21 Mai 2018
Enquanto a China exerce papel cada vez mais relevante na economia global, Brasil não consegue nem mesmo negociar com o gigante oriental. "Temer e Meirelles não têm noção do que estão falando"
No jogo econômico e geopolítico global de hoje, as principais cartas estão colocadas por um gigante do Oriente. "A escalada da China não tem como ser contida. A não ser que se tente fazer uma coisa de enorme violência", diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo.
"O que a China fez foi se encaixar de maneira adequada na globalização, proposta pela expansão americana financeira e produtiva", diz. Prova disso é que os chineses estão comprando empresas em todo o mundo. Inclusive no Brasil, nos setores estratégicos de energia e petróleo.
Por outro lado, os Estados Unidos continuam a possuir uma carta fundamental no jogo da economia e finanças globais: o dólar. "É o ativo em que o mercado confia." O resultado da complexa disputa pelo protagonismo mundial ou por posições estratégicas não está claro, considerando que o mundo passa por uma transição que parece apontar para o fim da hegemonia neoliberal, mas sem horizontes muito claros.
"Acho que estamos num momento de passagem, não sabemos bem para onde. Eu diria que o arranjo internacional está moribundo, está sendo fundamentalmente sustentado pela exceção chinesa, que é uma parte do conjunto", diz Belluzzo. "Acho que esse arranjo proposto lá atrás, nos anos 80, que o pessoal chama de neoliberalismo, está moribundo, mas não morre."
A entrevista é de Eduardo Maretti, publicada por Rede Brasil Atual – RBA, 18-05-2018.
Enquanto isso, o Brasil é hoje apenas formalmente parte integrante do Brics – bloco em que está ao lado de Rússia, Índia, China e África do Sul –, pois na prática perdeu completamente o protagonismo e caminha por uma opção geopolítica equivocada, ao reaproximar-se da esfera norte-americana.
"Estamos fazendo uma aproximação geopolítica errada. Os chineses estão entrando aqui e não estamos exigindo ou negociando nada com eles." E, no Brics, o Brasil de Michel Temer "não faz nada".
Principalmente porque, segundo Belluzzo, sob o governo de Michel Temer e seu ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, o país está sem comando. "Eles não têm noção de nada, não têm noção do que estão falando", diz o economista. "Conheço bem o presidente da República. Ele tem uma inteligência bem restrita", garante Belluzzo.
Recentemente o FMI informou que a dívida global chegou a 225% do PIB mundial, com valor de U$ 164 trilhões. Como interpreta esse dado?
Depois da crise de 2008-2009, os bancos centrais entraram firmemente para impedir que a crise se espalhasse de maneira incontrolável e bloqueasse os mercados interbancários, que ficaram paralisados. Sem a presença dos bancos e dos mercados financeiros numa economia como a de hoje, haveria um colapso de grandes proporções. Vamos olhar as dívidas públicas. A do Japão, por exemplo, é de mais de 200% do PIB, o que já vem dos anos 90 pelas operações que fizeram, para segurar a economia japonesa, depois da crise iniciada em 1989.
Em 2006, antes da crise, a dívida pública dos Estados Unidos estava em torno de 60% do PIB, e hoje está em torno de 110%. Por que subiu a dívida pública? O governo americano gastou mais em infraestrutura, obras públicas? Não. Foi porque o tesouro foi obrigado a socorrer os bancos, com títulos da dívida pública, o título considerado mais seguro, a cúspide do sistema financeiro internacional. É o ativo em que o mercado confia. Quando há insegurança maior, todo mundo corre para o título da dívida pública americana.
Então aumentou a dívida pública americana por causa dessa operação. Em seguida, por causa das taxas de juros muito baixas, os fundos e bancos de investimento começaram a se realavancar. Há uma tremenda expansão do crédito intrafinanceiro e também para as empresas transnacionais.
O excesso de liquidez – muito dinheiro considerado confiável, o dólar americano – forçou o endividamento das empresas da periferia. No Brasil, por exemplo, as empresas privadas começaram a tomar muita dívida em dólar, sobretudo porque era barato, a taxa de juros baixa. Então há um endividamento elevado das empresas brasileiras em dólar. Isso foi percebido agora, porque o dólar começou a ficar caro e isso afeta o estoque de dívida das empresas.
Isso globalmente...
Globalmente: Turquia, Brasil, Índia, vários países que fizeram endividamentos altos. Quando se desvaloriza o dólar, o Federal Reserve (banco central americano) deu sinal de que poderia começar a diminuir a compra de ativos privados, o seu papel de market maker, como comprador e vendedor nos mercados secundários. Quando ele começou a dar o sinal, correu todo mundo pra sair das posições nos países que estavam com moeda valorizada. Esse é o fenômeno da extrema dependência que os países têm dos movimentos da política monetária americana. Ela dá um soluço lá, isso afeta todo mundo.
