18 Dezembro 2020
Publicamos aqui o comentário de Enzo Bianchi, monge italiano fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 4º Domingo do Advento, 20 de dezembro de 2020 (Lucas 1,26-38). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O Quarto Domingo do Advento, que sempre cai dentro das festas maiores do Advento, narra-nos a ação de Deus em uma mulher, Maria de Nazaré: verdadeiramente “o Todo-Poderoso fez nela grandes coisas” (cf. Lc 1,49)! O famosíssimo trecho da anunciação do anjo a Maria, celebrado por inúmeras obras de arte, apresenta o evento que antecede a vinda do Messias na carne: a sua concepção, o início da sua vida mortal. E tudo ocorre como cumprimento pontual de uma palavra de Deus, porque ele sempre cumpre as suas promessas.
O relato começa com a especificação “no sexto mês”, que é o gancho com o anúncio do anjo a Zacarias (cf. Lc 1,5-25). Quando Isabel já carregava há seis meses em seu ventre o menino anunciado pelo anjo, João, o mesmo “anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré”.
Ele havia sido enviado a um sacerdote a Jerusalém, ao templo, na hora da oferta do incenso; agora, em vez disso, é enviado à periferia da terra santa, em uma cidade minúscula, em uma região espúria habitada por muitos pagãos e, por isso, vista com desconfiança. “Pode vir alguma coisa boa de Nazaré?” (Jo 1,46), Natanael se perguntaria não por acaso.
O mensageiro é Gabriel, que no livro de Daniel anunciava a unção de um Santo dos Santos no fim de 70 semanas, a presença de um Ungido por Deus, de um Messias (cf. Dn 9,24-27). Sim, para Lucas, completou-se o tempo das 70 semanas, a espera acabou, chegou a plenitude dos tempos. O anjo Gabriel, então, é enviado a uma mulher, Maria, “virgem, prometida em casamento a um homem chamado José. Ele era descendente de Davi”, linhagem da qual o Messias havia de vir.
Entrando na sua casa, Gabriel lhe diz: “Alegra-te (chaîre, de chará, alegria), tu que foste preenchida de graça”. Maria é saudada com as palavras dirigidas pelos profetas ao povo de Deus, à filha de Sião, ou seja, um convite à alegria escatológica: “Alegra-te, porque estou prestes a anunciar a boa notícia, o Evangelho”. Ela é definida como kecharitoméne, ou seja, uma mulher preenchida pela graça, totalmente sob a influência da cháris, da benevolência gratuita e eficaz de Deus.
Por isso, o mensageiro acrescenta: “O Senhor está contigo”, saudação que ecoa e reatualiza as saudações dirigidas à filha de Sião, personificação da comunidade dos fiéis da antiga aliança, dos ‘anawim, aqueles pobres que esperavam apenas no Senhor. Em particular, as suas palavras lembram dois oráculos:
“Grita de alegria, filha de Sião! (…) O rei de Israel é o Senhor, que está em teu meio; não precisarás mais ter medo de alguma desgraça. (…)
Não tenhas medo, Sião! (…) O Senhor teu Deus está a teu lado como valente libertador!” (Sf 3,14-17).
“Exulta e fica alegre, filha de Sião, pois venho morar no meio de ti – oráculo do Senhor” (Zc 2,14).
Maria está profundamente perturbada, tanto por essa visita, quanto pelo conteúdo da mensagem, que ela não sabe decifrar. Ela pensa, medita, se interroga, quer fazer discernimento sobre essa palavra. Essa é a reação muitas vezes testemunhada nos relatos das anunciações: a vinda de Deus, a escuta da sua palavra dirigida a um fiel perturba, causa o temor de Deus, aquela sensação de pequenez, de humildade, de indignidade, que leva à adoração. Como Zacarias (cf. Lc 1,12), Maria também fica abalada com a vinda repentina do Senhor e não sabe aonde esse encontro a conduzirá...
