Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 4º Domingo da Quaresma, 27 de março de 2022 (Lucas 15,1-3.11-32). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O itinerário quaresmal que realizamos neste Ano Litúrgico C por meio da escuta do Evangelho segundo Lucas é totalmente voltado ao anúncio da nossa conversão e da misericórdia de Deus, que suscita em nós a conversão, atraindo-nos para “Deus” mesmo, que “é amor” (1Jo 4,8.16).
Quem se faz intérprete dessa misericórdia infinita é Jesus, com ações, comportamentos, palavras e parábolas suscitadas algumas vezes por aqueles que não chegaram a tal conhecimento de Deus, preferindo parar no culto, nos sacrifícios, na liturgia como meios para se aproximar dele (cf. Os 6,6).
Assim, eis-nos no início do capítulo 15, em que Lucas conta que os publicanos, isto é, aqueles que eram manifestamente pecadores, gente perdida, iam escutar Jesus. Por que eles eram atraídos por Jesus, enquanto fugiam dos sacerdotes e dos fiéis zelosos? Porque sentiam que estes últimos não iam procurá-los, não os amavam, mas os julgavam e os desprezavam.
Jesus, em vez disso, tinha outro olhar: quando via um pecador público, considerava-o como um ser humano, um entre todos os seres humanos (todos pecadores!), alguém que era pecador de modo evidente, sem hipocrisias nem ficções. Diante dessa visão, Jesus sentia com-paixão: não julgava quem estava na sua frente, não o condenava, mas ia procurá-lo lá onde estava, no seu pecado, para lhe propor uma relação, a possibilidade de fazer um trecho de caminho juntos, de se escutarem reciprocamente sem preconceitos (cf. Lc 19,10).
Assim, os pecadores fugiam da comunidade judaica e se dirigiam a Jesus, o que escandalizava os homens religiosos por profissão, que “murmuravam dizendo: ‘Este homem acolhe os pecadores e até come com eles!’”.
Jesus, portanto, é obrigado a se defender e não o faz com violência nem com uma apologia de si mesmo, mas contando a esses fariseus e escribas algumas parábolas, para ser exato três: a da ovelha perdida (cf. Lc 15,4-7), a da moeda perdida (cf. Lc 15,8-19) e a que escutamos na liturgia, a famosa parábola dos dois filhos perdidos e do pai pródigo de amor.
Tentemos lê-la, mais uma vez, em obediência às Sagradas Escrituras e formados pelo ensinamento que nos vem das nossas experiências, das nossas histórias.
Jesus narra a história de uma família que, como todas as famílias, não é ideal, não está isenta dos sofrimentos e da “irregularidade” dos relacionamentos. Ela é composta por um pai (mas falta a mãe: está morta ou talvez ausente?) e por dois filhos, nascidos e criados no mesmo ambiente, mas capazes de dois resultados formalmente diferentes, nos antípodas: na realidade, porém, ambos estão unidos pelo não conhecimento do pai e pela vontade de negá-lo.
Mas se note bem: o pai dessa parábola aparece desde o início como diferente em relação aos pais terrenos, porque, a pedido do filho mais novo de receber a herança antecipadamente (portanto, de algum modo, o filho já o quer morto!), ele responde deixando-o fazer isso, sem admoestá-lo, sem contradizê-lo, sem alertá-lo.
Existe entre nós, humanos, um pai assim? Não! Portanto, somos logo levados a ver nesse pai o Pai, isto é, Deus mesmo, o único que nos deixa livres diante do mal que queremos fazer, que não nos detém, mas se cala, deixando-nos nos afastar dele.
Por quê? Porque Deus respeita a nossa autonomia e a nossa liberdade. Ele nos deu a educação por meio da Lei e dos Profetas, mas depois nos deixa livres para decidir como quisermos.
É assim que o pai da parábola divide a herança entre os dois filhos ou, melhor – como diz o texto grego – “a sua vida” (ho bíos) e deixa o filho mais novo partir, mostrando-lhe, embora este certamente não entenda, respeito pela sua liberdade, gratuidade, amor fiel.
O filho mais novo exige, reclama, reivindica, força a mão do pai, e este responde de modo surpreendente: toda a sua atitude o mostra como inoperante, quase ausente, por respeito à liberdade do filho. O filho, portanto, finalmente vai embora daquela casa que sentia como uma prisão, para longe do olhar daquele pai que sentia como um espião, embora daquele espaço que tinha que compartilhar com o pai e com o irmão mais velho e que não sentia como próprio.
Ele vai embora, mas logo dissipa tudo em festas com amigos, jogos, prostitutas, ficando assim sem dinheiro, até ter que começar a trabalhar para sobreviver. Ele acaba até sendo cuidador de porcos, animais impuros, desprezados pelos judeus, e nessa desolação começa a entender melhor onde é possível acabar...
Assim, “ele começou a passar necessidade” (érxato hystereîsthai): falta-lhe algo, e a falta de algo sempre é capaz de suscitar perguntas em nós. O que lhe falta? Certamente, o dinheiro gasto; certamente, a comida para viver; mas também lhe falta alguém ao seu lado, alguém que lhe dê de comer, “alguém que” – diz o texto – “lhe ofereça alimento”, fazendo-lhe sentir reconhecimento e cuidado!
É assim, nós precisamos do outro, e quando os outros desaparecem do nosso horizonte, ficamos desolados, e sem os outros, nos encaminhamos rumo à morte.
