coração permitem a Jesus atravessar a superfície, a casca obscura daquela dura realidade que encontra, e o capacita a olhar mais profundamente. Jesus vê a resistência e a reserva de esperança, o reduto de dignidade não contaminado nos seus contemporâneos, uma marca invisível da mesma fibra ou da “mesma madeira” de seu Pai e nosso.
Jesus vê essa marca divina (pegadas) mesmo nos rostos e corpos mais feios e deformados pela fome, doença, miséria... Em todos, vê “filhos(as) de Deus” e não malditos de Deus. Ele conhece o Pai intimamente e sabe de seu amor incondicional por todos, mas também sabe que há filhos que, por sua vulnerabilidade e abandono, são os seus “preferidos”.
O próprio Jesus, sendo pobre, conhecendo o pranto, a fome, a crítica, a perseguição... experimentou a si mesmo como “feliz”, consolado, Filho de Deus. E Ele compartilhou sua felicidade em excesso, para que outros pudessem também compartilhar com Ele essa vida prazerosa.
A mesma bem-aventurança, nascida de sua certeza de ser amado, é a que assegura aos que o seguem, que todos estão no coração compassivo do Deus Pai-Mãe.
E isso que Jesus vê é o que ensina a seus discípulos e todos os que o escutam. Descobre e experimenta a paternidade-maternidade de Deus; a partir dessa experiência prega o advento do reinado de Deus e sua justiça. Assim, redescobrimos a Bem-aventurança como a proximidade, a presença, o abraço de Deus a todos os seus filhos(as), mas de modo privilegiado aqueles que tem a vida ameaçada.
Resulta, então, que as bem-aventuranças são uma provocação de Deus, interpelação e desafio para os seguidores de Jesus de todos os tempos. Deus é a sorte e a promessa, a garantia última, mas conta com nossa liberdade e nossa colaboração para consolar, saciar as fomes, curar, levantar...
Somos convidados a nos re-situar, a mudar de olhar, de lógica e de coração: em vez de acumular, compartilhar; em vez de rir de costas para a dor do mundo, consolar; em vez de resignar-se à injustiça, trabalhar pela paz e pela justiça. Deus continua sonhando e apostando na humanidade... em nós.
Concluímos afirmando que as bem-aventuranças são uma alternativa de vida para os discípulos, de ontem e de hoje; como comunidade de seguidores de Jesus, animada pelo espírito das bem-aventuranças, todos se tornam testemunhas desse “mundo às avessas”.