O ver de Santa Clara e de Moisés e o nosso não ver (Dt 34,1-12)

Foto: Reprodução | YouTube

11 Agosto 2021

 

"Moisés e Clara convocam-nos a ver. Aliás, Santa Clara é padroeira da televisão. E nós, será que estamos realmente vendo o que está acontecendo no Brasil? Não estou referindo-me à pandemia. O Brasil passa por um momento de cegueira. 'Há coisas erradas acontecendo no país, instituições e sociedade precisam estar bem alertas', afirmou o presidente do TSE. Muitos não querem ver o que está acontecendo. Outros querem fazer a sociedade ver o que não é necessário para democracia. A liberdade democrática está sendo tolhida em nome de egocentrismos desvairados de lideranças negativas. 'Quem tem olhos para ver, veja!'", escreve Frei Jacir de Freitas FariaOFM, ao comentar o Evangelho de Deuteronômio 34:1-12

 

Frei Jacir é doutor em Teologia Bíblica pela FAJE-BH. Mestre em Ciências Bíblicas (Exegese) pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Professor de exegese bíblica. Membro da Associação Brasileira de Pesquisa Bíblica (ABIB). Padre Franciscano. Autor de dez livros e coautor de quatorze. Último livro: O Medo do Inferno e a arte de bem morrer: da devoção apócrifa à Dormição de Maria às irmandades de Nossa Senhora da Boa Morte (Vozes, 2019).

 

Eis o comentário.

 

O texto sobre o qual vamos refletir é Dt 34,1-12. Trata-se da morte de Moisés na terra de Moab. Moisés, o grande profeta e legislador, morreu avistando a terra prometida do alto do monte Nebo, após liderar o povo de Deus na libertação do Egito e na passagem pelo deserto.

 

Hoje, celebramos a memória de Santa Clara de Assis (1194-1253). Filha da alta sociedade de Assis, Clara era uma mulher de visão. Na tenebrosa Idade Média, ela viveu de forma diferenciada a vida religiosa contemplativa, isto é, não aceitou viver enclausurada, fechada em um convento como as beneditinas, sem a possibilidade de ter contato com os pobres e os leprosos, pessoas que viviam segregadas, separadas da sociedade, por medo do contágio do vírus da lepra.

 

São Francisco e Santa Clara (Foto: Reprodução | Facebook)

 

Seguidora de São Francisco, outro jovem rico assisense, os dois se uniram na fé e no amor a Deus a partir dos desvalidos. Tudo deixaram e nunca se separaram na missão. Clara era também uma mulher de personalidade forte. Assim como Moisés enfrentou o poderoso Faraó do Egito, ela desafiou os papas que ousaram lhe impor regras que contrariavam o evangelho. Clara morreu desejando estar plenamente com Deus na vida Eterna. Francisco morreu avistando, com a ajuda dos frades, a sua amada cidade de Assis, nas belíssimas montanhas da Úmbria italiana.

 

Moisés morreu avistando, por ordem divina, Canãa, a terra que Deus prometeu dar aos patriarcas Abraão, Issac e Jacó. O texto diz que ele tinha 120 anos, modo figurado para dizer que ele era um sábio. Número na Bíblia não é sinal de quantidade, mas de sabedoria. Ninguém podia viver tanto naquela época.

 

Depois de Moisés, “Em Israel nunca mais surgiu um profeta como Moisés, a quem o Senhor conhecesse face a face, nem quanto aos sinais e prodígios que o Senhor lhe mandou fazer na terra do Egito, contra o Faraó, os seus servidores e todo o seu país, nem quanto à mão poderosa e a tantos e tão terríveis prodígios, que Moisés fez à vista de todo Israel” (Dt 34,1-12). Moisés permaneceu no deserto. Seu túmulo nunca foi encontrado.

 

Moisés, criado no palácio pela filha do Faraó, conheceu o luxo. Já adulto, vendo a opressão contra o seu povo, cometeu o crime de matar um egípcio que maltratava seu povo (Ex 2,11-15). Depois desse fato, com medo, ele fugiu para Madiã, onde se casou e, tempos depois, viu Deus que, da sarça ardente, o convocou para voltar e libertar o seu povo da escravidão do Egito (Ex 2,16—3,1-11). O Deus que fez Moisés ver a terra de Canãa, antes de sua morte, é o mesmo que viu a opressão do seu povo e o escolheu como libertador, ainda que ele tivesse agido com violência. A teologia preferiu o Moisés libertador ao violento. 

 

Reprodução de parte do afresco Grande Cruz do Mestre, de Piero della Francesca da igreja de São Francisco de Arezzo

 

Josué, o filho de Nun, já tinha sido escolhido por Moisés para dar continuidade à sua missão. A predileção de Moisés por Josué justifica-se pelo fato de Josué ser considerado o seu servo desde a juventude (Ex 33,11; Nm 11,28). Josué estava com Moisés no monte Sinai, quando ele recebeu as tábuas da Lei, a Torá (Ex 24,13). Prevendo a morte de Moisés, Deus disse a Josué: “Sê forte, e corajoso, pois tu introduzirás os filhos de Israel na terra que eu lhes havia prometido; quanto a mim, eu estarei contigo” (Dt 31,23).

 

Josué, em hebraico Yehoshuá, nome que significa Javé é/dá a salvação, recebeu o encargo de manter viva a memória e os ensinamentos da Torá, recebida por Moisés. Notório é o fato de que nome Jesus é a transliteração grega do nome hebraico Josué. Como Moisés, Jesus transferiu a continuidade de sua missão para os apóstolos e apóstolas. E eles, pelo batismo, transferiram essa missão para nós, os cristãos de hoje.

 

Moisés e Clara convocam-nos a ver. Aliás, Santa Clara é padroeira da televisão. E nós, será que estamos realmente vendo o que está acontecendo no Brasil? Não estou referindo-me à pandemia. O Brasil passa por um momento de cegueira. “Há coisas erradas acontecendo no país, instituições e sociedade precisam estar bem alertas”, afirmou o presidente do TSE. Muitos não querem ver o que está acontecendo. Outros querem fazer a sociedade ver o que não é necessário para democracia. A liberdade democrática está sendo tolhida em nome de egocentrismos desvairados de lideranças negativas. “Quem tem olhos para ver, veja!”

 

 

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