23 Novembro 2018
Casas queimadas e vítimas atingidas com balas de borrachas revelam ação violenta da polícia no Mato Grosso do Sul. Operações favorecem fazendeiros e ocorrem em parceria com empresas de segurança.
A reportagem é de João Cesar Diaz e de Maurício Monteiro, publicada por Repórter Brasil, 18-10-2018.
Um helicóptero da Polícia Militar sobrevoava a paisagem devastada, levantando poeira e atiçando o fogo que ardia no capim logo abaixo. A bordo, estava o secretário de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul, Antônio Carlos Videira. Do céu, ele coordenava a ação de cerca de 70 policiais do Batalhão de Choque que tinha como objetivo expulsar os indígenas da sede da fazenda Santa Maria. A propriedade é vizinha da comunidade Guarani e Kaiowá de Guapo’y, no município de Caarapó. Uma fumaça preta encobria parte do horizonte.
A viagem de mais de 300 quilômetros feita pelos policiais em um par de horas foi resposta ao furto de porcos e de eletrodomésticos. Segundo a polícia, o batalhão fora acionado pelos funcionários da fazenda, que estariam em “cárcere privado” dentro da sede e cercados pelos indígenas que furtaram os animais e objetos.
A ação, que aconteceu em 26 de agosto, terminou com cinco indígenas atingidos por balas de borrachas, um Kaiowá de 69 anos preso e uma mulher atropelada por uma viatura da PM. Ela carregava sua filha no colo. “Quando a encontrei, ela mal conseguia caminhar, porque a viatura passou por cima da sua perna e da sua coluna”, disse uma agente da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) que preferiu não se identificar por medo de represálias. Em 2016, um de seus colegas de trabalho, também indígena, foi assassinado no episódio que ficou conhecido como massacre de Caarapó e que já levou à condenação de fazendeiros da região.
Criticada pelo Ministério Público Federal, a ação policial também foi repreendida por servidores da Funai e integrantes do Conselho Indigenista Missionário. A operação sem o acompanhamento da Polícia Federal “foi um erro conceitual grave por parte da PM”, afirmou o procurador da República, Marco Antônio Delfino, do Ministério Público de Dourados. Ele argumenta que, segundo a Constituição, os direitos dos indígenas competem à União.
“O tamanho do contingente de policiais foi uma resposta desproporcional”, afirma Crizantho Fialho, servidor da Funai que esteve na comunidade poucas horas após a ação. Não é a primeira vez que ações policiais são criticadas pelo excesso de força contra indígenas na região. O problema deve piorar com a escalada da tensão fundiária entre indígenas e fazendeiros no estado, especialmente em um cenário de vitória do presidenciável Jair Bolsonaro, explica Joênia Wapichana (REDE-RR), a primeira mulher indígena eleita deputada federal no país. “O discurso dele deixa claro que irá favorecer o lado que está contra os indígenas”.
Com a promessa de suspender homologações de terras indígenas, armar proprietários rurais e tipificar ocupações de terra como “atos terroristas”, o capitão da reserva promete riscar um fósforo a um barril já cheio de pólvora.
Indígenas de Guapo’y temem ficar marcados pela polícia e pistoleiros e sofrer futuras retaliações (Foto: Maurício Monteiro/ Repórter Brasil)
Essa ação não foi caso isolado. Um ano antes, os moradores da comunidade indígena de Nhandeva, à beira da mesma rodovia que passa por Guapo’y, receberam a visita de um grupo de pelo menos 200 policiais e soldados. A ação coordenada pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública do Mato Grosso do Sul reuniu também o Departamento de Operações de Fronteiras e o Exército, que voou até a comunidade com um de seus helicópteros. Buscavam armas ilegais em Nhandeva, mas só acharam – e apreenderam – duas de brinquedo. “Simulacros”, disse a polícia, em nota divulgada pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública.
“Não vieram para revistar. Vieram para judiar”, critica um dos indígenas de Nhandeva. “Entraram em todas as casas. Jogaram nossas panelas no chão, rasgaram nossas sacas de arroz, mas a gente não tem nenhuma arma de fogo escondida”.
Dessa vez, o problema não foi apenas uso “desproporcional da força”, mas também ausência de mandados judiciais específicos para revistarem as casas dos moradores, segundo Fialho, servidor da Funai. “A ação em Nhandeva foi ilegal. Foi uma ação de busca e apreensão sem qualquer indício e feita com mandados judiciais genéricos [coletivos] de busca e apreensão. Entraram na casa de todos por lá”.
