30 Outubro 2018
Em meio ao risco de guerra comercial, à emergência de um sistema financeiro paralelo e a crises cambiais como a argentina, instituições torcem para que não venha um novo terremoto econômico.
O artigo é de Gustavo Jorge Silva, mestrando em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, onde também se formou bacharel, pesquisa regulação da Política Monetária pós-crise de 2008, publicado por Outras Palavras, 28-10-2018.
Entre os dias 9 e 14 de outubro, o Grupo Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) realizaram suas Reuniões Anuais, em Bali, na Indonésia. Apesar do cenário paradisíaco, o que se viu foi uma realidade mais nublada no que diz respeito às discussões. As maiores emoções ficaram a cargo do leve terremoto (geológico) que atingiu Bali na madrugada entre o dia 10 e o dia 11.
Ao ser perguntada sobre sua perspectiva para o futuro em um painel em que participou com o jornalista Martin Wolf, Christine Lagarde, Diretora-Gerente do FMI, disse estar “desesperadamente otimista”. De fato, esse parece ser um mote interessante. As instituições tentaram demonstrar uma atitude progressista e otimista, mas os obstáculos transpareceram em todos os principais temas abordados no evento.
Tanto as Reuniões Anuais, quanto as Reuniões de Primavera do Grupo Banco Mundial e o FMI funcionam como momentos de balanço, em que as instituições financeiras internacionais nascidas em Bretton Woods têm a oportunidade de apresentar ao público o que consideram que houve de avanço em relação às suas pautas, bem como emitir declarações em certos sentidos, que servem para indicar a tendência de suas ações futuras.
Espera-se que, com a força das instituições, alguma conformação institucional global derive desses balanços e declarações, no sentido de adequação a essas tendências. Grande parte dos seminários gira em torno de papers desenvolvidos no âmbito das próprias instituições.
É possível dizer que os seminários das Reuniões Anuais de 2018 se articularam em torno de três eixos centrais: o comércio internacional; as fintechs; e a política monetária. Cada um desses temas foi objeto de um número considerável de painéis, sendo que a posição dos painelistas em relação ao primeiro tema foi monolítica, enquanto que, por outro lado, demonstrou-se haver um espaço de discussão relativamente rico no que diz respeito aos demais temas.
Como era até esperado de um evento realizado no Sudeste Asiático e em um contexto de pouco destaque da nossa região, a América Latina não foi objeto de nenhum painel. As poucas menções ao Brasil foram elogiosas e trataram das medidas de combate à crise mundial e à fome adotadas ainda nos governos Lula. A Argentina aparecia como um país que enfrenta uma crise, mas que todos os membros do FMI, inclusive a própria Lagarde, apresentaram como passageira agora que o país recebeu o pacote financeiro da instituição e aceitou suas condicionalidades. A reação da plateia nunca indicava que o público estava convencido disso.
Os primeiros dias do evento contaram com maiores discussões acerca do comércio global, com alguns dos principais painéis tratando justamente sobre esse tema. Nesses painéis, a mensagem passada era claríssima, mas sua efetividade é questionável.
Merece destaque o posicionamento contundente do economista americano Jeffrey Sachs, professor da Universidade de Columbia que já atuou como conselheiro tanto para o FMI quanto para o Banco Mundial. Ele aproveitou sua participação em um painel sobre o crescimento e os desafios da Ásia para afirmar que os EUA estariam violando normas de comércio internacional e que a guerra comercial entre EUA e China deveria ser parada.
Referindo-se a Trump, disse ainda que sua abordagem em relação ao comércio internacional seria perigosa do ponto de vista geopolítico. Afirmou também que as normas internacionais protegeriam o sistema internacional e que a Organização Mundial do Comércio (OMC) deve servir de foro para solução de controvérsias comerciais. A fala contou com forte aplauso da plateia.
No painel, houve concordância quanto a isso por parte do acadêmico chinês Yiping Huang, professor da Universidade de Pequim. Ele fez questão de ressaltar que o governo chinês tentou entrar em acordo com os EUA, mas que não teria sido possível.
