03 Mai 2019
Publicamos aqui o comentário do monge italiano Enzo Bianchi, fundador da Comunidade de Bose, sobre o Evangelho deste 3º Domingo da Páscoa, 5 de maio (João 21,1-19). A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Quando um autor termina um livro e escreve a conclusão, manifestando o propósito pelo qual escreveu, o livro pode ser publicado. Se, depois, sente-se a necessidade de acrescentar a essa conclusão outro capítulo de narrativas, em continuidade com as anteriores, então é preciso haver razões decisivas, importantes. Como se sabe, foi isso que ocorreu também com o quarto Evangelho, que terminou no capítulo 20 (lido no domingo passado) e depois foi estendido com um novo capítulo, o texto litúrgico de hoje.
Por que uma retomada breve, mas rica em episódios? É difícil para nós responder com certeza, mas podemos pelo menos levantar uma hipótese. O autor ou os redatores consideraram necessário pôr em relação “o discípulo que Jesus amava” (cf. Jo 13, 23; 19, 26; 20, 2; 21, 7.20.23) com Simão, o discípulo ao qual, desde o primeiro encontro, Jesus dera o nome de Pedro, rocha firme entre todos os outros (cf. Jo 1, 42). Em todo caso, esse apêndice é extraordinário, porque não é tentado a contar fatos extraordinários ou sobre-humanos referentes a Jesus ressuscitado, mas só quer nos contar a sua presença discreta, elusiva, fiel e paciente no meio da sua comunidade.
Essa manifestação do Ressuscitado ocorre às margens do Mar da Galileia, lá onde, segundo os sinóticos, ocorrera o chamado das duas primeiras duplas de irmãos: Pedro e André, Tiago e João, pescadores unidos em uma pequena empresa (cf. Mc 1,16-20 e par.).
Depois da morte e ressurreição de Jesus, os discípulos voltaram à Galileia, para a sua vida comum feita de trabalho, vida comum, vida de fé e de expectativa. E eis que, em um daqueles dias comuns, Pedro toma a iniciativa, dizendo aos outros: “Eu vou pescar”. Os outros seis respondem: “Também vamos contigo”. Essa história quer nos dizer muito mais do que aquilo que aconteceu com esses pescadores. Aqui, de fato, há apenas um punhado de discípulos – nem mesmo 11, todos aqueles que restaram, nem mesmo as mulheres! – que representam a comunidade de Jesus; está Pedro que toma a iniciativa de uma pesca que não é pesca de peixes; existe a disponibilidade dos outros seis de segui-lo na sua iniciativa.
“Mas não pescaram nada naquela noite”: uma pesca infrutífera, um trabalho e um esforço sem resultados. Esse resultado falimentar indica alguma coisa? Creio que sim: ou seja, Pedro pode tomar a iniciativa, mas sem a palavra, o mandato, a indicação do Senhor, a pesca permanecerá estéril, a missão, sem frutos.
Ao amanhecer, porém, eis que, na praia, está um homem cuja identidade os discípulos ignoram. Por outro lado, faltam as condições para reconhecê-lo: ainda havia uma penumbra, e ele não está perto, nem disse nada para que os discípulos pudessem reconhecer sua voz. É ele que rompe o silêncio, indo ao encontro deles com uma pergunta: “Moços, tendes alguma coisa para comer?”. Pergunta ouvida muitas vezes, pela boca de um mendigo na rua ou na porta de casa. Sim, pergunta de um mendigo que pede algo para comer para se sustentar. Os discípulos devem tê-la ouvido frequentemente nas estradas da Palestina, ouvem-na agora no amanhecer e a ouvirão sempre em todas as vicissitudes da história. A sua resposta é um seco “não”. Não houve pesca, não há comida.
Mas esse homem continua: “Lançai a rede à direita da barca, e achareis”. Assim aqueles discípulos pescadores fazem, um pouco admirados, e a rede se enche com uma tal quantidade de peixes que é cansativo arrastá-la para a praia. Portanto, uma pesca abundante, extraordinária, que desperta assombro em todos. No assombro, porém, há quem discirna algo mais e diferente: é o discípulo que Jesus amava, que vivera uma intimidade única com Jesus, a ponto de repousar a cabeça sobre o seu peito na última ceia (cf. Jo 13, 25). O amor passivo que ele havia experimentado o tornava “diorático”, homem de olhar penetrante, homem capaz de ver com o coração e não só com os olhos.
