Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 20º Domingo do Tempo Comum, 14 de agosto de 2022 (Lucas 12,49-53). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O trecho do Evangelho deste domingo, que contém algumas palavras “duras” de Jesus, foi e está entre os textos mais incompreendidos, muitas vezes manipulados pelos pregadores, instrumentalizado e citado em favor da própria ideologia cristã. Nós o leremos tentando não o glosar, não o comentar demasiadamente, para lhe reconhecer aquela autoridade que é própria apenas da palavra do Senhor e, portanto, explicá-lo com outras palavras de Jesus, convencidos do princípio segundo o qual “Scriptura sui ipsius interpres”, “a Escritura é a intérprete de si mesma”.
Jesus está subindo a Jerusalém com os seus discípulos e as suas discípulas, e tem plena consciência de que a meta dessa viagem é a cidade santa que mata os profetas e os rejeita (cf. Lc 13,33-34), portanto, o lugar do seu êxodo deste mundo ao Pai (cf. Lc 9,31; Jo 13,1) por meio da morte na cruz.
Entre os seus ensinamentos e as suas palavras, Lucas testemunha algumas convicções de Jesus expressadas em voz alta: confissão e profecia! Acima de tudo, Jesus declara: “Eu vim para lançar fogo sobre a terra, e como gostaria que já estivesse aceso.”
Esta é a razão de sua “vinda” de Deus à terra: ele veio para lançar fogo! É evidente que aqui a linguagem de Jesus é parabólica, ele não fala do fogo devorador que queima e aterroriza, mas de outro fogo, de uma força divina que ele veio trazer entre os humanos e que ele deseja que se manifeste e atue. A experiência da presença e da ação de Deus é sentida por Jesus como um fogo que queima, ilumina e aquece, e ele deve recorrer várias vezes a essa linguagem simbólica.
No Evangelho apócrifo de Tomé, essa palavra é relatada quase da mesma forma: “Lancei o fogo sobre o mundo, e eis que o conservo até que ele se incendeie” (10). Outro ágraphon, uma palavra não escrita nos Evangelhos canônicos, mas lembrada por Orígenes, por Dídimo, o cego, e pelo próprio Evangelho de Tomé (82), pode ser aproximada a esse ditado: “Quem está perto de mim está perto do fogo; quem está longe de mim está longe do Reino.”
A partir desses vários testemunhos, compreendemos que Jesus era um homem devorado por um fogo, um homem passional, que a sua missão era espalhar como fogo a presença eficaz de Deus no mundo, que ele mesmo era fogo ardente, amor que queima como “a chama do Senhor” (Ct 8,6).
No Evangelho segundo Lucas, o fogo é acima de tudo um sinal, um símbolo do Espírito Santo, já anunciado por João Batista como força, presença divina na qual Aquele que vem mergulhará aqueles que se converterem, isto é, “batismo no Espírito Santo e no fogo” (cf. Lc 3,16); é aquele fogo que nos Atos dos Apóstolos desce como fogo vivo e ardente, presença ígnea do Ressuscitado sobre a Igreja nascente, reunida à sua espera (cf. At 2,1-11).
Jesus é um homem de desejo grande e profundo, um homem de paixão e aqui, de repente, confessa essa paixão que o habita. Aquele fogo do Espírito que ele trouxera do Pai para a terra, fogo de amor, deveria incendiar o mundo, arder no coração de cada ser humano: era isso que ele desejava fortemente! Ele desejava isso nos seus dias terrenos e o deseja ainda hoje, porque esse fogo que ele trouxe muitas vezes está encoberto pelas cinzas que a própria Igreja coloca sobre ele, impedindo-o de arder.
É assim, sabemos disto: basta ler toda a história da fé cristã para se dar conta de que o fogo do Evangelho se acende aqui e acolá, de vez em quando, em pessoas e comunidades que o fazem reaparecer sacudindo as brasas, mas depois, logo depois, é novamente encoberto pelas cinzas. Ilumina e aquece sempre por pouco tempo, é mantido vivo e conservado, mas raramente arde... Jesus, por sua vez, desejava que ele ardesse nos corações dos fiéis como ardia no coração dos dois discípulos no caminho de Emaús (cf. Lc 24,32), quando as Escrituras explicadas pelo Ressuscitado pegavam fogo; como ardia na Igreja nascida do Pentecostes.
Segue-se, depois, outro pensamento de Jesus estreitamente relacionado com o primeiro: “Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra”. Aqui está outro desejo de Jesus, desejo não de sofrimento, de dor, mas de cumprir a vontade do Pai e de dar a sua vida para que os outros vivam em plenitude!