Mais tarde, um painel inteiro serviu para reforçar a posição do FMI quanto ao comércio global. Essa mesa contou com a participação do embaixador Roberto Azevedo, que atualmente ocupa o posto de Diretor Geral da OMC e com a mediação da Christine Lagarde. Por meio de todos os membros do painel, o Fundo se posicionou contra as medidas do governo Trump relacionadas à elevação de tarifas para produtos e setores específicos.
O governo americano não pareceu estar representado no evento. Isso certamente limita bastante o impacto da posição do FMI e do Banco Mundial em relação à política comercial do Governo Trump. As instituições financeiras internacionais parecem estar empenhadas em sustentar uma posição, mas o resultado disso não deve ir além da retórica. É questionável a capacidade que elas têm de pressionar seu principal acionista, os EUA.
As fintechs — instituições financeiras desregulamentadas e de alta tecnologia — foram objeto tanto de painéis do FMI quanto do Banco Mundial, sendo que algo bastante perceptível foi a mudança de tom em relação a esses arranjos. Se nos anos que se seguiram à crise, todos os mecanismos financeiros não bancários eram abarcados sob a denominação negativa de shadow banking, agora passou a haver uma caracterização das fintechs como “tecnologias disruptivas” ou simplesmente “novas tecnologias” e o reconhecimento pela existência de demanda do público por um sistema financeiro mais multipolar.
No entanto, dois problemas de ordem regulatória foram destacados. O primeiro foi mencionado em um painel sobre o futuro do sistema financeiro e dizia respeito à arbitragem regulatória relacionada às fintechs. Na medida em que muitos desses instrumentos de mediação financeira não são juridicamente considerados parte do sistema financeiro, eles ficam imunes à regulação prudencial e macroprudencial que atinge os bancos tradicionais.
Dessa forma, acabam obtendo certas vantagens competitivas em razão da sua natureza jurídica.
A segunda questão dizia respeito aos fluxos de capital derivados dessas tecnologias. Muito mais comuns na Ásia, esses fluxos se dão em virtude de transferências entre pessoas físicas, muitas vezes imigrantes, que enviam recursos de um país para outro. Em razão do aumento do controle regulatório sobre os bancos ao longo da última década, o custo para realização dessas transações por meio do sistema financeiro tradicional aumentou muito e as pessoas passaram a buscar formas extrabancárias, principalmente as fintechs. Em virtude da assimetria regulatória, o controle e o conhecimento quanto a esses fluxos também se tornou um problema para as autoridades monetárias.
Essas questões foram todas levantadas, mas nenhuma foi respondida. É uma evolução que o Fundo não mais veja esses assuntos com preconceito, mas, ao que tudo indica, ainda não se mostrou capaz de formular nada, especialmente diante das dinâmicas específicas dos países emergentes.
O último eixo foi justamente o da Política Monetária, que ocupou grande parte dos painéis do último dia de evento. O grande tema desse eixo foi a discussão sobre a existência de uma nova ortodoxia da política monetária.
Antes da crise de 2008, as instituições financeiras internacionais reconheciam que a ortodoxia da política monetária envolvia o regime monetário de metas de inflação e o controle da inflação por meio da gestão das taxas de juros básicas dos títulos públicos. Os controles de capital para regular o fluxo de entrada e saída de capital eram tradicionalmente rechaçados.
Nos anos que se seguiram à crise, especialmente no período em que Olivier Blanchard foi economista chefe do FMI, as instituições foram reconhecendo que medidas macroprudencias (MPMs, na sigla em inglês) e controles de capital poderiam sim desempenhar papel relevante na regulação monetária. Em linhas muito gerais, os controles capitais representam uma barreira que modula os fluxos de entrada e saída de capital com relação a todo o sistema financeiro domésticos, enquanto que as MPMs incidem sobre determinados setores da economia, a fim de compensar efeitos sistêmicos que estejam afetando sua dinâmica de preços.