É por isso que, apontando para Jesus com o dedo, ele pode gritar: “É o Senhor!” (ho Kýriós estin). Atenção: ele diz isso para Pedro, apontando para aquele homem na praia e revelando-lhe aquilo que ele não tinha sido capaz de ver. Pedro não hesita um instante e, no seu entusiasmo repleto de desejo de estar com o Ressuscitado, imediatamente mergulha na água para alcançá-lo a nado.
É inútil calar: no quarto Evangelho entre o discípulo amado e Pedro há uma verdadeira “santa concorrência”, não uma concorrência de ciúmes, porque os dois discípulos são diferentes, e a sua respectiva relação com Jesus é diferente. Na última ceia, Pedro está atrás do discípulo amado junto com Jesus, e, para ele, que está abraçado em Jesus, no seu peito, deve pedir para se informar sobre quem é o traidor (cf. Jo 13, 24-25). E o discípulo amado, tendo recebido a resposta de Jesus, não diz nada a Pedro (cf. Jo 13, 26).
Depois, no amanhecer da ressurreição, informados por Maria de Magdala, Pedro e o discípulo amado correm juntos para o sepulcro, mas este chega primeiro (cf. Jo 20, 3-4). Deixa Pedro entrar no sepulcro (cf. Jo 20, 5-7), mas foi ele quem “viu e acreditou” (Jo 20, 8), enquanto Pedro é incluído entre aqueles que “ainda não tinham compreendido a Escritura que diz: ‘Ele deve ressuscitar dos mortos’” (Jo 20, 9). O discípulo amado precede Pedro no discernimento, no conhecimento, na fé e, no entanto, sempre reconhece que, no ordo da vida comunitária, Pedro é o primeiro por vontade de Jesus!
Depois, quando os discípulos arrastaram a rede cheia de peixes para a margem, viram um fogo aceso com peixe em cima e pão, enquanto Jesus lhes pedia que trouxessem alguns dos peixes que haviam pescado. Jesus preparou uma refeição para eles: também como ressuscitado, ele permanece como aquele que serve à mesa, que prepara o alimento e o distribui. Pedro, enquanto isso, se esforça para descarregar o peixe, e tudo ocorre sem que a rede se rompa, porque ele sabe manejá-la, impedindo que ela se rasgue. É o seu trabalho de unidade, de comunhão: cabe a ele conservar intacta, sem rasgar, a túnica de Jesus tecida de cima a baixo (cf. Jo 19, 23-24); cabe a ele fazer com que a missão não provoca dilacerações na comunidade dos fiéis.
E eis o banquete: “Vinde comer!”, diz Jesus, e ninguém responde, porque basta olhá-lo, basta sentir a sua presença, basta ver o seu estilo ao partir o pão e oferecer o alimento para reconhecê-lo. Não nos esqueçamos, além disso, que, quando esse capítulo foi escrito, Jesus já era indicado pelo termo ichthús, “peixe”, anagrama de cinco palavras:
Iesoûs Christòs Theoû Hyiòs Sotér,
Jesus Cristo de Deus Filho Salvador.
E eis-nos, enfim, ao relato que é a verdadeira motivação para o acréscimo desse capítulo 21. Depois de comer, Jesus inicia um diálogo com Simão Pedro:
“’Simão, filho de João, tu me amas (verbo agapáo) mais do que estes?’
Pedro respondeu: ‘Sim, Senhor, tu sabes que eu te quero bem (verbo philéo)’.
Jesus disse: ‘Apascenta os meus cordeiros’.
E disse de novo a Pedro: ‘Simão, filho de João, tu me amas (verbo agapáo)?’
Pedro disse: ‘Sim, Senhor, tu sabes que eu te quero bem (verbo philéo)’.
Jesus lhe disse: ‘Apascenta as minhas ovelhas’.