O anjo, então, a tranquiliza com as palavras centrais desta página, a serem lidas e relidas, sem nunca se cansar: “Não tenhas medo, Maria, porque encontraste graça diante de Deus”. Quantas vezes Deus se dirige aos seus chamados, infundindo-lhes paz, força e coragem! “Eis que conceberás e darás à luz um filho, a quem porás o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi. Ele reinará para sempre sobre os descendentes de Jacó, e o seu reino não terá fim.”
Quem é esse filho? Aquele que Deus havia prometido por meio do profeta Natã a Davi (cf. 2Sm 7,8-16). Assim se cumpre a profecia, finalmente se realiza, e, na plenitude dos tempos, o filho de Davi, mas também o Filho do Altíssimo, nasce de Maria: o seu Reino não terá fim, como repetimos ainda hoje no Creio!
A espera do Messias, alimentada por gerações e gerações de fiéis e testemunhada nos tempos de Jesus, principalmente pela comunidade essênia de Qumran, chega ao seu fim. Que paradoxo: uma declaração solene, um grande anúncio feito a uma jovem humilde de um vilarejo desconhecida da Galileia!
Jesus será o nome do nascituro: Jehoshu’a, “o Senhor salva”. Caberá a Maria impor-lhe esse nome: porém, não serão nem ela nem José que o escolherão, mas o Nome lhe é dado pelo próprio Deus por meio do anjo, porque ele é uma vocação, é uma missão, encerra a identidade de Jesus, Filho do Altíssimo, Filho de Deus, um homem que só Deus podia nos dar.
Esse anúncio também não é de fácil compreensão para Maria: ela é uma mulher de fé, mas a fé sempre interroga, questiona. Ela não pede sinais, não duvida, como fez Zacarias, que precisamente por isso mesmo ficou mudo, incapaz de falar para dar testemunho de Deus (cf. Lc 1,8-20), mas interroga: “Como acontecerá isso, se eu não conheço homem algum?”.
Atenção, o evangelista não se interessa pela psicologia de Maria, mas quer revelar a identidade de Jesus por meio do modo da concepção do menino. Sim, Maria é virgem, ela está em uma condição que impede o nascimento de um filho dela. Muitas mulheres no Antigo Testamento haviam gerado um filho graças à intervenção de Deus, apesar da sua condição de esterilidade: Sara, Ana... até Isabel. Havia uma impossibilidade humana de gerar, mas o poder de Deus revelado no anúncio do nascimento havia tornado fecundo o ventre daqueles estéreis. E assim, depois de se unirem ao seu cônjuge, embora estéreis, conceberam e deram à luz por graça, por vontade de Deus. Só Deus podia lhes dar aqueles filhos...
Em Maria, isso é ainda mais evidente. Essa jovem é virgem, não conhece homem, não se uniu ao noivo José (Mateus dirá que “ficou grávida antes de viverem juntos”: Mt 1,18), portanto, absolutamente não pode se tornar mãe. Maria não pede ao anjo nem garantias nem sinais, mas interroga o mistério de Deus para que lhe seja indicado o caminho da fé, a estrada da obediência. Desse modo, busca apenas responder ao chamado de Deus. Continua sendo uma mulher de fé, isto é, uma mulher de escuta: ela verdadeiramente tem “um coração capaz de escuta” (1Rs 3,9), que acolhe a palavra do Senhor, guarda-a, tenta interpretá-la, pensá-la, meditá-la (cf. Lc 2,19.51). Com a sua fé, interroga o intelecto, aquilo que compreendeu.
O anjo, então, lhe revela: “O Espírito virá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”. O Espírito realizará aquilo que é impossível aos humanos, mas possível a Deus. Ele é o protagonista da nova criação: aquele que, na criação do mundo, pairava sobre o informe e sobre o vazio (cf. Gn 1,2), descerá ao ventre vazio de Maria e dará início à nova criação. O Espírito, poder eficaz de Deus, a sua Shekinah, a sua Presença que habitava no Monte Sinai e no Santo dos Santos, testemunhada pela nuvem que fazia sombra, virá fazer a sua morada em Maria, que entrará na sombra do poder de Deus.