O Brasil teve importante papel na mudança de atitude do FMI e do Banco Mundial em relação a essas medidas, merecendo destaque a atuação do Ministro Guido Mantega no G20 financeiro. Tanto MPMs, quanto controles de capital foram aplicados no Brasil com reconhecido sucesso principalmente entre 2009 e 2011.
Um indicativo forte de que esse debate continua vivo e ganhando espaço é a adoção, por parte do FMI, de nomenclatura mais branda para os controles de capital, chamados agora de medidas de gerenciamento de fluxos de capital (CFMs, na sigla em inglês). Desde 2012 essa nomenclatura aparece nos documentos do G20 financeiro que registram a visão institucional do FMI, sendo que o documento mais recente desse gênero foi emitido em julho deste ano .
Para demonstrar a dominância do tema, cabe mencionar que as Reuniões Anuais desse ano contaram com painéis com a presença de autoridades monetárias de Singapura, Indonésia, Malásia, Tailândia, Vietnã, importantes economias do Sudeste Asiático, e todos foram unânimes em considerar que deve haver mais espaço para a aplicação de MPMs e CFMs, bem como flexibilização dos regimes de metas de inflação, a fim de ampliar as bandas em relação ao centro da meta e estender o período de tolerância para que as autoridades conduzam a inflação ao centro da meta.
No evento não houve nenhum questionamento direto ao regime monetário de metas de inflação em si, mas cabe mencionar que há países, como a própria Malásia, que nunca o adotaram e cujas autoridades monetárias gozam de atuação efetiva e credibilidade.
Há, portanto, debate aberto e espaço para a construção de uma nova ortodoxia na política monetária. No entanto, ficou bastante claro durante o evento que o FMI continua preferindo e pressionando por programas de austeridade em quase todas as situações de desequilíbrio de balança de pagamentos. Constrói-se uma nova ortodoxia, mas a antiga ortodoxia segue viva e atuante.
Por fim, cabe ainda a breve menção a dois pontos de grande relevo apresentados nos seminários do Banco Mundial. O primeiro foi um grande evento sobre a Nova Rota da Seda com Zou Jiayi, Vice Ministra das Finanças da China, que apresentou com muita clareza o projeto e defendeu o sistema de financiamento e garantia de crédito desse que promete ser um importante projeto no sentido de integração em um momento em que a tendência parece ser de fragmentação do sistema mundial.
O segundo ponto é o Famine Action Mechanism (FAM), lançado conjuntamente pela Organização das Nações Unidas e pelo Banco Mundial no final de setembro. Em evento que contou com a presença de António Guterres, Secretário Geral das Nações Unidas e de Jim Yong Kim, Presidente do Banco Mundial, o projeto bilionário de coleta contínua de dados, prevenção e combate à fome foi detalhado. Parece uma inciativa mais efetiva para a consecução do Objetivo do Desenvolvimento Sustentável relacionado à erradicação da fome até 2030.
Em linhas gerais, as Reuniões Anuais de 2018 mostraram que a prática do FMI e do Banco Mundial segue muito semelhante àquela que as instituições tinham antes da crise e que é possível que essas instituições não tenham capacidade de fazer frente a iniciativas próprias de geopolítica das potências, principalmente em uma ordem que parece cada vez mais fragmentada. Outro problema é que agora o próprio Brasil parece caminhar para um período em que irá deixar de lado sua tradição diplomática de valorização do multilateralismo e do pragmatismo.
Apesar de tudo isso, o Banco Mundial e o FMI devem ser reconhecidos como espaços multilaterais relevantes para os países emergentes e em desenvolvimento coordenarem e fazerem valer suas opiniões e interesses. Os tabus diminuíram muito na última década e isso deve servir de incentivo para a luta e a construção de uma ordem global que sirva os interesses dos países na periferia do capitalismo, mesmo nas instituições que historicamente trabalharam no sentido oposto disso. A dinâmica política das questões internacionais tem um tempo próprio, que é mais lento.
Mudanças demandam participação da sociedade civil organizada, bem como gestão das autoridades políticas e diplomáticas interessadas.
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“Desesperadamente otimistas” no FMI e Banco Mundial - Instituto Humanitas Unisinos - IHU