Pela terceira vez, perguntou a Pedro: ‘Simão, filho de João, tu me queres bem (verbo philéo)?’
Pedro ficou triste, porque Jesus perguntou três vezes se ele o queria bem (verbo philéo). Respondeu: ‘Senhor, tu sabes tudo; tu sabes que eu te quero bem (verbo philéo)’.
Jesus disse-lhe: ‘Apascenta as minhas ovelhas’.”
Note-se com atenção o jogo dos verbos gregos. Na terceira vez, Jesus não pergunta mais a Pedro: “Tu me amas?” (verbo agapáo), mas, como Pedro respondera duas vezes, pergunta-lhe: “Tu me queres bem?” (verbo philéo). A Jesus, basta o amor humano de Pedro, sua capacidade de querer bem: virá o dia – diz-lhe logo em seguida – em que Pedro saberá viver o amor, o ágape até o fim (eis télos: Jo 13, 1), até o dom da vida no martírio, mas não agora...
Pedro, de sua parte, parece grande porque é humilde, porque não pretende dizer: “Eu te amo”, com aquele ágape que desce somente de Deus. Há aqui toda a grandeza de Pedro, que renuncia a ser o protagonista daquele amor que só Deus pode dar. O Pedro que tinha sido presunçoso (“Darei a minha vida por ti!”: Jo 13, 37), o Pedro que sempre era tão seguro e entusiasmado a ponto de querer fazer mais do que Jesus lhe pedia (“Senhor, então podes lavar não só os meus pés, mas até as mãos e a cabeça”: Jo 13, 9), agora é o Pedro ancião, espiritualmente maduro, humilde porque foi humilhado, sem pretensões, porque compreendeu que era uma rocha frágil, que ao primeiro soprar do vento afundava... Para ele a vida foi toda uma lição, mas, precisamente por isso, ele pode ser o pastor de cordeiros e ovelhas perdidas.
Jesus, então, pode lhe dizer tudo. Não lhe recorda o pecado da negação e do medo, mas lhe revela o que o aguarda: “Sim, Pedro, tu foste jovem, cheio de vida e de entusiasmo, e naquele tempo decidias aquilo que querias e ias para onde querias. Mas, quando fores velho, não serás mais completamente dono de ti mesmo. Serás obrigado a deixar que te ajudem, estenderás as mãos e pedirás que os outros te vistam, porque tu não conseguirás sozinho e serás levado para onde não queres ir”.
Certamente, é uma profecia do martírio que o espera, da forma da morte que lhe caberá quando for crucificado e derramar o sangue para a glória de Deus; mas também de uma forma de “morte” cotidiana, no ministério que lhe compete, quando muitas vezes tiver que apoiar decisões que ele não gostaria. Na fraqueza da velhice, esse “martírio branco” também será possível ou, melhor, necessário...
Portanto, o que cabe a Pedro? Seguir Jesus. A última palavra de Jesus a Pedro é como a primeira: “Segue-me!” (cf. Jo 1, 42-43). Mesmo na diminutio, na passividade, no fracasso, ao ceder a outros as próprias faculdades, é possível seguir o Senhor. Não é justamente aquilo que Jesus também viveu, tornado objeto, coisa, manipulado, à mercê de outros que fizeram dele o que queriam, como ocorreu com João Batista (cf. Mc 9, 13; Mt 17, 12)? Esse é o seguimento de Jesus, do qual nenhum de nós pode fugir.
Mas, ao lado de Pedro, ainda resta o discípulo amado por Jesus. Pedro também terá aprendido a amá-lo? Aqui, de repente, Pedro se interessa por ele, perguntando a Jesus: “Senhor, o que vai acontecer a ele?” (Jo 21, 21). Mas Jesus responde: “Se eu quero que ele habite até que eu venha, o que é que tens com isso? Quanto a ti, segue-me” (Jo 21, 22). Resposta dura, mas clara: o discípulo amado é aquele que habita, do qual Pedro deve aceitar outro fim, outro ministério, outro testemunho. Ele estará entre os cordeiros dos quais Pedro é pastor, mas este último deve reconhecê-lo, e ponto final.
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''Pedro, segue-me'' - Instituto Humanitas Unisinos - IHU