Essa discussão não é feita no Brasil, porque os economistas de bancos não querem saber dessa história. Eles querem dizer que o Brasil tem essa vulnerabilidade, a despeito das reservas altas (U$ 380 bilhões), porque a situação fiscal é ruim. A situação fiscal é ruim no mundo inteiro, porque todas as moedas se desvalorizaram em relação ao dólar. Todas. Menos algumas, como o yuan chinês, porque eles têm uma política de controle de câmbio.
Está existindo uma fuga de investidores de países emergentes?
Isso é um pouco mais complicado, porque você opera nos mercados futuros. Você muda a posição de estar vendido em dólar para ficar comprado. É uma mudança de posição dos seus estoques de riqueza. Por exemplo, quando o investidor percebe que vai haver uma desvalorização do real ele deixa de apostar no real e passa a apostar no dólar...
Mas está acontecendo isso?
Claro que está. Mas o Brasil tem uma proteção (as reservas). A questão central é que você não pode ter um preço tão fundamental, como o câmbio, sujeito a essas flutuações, a essas incertezas. Quem fez um projeto de aumento da produção em cima do aumento das importações, quando dá uma paulada dessa no dólar, ele fica a perigo, da mesma maneira que o exportador, quando faz um projeto de exportação com uma taxa de câmbio a R$ 3,70 e ela cai para R$ 3,20, por exemplo, os planos dele ficam ameaçados. Essa volatilidade do câmbio, uma característica da economia atual, sempre nos deu problema, e nos deu mais problemas quando estávamos mais desprotegidos.
Vamos lembrar do Fernando Henrique Cardoso, que ninguém lembra. Ele fez a estabilização com câmbio fixo, destruiu uma parte da indústria brasileira. Lembro do (José) Mindlin me falando que ia vender a Metal Leve, porque não aguentava mais. Hoje ninguém fala nada, eles (os empresários) levam na cabeça e devem achar bom, viraram rentistas também. Mas o Fernando Henrique fez essa aposta, valorizou o câmbio, destruiu uma parte da indústria brasileira importante, sobretudo as cadeias produtivas, danou o setor de bens de capital e carregou isso ao longo dos anos 90, meados de 94 até 98, quando houve uma sucessão de crises cambiais – México em 94, Ásia em 97, depois Rússia, Brasil e Argentina. Mas para os economistas da banca não aconteceu nada, era só para os países que estavam com suas situações domésticas ruins.
Viemos de uma dívida pública, que Collor deixou, de aproximadamente 30%, e chegou a cerca de 70% . A economia cresceu pouco, taxa média de 2,5%, e só fomos nos recuperar a partir de 2003...
Com Lula...
Com Lula. Na época, houve um choque brutal de commodities e de demanda na economia mundial. Isso beneficiou muito os países que tinham um setor de agronegócio muito forte, como Argentina e Brasil. A Argentina cresceu até mais que o Brasil, 8,5%, 9% nesse período. Lula pegou esse momento e fez as políticas corretas de inclusão, foi muito hábil nisso. Colocou 40 milhões de pessoas para dentro da economia, não é pouca coisa, é um prodígio. Mas isso tem a ver com ciclo de commodities, ainda que ele tenha mantido a tendência de valorização do câmbio. A indústria continuou a perder peso. A indústria brasileira tinha uma participação de 25% do PIB no início dos 80 e passou a ter 12% (dados recentes do IBGE).
Passamos a década de 80 inteira, a "década perdida", tentando resolver o problema dos efeitos da dívida externa, efeitos fiscais – porque houve estatização de dívida pelo Tesouro –, incapacidade de pagamento, várias cartas de intenção com o FMI. A economia tinha momentos de crescimento e queda sucessivos. Saímos da crise em 94, com o Plano Real. Por quê? Porque tínhamos 40 bilhões de reserva. Aí começa o negócio de privatização. A economia mundial já estava se tornando o que ela é hoje, muito inclinada a tirar proveito da propriedade, que é o rentismo, em vez da produção. Vieram para cá e compraram as empresas brasileiras.
Mais ou menos como hoje?
Sem dúvida. Dizem: "vamos melhorar a eficiência das empresas". Mentira. Pergunta se o setor elétrico melhorou a eficiência ou se aumentou as tarifas brutalmente. Não tem nada a ver com eficiência.