É um anúncio da sua paixão e morte, quando ele será imerso na prova, no sofrimento e na morte de cruz. Esse evento o espera, e ele deve entrar na água do sofrimento e ser imerso nela como em um batismo. Não porque os sofrimentos tenham valor em si mesmos, mas porque, se ele continuar sendo fiel, obediente ao amor, à vontade do Pai que conhece apenas o amor, ele terá que pagar o preço por isso: rejeição, recusa por parte dos poderosos religiosos e políticos, por parte do próprio povo, porque Jesus é um “justo” – como proclama o centurião debaixo da cruz após a sua morte (cf. Lc 23,47) –, e, se o justo assim permanece, ele não só é um embaraço, mas também deve ser tirado de circulação (cf. Sb 2,10-20).
Estamos sempre no espaço da linguagem simbólica: o batismo para Jesus não é um rito, mas é um banho real de sangue e de morte. Ele certamente está angustiado diante dessa perspectiva, mas é uma ânsia para que isso se cumpra logo, que seja feito para sempre. Não que ele deseje a morte e o sofrimento, não há nenhuma vontade “dolorista” de sua parte, mas sim uma vontade de que se acelere o caminho rumo ao pleno cumprimento da vontade de Deus, que também é a sua vontade, e que a sua vida seja salvação para os outros.
Por fim, há um terceiro pensamento de Jesus, que se segue aos dois primeiros, um pensamento que diz respeito aos discípulos e, portanto, também a nós hoje. Qual achamos que é o resultado da vinda de Jesus, do aparecimento do “sinal do Filho do homem” (Mt 24,30), isto é, da cruz de Cristo, do Evangelho que se mostra como epifania na vida das pessoas? Achamos que tudo vai ser melhor? Eis o engano presente nos nossos corações, ainda que cheios de desejo e de paixão.
Confesso que, graças ao ensinamento recebido, sempre fui lúcido a esse respeito: mesmo durante o Vaticano II e logo depois, embora muito jovem, ousei me opor aos entusiasmos dos meus amigos, aliás, com mais autoridade do que eu, que olhavam para o Concílio como para uma nova fase, uma fase mais “bela” na vida da Igreja. Em vez disso, eu lhes lembrava que, no mundo, quanto mais o Evangelho emerge, quanto mais arde o fogo do Espírito, quanto mais evidente se torna o sinal do Filho do homem, pior fica! Porque a boa notícia desencadeia “as potências do ar” (Ef 2,2; cf. 6,12) e as da terra, que, diante da emergência do Evangelho, travam uma guerra mais desenfreada. É assim, é assim! Quanto mais a Igreja se reforma e se conforma a Cristo Senhor, menos quietude há na Igreja, pois surgem a divisão, a contraposição, a contradição...
É por isso que Jesus diz: “Vós pensais que eu vim trazer a paz sobre a terra? Pelo contrário, eu vos digo, vim trazer divisão.” Atenção, não que Jesus desejasse a divisão entre os humanos e na sua comunidade, não que ele amasse ver as contraposições à paz, mas ele sabia muito bem que essa é a necessitas, “o necessário” na ordem deste mundo.
Aparece um justo, e eis que todos se lançam contra ele; aparece uma possibilidade de paz, e aqueles que estão armados reagem; aparece Jesus, e, imediatamente, desde o seu nascimento, desencadeia-se o poder homicida. Enquanto os anjos em Belém anunciam “paz na terra aos homens que Deus ama” (Lc 2,14), o poderoso tirano de plantão, à época Herodes, faz um massacre de crianças inocentes e ignaras (cf. Mt 2,16-18).
São os falsos profetas que sempre dizem e cantam que “tudo está bem!” (cf. Jr 6,13-14; Ez 13,8; Mi 3,5), enquanto, em vez disso, devemos estar precavidos. Repito, quanto mais o Evangelho é vivido por homens e mulheres, mais aparecem a divisão e a contradição, até dentro da mesma família, da mesma comunidade. Até a manifestação do indizível: pai contra filho e filho contra pai, mãe contra filha e filha contra mãe...
Não é assim também hoje, especialmente nestes últimos anos, nas comunidades cristãs? Cristãos que se autodenominam assim e se colocam como defensores da identidade confessional, mas depois permanecem surdos à voz do Evangelho; e, por outro lado, cristãos que, dando o primado ao Evangelho e não às tradições religiosas humanas, são desprezados, julgados como ingênuos, bonzinhos ou até mesmo covardes: cristãos do campanário e cristãos do Evangelho!
Jesus é e continua sendo “Príncipe da paz” (Is 9,5), e a sua vitória está assegurada, mas o acesso ao Reino se dá por meio de muitas tribulações (cf. At 14,22), provações, divisões. Assim aconteceu com ele, Jesus; assim deve acontecer conosco, seus discípulos, se formos fiéis a ele e não tivermos medo do fogo ardente do Evangelho e do Espírito de Jesus.