Um amor diferente, estendido, universal

02 Setembro 2022

 

Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 23º Domingo do Tempo Comum, 4 de setembro de 2022 (Lucas 14,25-33). A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Depois do almoço na casa de um dos chefes dos fariseus (cf. Lc 14,1-24), Jesus retoma o seu caminho para Jerusalém, seguido por uma multidão numerosa. A sua pregação tem sucesso, os ouvintes prontos para acompanhá-lo ao longo da estrada são muitos, mas Jesus, que quer discípulos ao seu lado, e não militantes, volta-se para trás para olhar aquela multidão no rosto e lhe dirigir algumas palavras capazes de esclarecer as coisas e não permitir ilusões ou até mentiras. Palavras duras, que nos ferem e nos desagradam, porque nos pedem para combater contra nós mesmos, contra os nossos sentimentos naturais, e nos convidam a um desapego radical de nós mesmos.

De fato, Jesus adverte: “Se alguém vem a mim, isto é, quer estar comigo, mas não odeia seu pai e sua mãe, sua mulher e seus filhos, seus irmãos e suas irmãs e até sua própria vida, não pode ser meu discípulo.” Jesus contrasta o fato de estar com ele e o amor familiar, filial, conjugal e fraterno, além do amor pela própria vida.

Por que tanta radicalidade? Simplesmente porque ele conhece o coração humano, conhece o poder dos laços de sangue, conhece a possibilidade de que a família seja uma jaula, uma prisão. A intenção das palavras de Jesus consiste na libertação, que ele quer trazer para cada homem e para cada mulher, de todas as presenças idólatras, de todos os laços que possam impedir a liberdade e a vida plena, entre os quais é possível incluir também laços e afetos de sangue e de família.

Quanto à paradoxal expressão “Se alguém não odeia...”, ela certamente tem um pano de fundo semítico, mas deve ser bem entendida. De fato, ela é traduzida corretamente assim: “Se alguém não me ama mais do que ama seu pai, sua mãe...”. Nos afetos, é uma questão de ordem. Amar o pai e a mãe é um mandamento da Torá (cf. Ex 20,12; Dt 5,16), e Jesus o confirma (cf. Mc 7,9-13; Mt 15,3-6), mas pode acontecer que esse amor impeça a adesão ao Senhor, a prática da sua vontade, o seguimento material de Jesus. Nesse caso, os laços com a família que retêm e que contradizem a adesão à boa notícia devem até ser odiados! Pelo Reino, Jesus convidou a abandonar os genitores, os irmãos, as irmãs, os filhos, a casa e os campos (cf. Lc 18,29).

A história das vocações cristãs conhece bem a ocorrência de conflitos e de sofrimentos nas famílias, que às vezes se rebelam contra a vocação do filho ou da filha, e conhece bem também as vocações abortadas porque o vínculo com a família continuou sendo, mesmo no seguimento, mais forte do que o vínculo com o Senhor que a vocação requer.

Certamente, hoje a mundanidade que também entrou na vida eclesial, religiosa e monástica banaliza as relações entre o chamado e a família, de modo que não se põe mais um “aut-aut” que indique uma renúncia, uma separação necessária para seguir o Senhor com o coração unido. O resultado, então, é o de chamados que têm uma vida astênica, que são “atraídos aqui e ali” (cf. Lc 10,40), nunca verdadeiramente decididos a fazer um caminho assumido com todo o coração: chamados que, depois de um pouco de caminho atrás de Jesus, sentem a prepotente nostalgia da família e, portanto, abandonam a estrada empreendida. Míseras vocações! Na verdade, não podemos amar todos ao mesmo tempo e do mesmo modo, mas é apenas dando aos nossos amores uma ordem clara que sabemos onde está o nosso tesouro e, portanto, o nosso coração (cf. Lc 12,34).

Por outro lado, as dez palavras (cf. Ex 20,1-17; Dt 5,6-22) também requerem que o amor a Deus seja prioritário, e, quando Jesus recorda a Torá ao jovem chamado, é significativo que ele retroceda o mandamento “Honra teu pai e tua mãe” (cf. Lc 18,20) do quarto para o último lugar. Os levitas também deviam abandonar a família para serem assíduos ao Senhor, e a comunidade de Qumran exigia aos seus membros um celibato que também previa a separação da família para serem vigilantes, com um coração unificado, à espera do dia do Senhor (cf. 4QTestimonia 14-20, cf. Dt 33.8-11).

Sim, Jesus pede um ato que ele mesmo fez em relação à sua família (cf. Lc 8,19-21), pede uma ruptura que permita um amor diferente, estendido, universal, um amor no qual Deus tem o primado, e a família tem o seu lugar, mas sem o poder de ligar e de obstaculizar o cumprimento da dinâmica do Reino.

