19 Mai 2018
Parece que isso se transformou em uma espécie de direito natural de Israel.
O artigo é de Vladimir Safatle, filósofo, professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo), em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 18-05-2018.
Segundo ele, “governar não é apenas decidir pelos regimes de administração da vida, mas pela gestão da morte e da sua visibilidade. Não é de hoje que governar é fazer desaparecer”.
Em 2002, Kamla Abu Said e sua irmã Amna foram mortas em meio ao conflito Israel-Palestina enquanto trabalhavam em uma fazenda em Gaza. Dias antes, Fatima Zakarna e seus dois filhos, Bassen e Suhair, também haviam sido mortos enquanto colhiam folhas de uva nos campos de Kabatyia.
Tempos depois, um palestino cidadão norte-americano que conhecia as vítimas quis publicar um obituário no jornal San Francisco Chronicle. No entanto, o jornal recusou a publicação afirmando que "não gostaria de ofender ninguém". Diante disso poderíamos perguntar: por que expressar o luto público por uma palestina ou por um palestino assassinado é visto por alguns como uma "ofensa"?
É certo que a pior de todas as armas de guerra é a desumanização da morte, ou seja, essa redução da morte do outro a números, à condição de uma fatalidade "natural", como se estivéssemos a descrever a queda inexorável das folhas no outono. Morte sem história, sem indignação, sem narrativa.
Essa é uma questão fundamental a respeito do funcionamento do poder em nossas sociedades. Pois se trata de definir quem tem direito a uma narrativa, quem merece o luto público e quem desaparecerá, quem terá uma morte sem traços, completamente desafetada.
Governar não é apenas decidir pelos regimes de administração da vida, mas pela gestão da morte e da sua visibilidade. Não é de hoje que governar é fazer desaparecer. Nas últimas semanas, quase cem palestinos foram assassinados pelas forças militares israelenses. As reações internacionais foram, no máximo, contidas, quase como se estivessem a pedir desculpas por lembrar ao governo israelense de sua barbárie contra uma população apátrida submetida às piores e inimagináveis condições de privação e humilhação.
Não por outra razão, o insuspeito ex-primeiro-ministro conservador britânico David Cameron comparou a vida em Gaza a um "campo de concentração a céu aberto".
De fato, matar um palestino parece que se transformou em uma espécie de direito natural do governo israelense em suas operações de "autodefesa" contra populações de territórios ilegalmente ocupados, murados, isolados e sem nenhuma previsão plausível de desocupação.
É verdade que quando começamos discussões sobre o destino dos palestinos rapidamente ouve-se remissões ligadas ao argumento de que a situação "é muito complexa", de que "não há santos em nenhum lado". Mas é fato que ninguém precisa esperar a vinda de santos para recusar uma situação inaceitável.
Segundo a ONU e suas resoluções, não há nada de complexo na situação palestina. O governo de Israel ocupa ilegalmente território palestino, constrói ilegalmente colônias que ele nunca saberá como desmantelar sem ter de lidar com colonos armados revoltados contra seu próprio governo, constrói ilegalmente muros em territórios que não são seus, submete populações a um sistema em vários pontos similar a um apartheid e não há nenhuma força que esteja disposta a pará-lo.
O que demonstra como a Palestina é o lugar no qual todo o discurso ocidental sobre direitos humanos demonstra seu vazio e sua suspensão.
Ao contrário, agora os EUA, o principal aliado do governo israelense, dias depois de anular os acordos nucleares com o Irã (contra todos seus aliados europeus que compreendiam a importância dessas resoluções para a normalização da região), abre sua embaixada em Jerusalém, na pior de todas as provocações.
Como se estivesse a apostar no pior a fim de continuar a gestão de um guerra infinita necessária à própria sobrevivência do governo de Israel, já que este não pode sair da situação atual.
Ele não pode simplesmente anexar os territórios, o que lhe obrigaria a fornecer cidadania a milhões de palestinos e fazer de um Estado étnico um Estado plurinacional. Ele também não pode devolver os territórios, já que teria de lidar com 400 mil colonos furiosos e armados. Por muito menos, um colono judeu matou seu próprio primeiro-ministro, Yitzhak Rabin.
Israel só pode tentar normalizar uma situação de completa exceção. Enquanto isso, matar um palestino vai se transformando em um procedimento normal de governo.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Matando um palestino - Instituto Humanitas Unisinos - IHU