Procuradores, juízes e até ministros do Supremo Tribunal Federal há muito questionam o uso de mandados judiciais genéricos – quando há uma autorização judicial que permite busca e apreensão nas casas de todos os moradores de uma determinada comunidade. Os mandados usados em Nhandeva serviram “para entrar em qualquer moradia na comunidade, indiscriminadamente”, denuncia o procurador da República Marco Antônio Delfino.
As críticas aos mandados genéricos ganharam força neste ano, por conta da intervenção do Exército no Rio de Janeiro. “A lei é clara. O Código de Processo Penal exige que do mandado de busca e apreensão conste, sempre que possível, o local objeto da busca”, disse, em entrevista ao UOL em fevereiro, o decano do Supremo, Celso de Mello. Agir com mandados genéricos é “uma medida invasiva, intrusiva”, destacou.
À época, o MPF criticou, também, o comando da operação. Os policiais e soldados que revistaram toda a comunidade foram coordenados pela Secretaria de Justiça e Segurança Pública – nível estadual. Como o Ministério Público Federal reforça, esse tipo de operação cabe ao nível federal: à competência da Polícia Federal.
Em contraposição, o mesmo argumento da competência da esfera federal é usado, seletivamente, pelos próprios policiais – apenas quando são chamados pelos indígenas, segundo a missionária do Cimi no Mato Grosso do Sul, Lídia Oliveira. “Nestes casos, os policiais dizem não poder entrar nas comunidades, mas o mesmo não acontece quando chamados pelos fazendeiros”.
“O Estado está lá quando precisamos dele”, corroborou Lúcio Damalia, presidente do Sindicato Rural de Dourados – o maior e mais importante da região – quando perguntado sobre a atuação da polícia no Mato Grosso do Sul.
Em 2016, outra comunidade indígena da região foi alvo de mais uma operação policial que terminou em violações. Dessa vez, os policiais queimaram os barracos e os pertences dos indígenas “Era polícia demais para pouca gente”, lembra Cristina de Souza, missionária do Conselho Indigenista Missionário, que presenciou o despejo na pequena comunidade indígena de Apikay. Segundo ela, foram acionados pelo menos 65 militares para lidar com apenas 20 Kaiowá e Guarani acampados em parte do terreno da Usina São Fernando, em Dourados. Em nota enviada à Repórter Brasil, a Secretaria de Justiça e Segurança Pública disse não ter conhecimento de que o fogo foi causado por policiais.
O acampamento era uma tentativa de retomar um antigo território indígena. “Só não perderam tudo porque choveu e apagou parte do fogo”, relembra Souza. Dois anos se passaram e o que restou para a comunidade de Apikay é uma estreita faixa de terra batida, com um punhado de casebres que se equilibram no barranco entre a BR-463 e uma lavoura de cana-de-açúcar. A rodovia é uma constante ameaça. Pelo menos oito dos moradores já morreram atropelados nos últimos anos.
Dona Damiana, que ainda resiste na comunidade de Apikay, diz que usina está em território indígena – no local de sua antiga aldeia (tekoha); quando seu neto morreu atropelado, ela fez questão de enterrá-lo no solo onde ela cresceu. Para cumprir essa tarefa, fez o funeral escondido, já que sua entrada no terreno da usina é proibida (Foto: Maurício Monteiro/ Repórter Brasil)
Poucas horas após o conflito com os moradores de Guapo’y, em agosto último, os policiais do Batalhão de Choque, ainda fardados, terminavam uma acalorada partida de futebol na sede da fazenda. Parte da vegetação ainda queimava, mas o clima era de descontração. Os policiais comentaram à equipe da Repórter Brasil que a ausência de acompanhamento da Polícia Federal era justificado, já que se tratava de um “crime comum” – furto –, portanto, fora da competência federal.
No entanto, para o procurador Delfino, a argumentação da Polícia Militar “de crime comum” não cabe, porque o episódio teria sido movido por questões fundiárias. Isso colocaria o problema dentro do quesito “direitos dos indígenas” e, consequentemente, como responsabilidade da União. Para explicar a tese de conflito fundiário, Delfino destacou que poucas semanas antes do episódio a mesma comunidade recebera avisos de que deveria abandonar o território e fora vítima de um ataque de pistoleiros.
“É preocupante a tendência imposta pelos ruralistas”, analisa o antropólogo Spensy Pimentel, professor da Universidade Federal do Sul da Bahia que estuda as comunidades Guarani e Kaiowá há 17 anos. Para ele, criminalizar as reivindicações indígenas como “crime comum” pode ser uma ferramenta para fazer da polícia uma “força a ser usada indiscriminadamente” na defesa dos grandes fazendeiros.