Ao mesmo tempo, gosto de lembrar que o nosso Deus, e, portanto, Cristo, não é totalitário: o amor que ele exige não exclui outros amores, como o conjugal ou o da amizade, mas estes devem ser vividos sabendo que o amor por Cristo é primário, hegemônico, e os outros amores não podem colocar obstáculos, atrasos, muito menos contradições ao amor pelo Senhor.

Esse regime dos afetos é duro, custa esforço, mas é “carregar a própria cruz”, isto é, carregar o instrumento de execução do próprio “eu” philautico, egoísta. Cada um tem uma cruz própria para carregar, ninguém está isento dela, mas não se deve fazer comparações. Jesus, de fato, sabe que aqueles que o seguem fielmente também estarão envolvidos na sua paixão e morte, quando ele carregar a cruz. É uma questão de aprender com Jesus, quando ele fala, age, mas também quando é condenado, torturado e morto na ignomínia da cruz. Ser discípulo de Jesus não é a experiência de um momento (cf. Mc 4,12-13; Mt 13,20-21), não é provar para verificar, mas é a decisão de responder a um chamado, é um “amém”, que deve ser dito com ponderação, com discernimento, sem obedecer às emoções do momento.

Por isso, Jesus anuncia duas parábolas que soam como uma advertência, um alerta: ele não faz propaganda para as vocações, mas, ao contrário, dissuade... Teríamos muito a aprender com essa atitude de Jesus, sobretudo quando a escassez de vocações nos angustia e nos dá medo: este último é um mau conselheiro, que nos leva a acolher a todos com muita superficialidade e a não reconhecer e comunicar as dificuldades objetivas do seguimento de Jesus.

Com a primeira parábola, Jesus adverte: “Qual de vós, querendo construir uma torre, não se senta primeiro e calcula os gastos, para ver se tem o suficiente para terminar”. Seguir Jesus – e preste-se atenção a uma leitura pouco inteligente dos relatos vocacionais do Evangelho! – requer não o fogo de um momento, nem o entusiasmo, nem só o “enamoramento”, mas também um tempo de calma, de silêncio, de exame de si mesmo. É a ação do discernimento, difícil, mas absolutamente necessária para perceber a voz do Senhor não fora de nós, não apenas nas eventuais palavras de um outro, mas também no nosso coração mais profundo, lá onde Deus nos fala pessoalmente.

Escutando o profundo, a própria intimidade, discernindo a palavra de Deus das outras palavras que nos habitam, olhando com realismo para aquilo que somos e para as nossas possibilidades, podemos chegar a uma escolha; talvez nos deixando ajudar por aqueles que estão mais à frente na vida segundo o Espírito, mas sempre conscientes de que o amém só pode ser nosso, muito pessoal, e um amém para sempre, não temporário ou com prazo de validade!

Da mesma forma, a segunda parábola adverte que é preciso medir bem as próprias forças, para vencer aquele que é um combate espiritual sem trégua, até o fim. Porque o seguimento de Jesus exige a capacidade de fazer guerra contra o inimigo, o diabo que nos tenta e gostaria de nos fazer cair, levando-nos a abandonar o próprio seguimento.

Portanto, a pessoa chamada sabe: tendo escutado a palavra de convite, deve, acima de tudo, “ficar firme”, permanecer em solidão e em silêncio (cf. Lm 3,28) para discernir bem aquilo que escutou e o que o coração lhe diz; depois, deve se aconselhar (como diz literalmente o verbo bouleúomai); por fim, deve chegar à decisão muito pessoal, confiando apenas na graça do Senhor.

Em suma, deve saber que a vida cristã é uma luta, uma batalha dura e fatigante contra as tentações do demônio: uma luta que deverá ser perseverança, coragem e invocação da fortaleza, essa virtude que é dom do Espírito Santo. À pessoa chamada, não cabe apenas iniciar, mas também levar a cumprimento, com a ajuda da graça, que nunca é negada a quem a invoca e a busca com coração sincero.

Jesus, depois, acrescenta uma palavra não presente no trecho litúrgico, mas conectada com o que o precede. Ele diz que, em uma história de vocação, ocorre aquilo que acontece com o sal: “O sal é bom, mas se perde a capacidade de salgar, de que serve? É jogado fora!” (cf. Lc 14,34-35). Do mesmo modo, uma vocação pode ser boa, mas na vida pode ser contraditada, abandonada, e, então, essa vida torna-se uma vida desperdiçada.

O meu pai espiritual dizia: “Quando alguém pensa em aumentar o número de vocações na Igreja e impõe a vocação aos outros, não cria santos, mas apenas pessoas miseráveis!”