O Espírito descerá sobre Maria, ao seu seio virginal: e eis que a Virgem conceberá o Filho de Deus, o Santo! Assim, e somente assim, é possível narrar a filiação de Jesus de Deus e de Maria, sua mãe, daquele Filho que só Deus podia dar à humanidade.
Deus, o celeste, fez-se terrestre;
Deus, o eterno, fez-se mortal;
Deus, o onipotente, fez-se fraco;
Deus, o três vezes Santo, fez-se Emanuel, Deus-conosco (cf. Is 7,14; Mt 1,23);
Deus, que é Deus, fez-se homem.
Eis o grande mistério da Encarnação, da humanização de Deus: Maria de Nazaré parece ser o lugar onde o Deus invisível se fez visível, o local onde o Deus que não pode ser visto se fez o homem que narra a Deus (exeghésato: Jo 1,18), o Deus-conosco.
Por fim, Gabriel anuncia a Maria um sinal: “Também Isabel, tua parenta, concebeu um filho na velhice. Este já é o sexto mês daquela que era considerada estéril, porque para Deus nada é impossível” (cf. Gn 18,14). Diante de mais essa revelação do anjo, Maria simplesmente diz: “Eis-me aqui!”, ou seja, pronuncia o seu “sim” incondicional.
Às palavras abundantes do anjo, ela responde apenas rompendo o silêncio: “Eis aqui a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra”. Maria continua sendo e se mostrando como mulher da fé, mulher da escuta e também se revela como mulher da obediência: não é uma mãe que se faz discípula, mas, precisamente por ser discípula, é chamada a ser mãe, e mãe do Messias.
Ela se define como serva do Senhor, coloca-se radical e totalmente ao seu serviço. Maria é a serva que diz o seu “amém”, o seu “fiat”, acolhendo a vocação que lhe é dirigida por Deus. Há nela um total abandono à escuta da Palavra e da vontade do Senhor, e é a escuta que torna servos, diz toda a Escritura. Em Maria, temos o ícone autêntico da Igreja e do fiel submetido ao primado da palavra de Deus e à ação do Espírito. Não é por acaso que o nascimento de Jesus ocorre graças à ação do Espírito que desce em Maria e que o nascimento da Igreja ocorre graças ao Espírito que desce sobre os discípulos e sobre a própria Maria reunidos em oração (cf. At 1,8; 2,1-4).
E não nos esqueçamos de que a geração de Jesus por Maria é, acima de tudo, um evento espiritual, como nos lembra Lucas em uma trecho atestado apenas no seu Evangelho:
“Enquanto Jesus dizia essas coisas, uma mulher levantou a voz no meio da multidão, e lhe disse: ‘Feliz o ventre que te carregou, e os seios que te amamentaram’. Jesus respondeu: ‘Mais felizes são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática’” (Lc 11,27-28).
Palavras que ressoam o pleno louvor de Maria, que é “bem-aventurada porque acreditou no cumprimento da promessa do Senhor” (cf. Lc 1,45).
Gerar Cristo é uma operação, acima de tudo, espiritual, que ocorre graças à fé, que é uma exposição radical de si à presença de Deus e à força do seu Espírito. Cada cristão é chamado a essa geração de Cristo em si mesmo: trata-se de acolher a Palavra com fé e obediência, de deixá-la fecundar em nós pelo Espírito Santo, de deixá-la crescer dia e noite, mesmo que não saibamos como (cf. Mc 4,26-27). Assim Cristo será gerado: “Cristo em vós, esperança da glória” (Cl 1,27).
O mistério de Maria, então, torna-se o mistério do cristão, que, contemplando o ícone da Anunciação, vê o mistério da sua própria vocação. E aprende que tal obra não pode ser realizada contando com as próprias forças pessoais, mas apenas confiando e entregando-se à graça do Senhor.
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Gerar Cristo, um chamado a cristãos e cristãs - Instituto Humanitas Unisinos - IHU