Procurada para comentar o conflito entre as competências estaduais e federais em Guapo’y, a Polícia Militar do Mato Grosso do Sul – através da Secretaria de Justiça e Segurança Pública – voltou a reforçar a tese de “crime comum”, dizendo que “ a operação não era de competência da PF, uma vez que não era de desocupação de área, e sim de roubo qualificado e cárcere privado.”
Não é só a polícia que entra armada nas aldeias. Os indígenas da região também lidam cotidianamente com pistoleiros e seguranças privados das fazendas que cercam suas terras. Contratadas pelos fazendeiros, muitos funcionários das empresas de segurança privada têm uma relação próxima com a Polícia Militar. Algumas são fundadas e compostas por ex-militares.
Na operação em Guapo’y, o batalhão comandado por Marcus Vinicíus Pollet só se retirou quando oito vigilantes privados chegaram à sede da fazenda. Eles trabalham para a empresa de segurança privada Safety Assessoria, cujo dono, Marco Antônio Kobayashi, é ex-comandante da Polícia Militar de Caarapó e amigo do coronel Pollet.
Maria, de Guapo’y, teve a porta arrombada e a casa revirada pelos policiais em ação no dia 26 de agosto (Foto: Maurício Monteiro/ Repórter Brasil)
O próprio Kobayashi revelou, em entrevista concedida à Repórter Brasil durante a operação, que a rapidez e tamanho da resposta policial do Estado se deveram à boa conexão dos donos da fazenda com as autoridades do estado. De acordo com o militar aposentado, quem o contratou para ir à fazenda foi Tony Penteado, membro da família controladora da empresa que é proprietária da fazenda, a Penteado Participações. Tony Penteado afirmou à Repórter Brasil que a família não costuma dar entrevistas à imprensa.
Na sede da fazenda, Kobayashi reclamou do “tratamento especial” dado pela Justiça aos indígenas: “Vai quebrar uma perna de um índio pra ver o que te acontece”. Deveria ser diferente, lamentou Kobayashi: “Escreveu, não leu: a bala comeu.”
Quando perguntado sobre qual seria a melhor solução para o conflito entre os fazendeiros e indígenas no Mato Grosso do Sul, Kobayashi respondeu que seria necessário que a Justiça decidisse – finalmente – de quem são as terras por lá. Mas ironizou: “O problema é que se não tem conflito, a gente não tem trabalho”.
Empresas de segurança, como a de Kobayashi, não são ilegais, como explicou o procurador da República, Marco Antônio Delfino. “O problema é a falta de fiscalização dessas empresas” e o perigo de se tornarem “jagunçagem travestida de empresa de segurança”.
Um exemplo disso é o caso da Gaspem Segurança, empresa fundada pelo ex-policial Aurelino Arce e fechada em 2014 por decisão judicial. Investigações policiais ligaram a empresa a diversos crimes contra a população indígena do sul do estado, os inquéritos citam assassinatos de lideranças, despejos violentos e a proibição de que medicamentos e alimentos fossem distribuídos. De acordo com processo da 1º Vara Federal de Dourados, a empresa cobrava até R$ 30 mil para cada despejo. Os pistoleiros prestavam esses serviços ilegais em pelo menos cinco municípios da região.
“A combinação: produtor rural mais polícia mais empresas de seguranças privadas resulta em uma mistura bem perigosa”, descreveu o procurador da República, Marco Antônio Delfino.
À equação explosiva citada pelo procurador, soma-se outro fator: os chamados ruralistas – políticos que defendem a agenda dos grandes proprietários rurais. Em alguns casos, político e proprietário são a mesma pessoa. Em Guyraroka, palco da última reunião da Aty Guasu – a maior organização política Kaiowá e Guarani – indígenas apontaram o deputado estadual José Roberto Teixeira (DEM-MS) como um dos fazendeiros que já enviou seus pistoleiros a Guyraroka.
Em um encontro pessoal com uma Kaiowá de Guyraroká, o deputado Zé Teixeira teria deixado claro que: “Se um dia eu tiver que dar terra para vocês, farei questão que seja só areia”.
Em nota à Repórter Brasil, Teixeira nega ter seguranças privados e reafirma que a terra reivindicada pelos indígenas é de sua propriedade. O deputado foi preso no dia 12 de setembro, acusado de corrupção, e solto uma semana depois. O caso foi aberto por conta das delações de empresários do grupo JBS.
Como Teixeira, que foi reeleito para a Assembleia Legislativa, o Mato Grosso do Sul reelegeu dois deputados federais que são proprietários rurais e integram a Frente Parlamentar da Agropecuária. A desproporção de forças que também alcança as casas legislativas sugere um cenário ainda mais perigoso para os Guarani e Kaiowá nos próximos anos.
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Polícia ruralista: o uso desproporcional de força contra os Guarani e Kaiowá - Instituto Humanitas Unisinos - IHU