A partir da experiência dessa condição degradada, igual à dos animais, o filho mais novo começa a reentrar em si mesmo, a tomar consciência da própria situação. Não é alguém que se converte, mas nele já há o desejo de dizer “chega!” àquela condição de fome e desolação. Então, ele pensa como pode voltar atrás e reencontrar a condição de antes, na sua casa, convencendo o pai a lhe dar pelo menos de comer: ele será servo e assim garantirá o seu sustento; melhor em casa como servo do que aqui como porco...
Ele retorna, portanto, tentando imaginar a cena que vai fazer ao pai, para aplacar a sua ira e ser readmitido em casa. Ele não está arrependido, não está movido por amor em relação ao pai, mas apenas pelo interesse pessoal.
Mas eis que aqui inicia um caminho repleto de surpresas, porque finalmente o filho conhece o pai de modo diferente de como o conhecera quando vivia com ele. Ele pensa que o pai vai chamá-lo a prestar contas dos seus malfeitos, mas, em vez disso, encontra o pai que corre ao seu encontro; pensa que deve se submeter ao castigo, tornando-se escravo, mas, em vez disso, o pai o veste com a túnica do filho; pensa que terá que chorar e se humilhar, mas, em vez disso, é o pai quem prepara um banquete para ele, mandando matar o novilho gordo; pensa que terá que ficar aos pés do pai como um penitente, mas, em vez disso, o pai o abraça e o beija.
Note-se que o pai não se preocupa se o filho manifesta um verdadeiro arrependimento, uma verdadeira contrição. Ele não o deixa falar, abraça-o apertado, impede-lhe gestos penitenciais e expiatórios, e assim lhe mostra o seu perdão gratuito. Exatamente como Oseias profetizara: Deus continua amando o seu povo enquanto este se prostitui e, assim que pode, abraça-o novamente e o retoma (cf. Os 1,2; 11,8-9).
Sim, esse pai era diferente de como o filho mais novo o conhecera quando estava em casa e depois quando fugiu para longe: e é como se essa descoberta o ressuscitasse, pusesse-o novamente de pé, desse-lhe a possibilidade de uma nova vida em comunhão com ele.
A parábola poderia se concluir aqui, e o ensinamento de Jesus estaria completo: finalmente o filho conheceu o verdadeiro rosto do pai, rosto de misericórdia, amor fiel que nunca falha, amor sem fim...
Mas, em vez disso, há uma sequência: os pecadores são convidados pela primeira parte da parábola a conhecer o verdadeiro rosto de Deus e, portanto, a se sentir perdoados a ponto de se converterem; mas e quanto aos justos ou, melhor, àqueles que acreditam que são justos e bons, como o filho mais velho que permaneceu fielmente em casa?
A parábola contém um ensinamento também para eles, isto é, para o filho mais velho. Ei-lo entrando em cena, enquanto, como bom rapaz, diligente e disposto, retorna dos campos onde trabalhou. Ele ouve o som da música e das danças vindo da casa e se pergunta o porquê de tudo isso; é um servo quem lhe explica o que aconteceu: “É teu irmão que voltou. Teu pai matou o novilho gordo, porque o recuperou com saúde”. Em resposta, ele não sabe fazer nada mais do que ficar com raiva, prometendo a si mesmo que não participaria de uma festa tão injusta para ele.
Portanto, ele está do lado de fora, e é o pai quem sai mais uma vez, indo ao encontro dele também: ele implora a ele para participar da alegria do irmão que estava como que morto, mas agora é um homem novo. Inútil, as palavras do pai o incomodam ainda mais: como é possível – pensa ele –, há uma justiça que deve reinar! Seu irmão (ou, melhor, diz ele dirigindo-se ao pai com desprezo: “Esse teu filho...”) foi embora, desperdiçou tudo com amigos e prostitutas, gozou e se divertiu, enquanto ele em casa teve que levar em frente o campo e a fazenda. E, agora, como é possível festejar esse que voltou, quando ele, que permaneceu fielmente em casa, nunca foi festejado? Assim, no seu coração, uma palavra ressoa como reação: “Não é justo!”.
Parece claro, portanto, que mesmo esse filho, o mais velho, embora tendo permanecido ao lado do pai, nunca o conhecera, nunca lera o seu coração, nunca pusera confiança nele e nada aprendera com ele: por isso, ele julga e condena! Ele permanecera em uma casa que, assim como para o seu irmão, era uma prisão; permanecera ao lado de um homem, seu pai, a quem nunca conhecera de verdade.
É o pai quem deve lhe revelar: “Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. Mas era preciso festejar e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e tornou a viver; estava perdido, e foi encontrado”.
Essa é verdadeiramente a parábola do amor frustrado daquele pai que amou até ao fim (cf. Jo 13,1), totalmente, gratuitamente, e que, em vez disso, parecia um pai-patrão em virtude das projeções que ambos os filhos fizeram sobre ele. Isso sempre ocorre quando o Pai é Deus, sobre quem projetamos as nossas imagens; isso ocorre às vezes também nas relações entre os pais e os filhos deste mundo.
A única diferença é que o amor de Deus é previdente, sempre em ação, nunca contradito, fiel e misericordioso. O nosso, pelo contrário... Para o irmão mais velho, resta a tarefa de não dizer mais ao pai: “Esse teu filho”, mas sim: “Este meu irmão”. É uma tarefa que espera por todos nós, todos os dias.
Afirmar que o ser humano é filho de Deus é fácil, e todos os homens religiosos fazem isso, porque valorizam a teologia ortodoxa. Em vez disso, é mais difícil dizer que o ser humano é “meu irmão”, mas é exatamente essa a tarefa que nos espera.
Deus, o Pai, permanece do lado de fora da festa, ao lado de cada um de nós, e nos pede: “Diga que o ser humano é teu irmão, e então poderemos entrar e fazer festa juntos”.