Na verdade, no caso da energia elétrica, é a produção de um insumo universal. Todo mundo usa. Na China e nos países asiáticos, os setores que produzem insumos universais são públicos para ajudar o setor privado, permitir custos baixos. Aqui não se faz a discussão das inter-relações entre privado e público. Isso é que é o capitalismo!
O Brasil ainda está no pré-capitalismo, então?
O Brasil já fez capitalismo em alguns momentos (risos). Tentou fazer com Getúlio, Juscelino, até com os militares, independentemente das tropelias que eles fizeram.
Como a economia de um país grande como o Brasil pode se sustentar com a indústria na situação atual?
Virou uma espécie de consenso entre os economistas do mercado ou próximos a ele que a indústria não é importante. Você pode produzir banana e produzir computadores que é a mesma coisa. Não é só uma regressão na estrutura produtiva, é uma regressão mental, achar que tudo é a mesma coisa.
Os chineses disseram em Davos que "quem acredita que vai fazer dinheiro se houver uma crise na China está equivocado". Eles estão bastante seguros de sua posição, não?
Eles estão crescendo em torno de 6,5%, 7%. A taxa média de crescimento deles era 10% nos anos 90 e mesmo no começo dos 2000. Mas eles fizeram agora um Congresso do Partido Comunista. São muito prudentes, administram de acordo com as circunstâncias. Estão fazendo uma transição, saindo de uma economia que era muito dependente do saldo da balança de transações correntes. Quando você vende mais do que compra, essa diferença é importante. Quando esse saldo é positivo, você vende mais do que compra, injeta demanda na economia.
O resultado das exportações menos as importações teve um papel muito importante no crescimento deles. Eles tinham uma capacidade de estímulo ao investimento muito grande, com bancos públicos e taxas de juros muito baixas. Tinham taxas de juros muito baixas porque não tinham que prestar contas ao capital de curto prazo que queria especular. É como disse um chinês: "nós abrimos, mas botamos uma tela, para só entrar o que interessa, não entrar mosquito".
Eles têm projetos importantíssimos tanto na área financeira quanto na produtiva, articulando as duas coisas. As finanças para eles são muito importantes, uma coisa importante do capitalismo, desde que controlada, para financiar o gasto produtivo. É o contrário dos emergentes, onde o sistema financeiro é perverso, só serve pra perturbar.
A chamada nova rota da seda está assustando os Estados Unidos, por exemplo...
Sim. Para ser claro: essa escalada da China não tem como ser contida. A não ser que se tente fazer uma coisa de enorme violência. O capitalismo é um sistema autotransformador. Se você tiver a embocadura certa no momento em que a transformação está ocorrendo, você vai se beneficiar. O que a China fez foi se encaixar de maneira adequada na globalização, proposta pela expansão americana financeira e produtiva. Eles se beneficiaram porque perceberam a articulação necessária.
Agora eles estão na segunda etapa. Na primeira, até meados de 2000, até a crise, eles tinham 4 trilhões de dólares de reservas, que acumularam com as exportações líquidas e com a entrada de capitais produtivos. Hoje eles têm 3 trilhões. Mas eles não jogaram reservas fora. Eles precisam também diminuir a pressão que tinham no seu mercado financeiro da entrada de dinheiro estrangeiro, que não era especulativo, e em segundo lugar estão mudando a composição da riqueza deles, do portfólio. Eles saíram dos títulos e estão comprando empresa em tudo quanto é lugar. Veja quantas empresas de energia eles estão operando hoje no Brasil.
E na área de petróleo...
Sim, mas não é só no Brasil. Compraram empresas na Europa, na África...
No futuro vamos ser todos chineses?
Se deixar, vamos.
E a questão do Brasil nos Brics hoje?
Estamos no Brics, mas o Brasil não faz nada. Conheço bem o presidente da República. Ele é um provinciano, para não dizer outra coisa. O mínimo que ele pode dizer é o seguinte: que nós regredimos 20 anos em dois (risos). Ele tem uma inteligência bem restrita. Frequentava meu grupo político no tempo da faculdade. Não era capaz de dizer uma coisa interessante, e continua do mesmo jeito. Nunca teve protagonismo. Virou presidente da República. São os fenômenos brasileiros.
Temos presença nos Brics, mas não temos projeto, não apresentamos nada. O Banco Central fez o favor de tirar o nosso vice-presidente lá, o Paulo Nogueira Batista, que tem capacidade de entender essas coisas, porque eles acham que têm que fazer uma aproximação com os Estados Unidos, que não é uma economia desprezível nem decadente, mas não promete dinamismo para nós. O Trump nunca se referiu ao Brasil.
Estamos fazendo uma aproximação geopolítica errada. Os chineses estão entrando aqui e não estamos exigindo ou negociando nada com eles.
Como comparar os países ibéricos Espanha e Portugal, que está fazendo políticas mais sociais do que a Espanha e está dando certo?
Portugal fez uma trajetória de um compromisso de centro-direita e centro-esquerda que está levando ao abandono das políticas de austeridade, que melhorou muito a situação nos últimos anos. Já a Espanha sofreu uma crise imobiliária muito grave em 2007 e 2008. Continua com uma taxa de desemprego altíssima. Está mais ou menos estagnada. Portugal é um país peculiar, porque é muito pequeno, tem dez milhões de habitantes. A Espanha tinha um superávit fiscal de 2,5% nominal e uma dívida pública de 25% do PIB. É nada. Em compensação, uma tremenda dívida privada que vinha pelo lado imobiliário.
Quem financiava a Espanha eram os bancos alemães e franceses. Para ver como são essas conexões. Então, a Espanha tinha superávit fiscal, um endividamento privado brutal, maior que o dos EUA, se medir per capita, e um déficit em conta corrente de 8% do PIB. Ou seja, virou uma importadora líquida. Quando deu a crise global, levou uma paulada, o déficit público subiu às alturas, os endividados espanhóis quebraram.
Como vê a situação argentina? O Brasil pode ir pelo mesmo caminho?
O Brasil está mais defendido, com o colchão (das reservas), que não impede que você tenha flutuações indesejáveis no câmbio. A volatilidade do câmbio é tão danosa quanto o câmbio valorizado, que deixamos durante anos, inclusive no período de bonança que tivemos entre 2002 a 2010. O Brasil reagiu muito bem à crise de 2009, conseguiu se colocar numa posição melhor que muitos outros países. Mas a Argentina tem uma recorrência de crises cambiais. Eu citaria várias. A crise da divida externa dos anos 70, por exemplo, quando o país viveu de maneira imprudente porque não sofreu tanto como o Brasil com o choque do petróleo, já que a Argentina era produtora de petróleo. Mas o Martínez de Hoz, um economista bem convencional, resolveu endividar a Argentina.
Tensões geopolíticas, como no Oriente Médio, por exemplo, poderiam desencadear uma crise econômica global grave?
Acho que estamos num momento de passagem, não sabemos bem para onde. Eu diria que o arranjo internacional está moribundo, está sendo fundamentalmente sustentado pela exceção chinesa, que é uma parte do conjunto. Então, acho que esse arranjo proposto lá atrás, nos anos 80, que o pessoal chama de neoliberalismo, está moribundo, mas não morre. Do ponto de vista geopolítico e geoeconômico, que são inseparáveis, as transformações da economia global foram muito importantes e tiveram implicações geopolíticas. E o que aparece agora como geopolítico é o protagonismo da China, mas isso nasce de um arranjo geoeconômico.
Não há como não aparecer essa dimensão política. Não existe a economia tal como os economistas a concebem hoje, como um conjunto de abstrações; a economia está colada ao social e ao político. Essa coisa do Oriente Médio está inscrita dentro disso. Na verdade os Estados Unidos produziram o Estado Islâmico, ao dizimar o Iraque, dizimar a Síria. Isso é uma coisa de hospício, uma coisa absurda, você destruir as estruturas sem saber qual a sua história, sua natureza.
Quando se vê Michel Temer e Meirelles falarem da economia, não dá impressão de que eles estão fora da realidade?
Mas isso é típico do Temer e do Meirelles. Eles não têm noção de nada, não têm noção do que estão falando. Isso acontece na história da humanidade. Você está na mão de dois sujeitos que estão no planeta Netuno, não têm nada a ver com a realidade do seu país.
Mas não existem forças por trás deles?
Claro, é evidente que existem. Falo disso num livro que escrevi com o Gabriel Galípolo, que chama Manda quem Pode, Obedece quem tem Prejuízo. É a estrutura de poder concentrada exatamente nos mercados financeiros. Temer e Meirelles são a expressão física disso, que eles refletem sem saber. Veja o que a imprensa diz o tempo inteiro dos atuais candidatos à presidência. "Fulano de tal será bem recebido pelos mercados?" Onde está o poder real?
As pessoas não percebem, mas são vitimadas por um sistema que concentra o poder e entrega a esses cidadãos que estou mencionando, que são provincianos, têm uma visão tola de como as coisas funcionam. Se tivessem uma visão mais clara, mais profunda, eles não proporiam essas coisas que propõem. Outro dia o Meirelles disse que a economia voltou a se expandir. Em que mundo ele está? Não sei.
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'Neoliberalismo está moribundo, mas não sabemos para onde vamos'. Entrevista com Luiz Gonzaga Belluzzo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU