19 Abril 2018
"Um ponto de partida para compreender o alcance da massiva fuga de dados de usuários do Facebook e seu uso político é nos centrarmos na obscura relação entre as empresas e as agências de inteligência", escreve Slavoj Žižek, escritor e filósofo esloveno, em artigo publicado por Página|12, 17-04-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Se há uma figura que se destaca por ser o herói de nosso tempo é Christopher Wylie, um canadense gay vegano que, aos 24 anos, teve uma ideia que levou à fundação da Cambridge Analytica, uma empresa de análise de dados que teve um papel chave no referendum que deu vitória à separação do Reino Unido da União Europeia. Mais tarde, Wylie se tornou uma figura chave nas operações digitais durante a campanha eleitoral de Donald Trump, criando a ferramenta de guerra psicológica de Steve Bannon. Seu plano era irromper no Facebook e coletar os perfis de milhões de usuários nos Estados Unidos com o objetivo de usar sua informação privada e pessoal para criar perfis psicológicos e políticos sofisticados, e logo lhes encher com anúncios políticos destinados a trabalhar na sua “maquiagem psicológica”. Em certo ponto, Wylie estava realmente assustado: “É uma loucura. A companhia ter criado os perfis psicológicos de 230 milhões de estadunidenses. E agora querem trabalhar com o Pentágono? É como Nixon com anabolizantes”.
Slavoj Žižek | Wikicommons
O que faz esta história ser tão fascinante é que combina elementos que geralmente percebemos como opostos. A direita alt-right se apresenta como um movimento que direciona as preocupações de pessoas comuns, brancas, profundamente religiosas e muito trabalhadoras no que representa os valores tradicionais simples e ódio às excentricidades corruptas como homossexuais e veganos, mas também nerds digitais, e agora nos inteiramos que seus triunfos eleitorais estavam dirigidos e orquestrados precisamente por um desses nerds que representam tudo aquilo a que eles se opõem. Há mais que um valor anedótico neste fato: é evidentemente um sinal do vácuo do populismo da direita alternativa que tem que depender dos últimos avanços tecnológicos para manter seu atrativo provinciano. Ademais, dissipa a ilusão de que ser um nerd informático marginal significa automaticamente uma posição antissistema “progressista”. A um nível mais básico, um olhar mais próximo ao contexto da Cambridge Analytica clarifica como a manipulação fria e o cuidado do amor e do bem-estar humano são as duas caras da mesma moeda.
No novo complexo militar-industrial de grandes volumes de dados Psy-Ops, que apareceu no The New York Review of Books, Tamsin Shaw esclarece que “as empresas privadas desempenham um papel no desenvolvimento e implantação de tecnologias de conduta financiadas pelo governo”; o caso exemplar destas companhias é, claro, Cambridge Analytica: “dois jovens psicólogos são fundamentais na história da Cambridge Analytica.
Um é Michal Kosinski, o qual concebeu uma aplicação com um colega da Universidade de Cambridge, Davi Stillwell, que mede os traços de personalidade analisando as curtidas de Facebook. Logo foi usado em colaboração com o Projeto de Bem-Estar Mundial, um grupo do Centro de Psicologia Positiva da Pensilvânia especializado no uso de dados para medir a saúde e a felicidade para melhorar o bem-estar.
O outro é Aleksandr Kogan, que também trabalha no campo da psicologia positiva e tem escrito ensaios sobre a felicidade, a bondade e o amor (segundo seu currículo, tem um artigo intitulado “Down the Rabbit Hole: A Unified Theory of Love”, em português “Dentro do agulheiro do Coelho: Uma teoria unificada do amor”). Dirigiu o Laboratório de Prosocialidade e Bem-Estar, sob os auspícios do Instituto de Bem-Estar da Universidade de Cambridge.
O que deveria atrair nossa atenção aqui é a “cruzada bizarra de investigação sobre temas como o amor e a bondade com os interesses de defesa e inteligência”: Por que esta pesquisa provoca tanto interesse das agências de inteligência britânicas e estadunidenses e de empresários de defesa, como a sinistra Darpa (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa do Governo dos Estados Unidos)?
O pesquisador que personifica essa cruzada é Martin Seligman: em 1998, fundou o movimento de psicologia positiva dedicado ao estudo dos traços e hábitos psicológicos que fomentam a felicidade e bem-estar autênticos, gerando uma enorme indústria de livros populares de autoajuda. Ao mesmo tempo, seu trabalho atraiu o interesse e o financiamento do exército como uma parte central de sua iniciativa de resiliência dos soldados.
Portanto, este cruzamento não está imposto externamente às ciências de conduta pelos manipuladores políticos “maus”, mas sim está implícito em sua orientação imanente: “O objetivo desses programas não é simplesmente analisar nossos estados de ânimo subjetivos, mas descobrir os meios pelos quais podemos ser ‘empurrados’ no sentido de nosso verdadeiro ‘bem-estar’ como entendem os psicólogos positivos, que incluem atributos como a resistência e o otimismo. O problema é que, claro, este ‘impulso’ não afete os indivíduos no sentido de superar suas ‘irracionalidades’ percebidas pela investigação científica: as ciências contemporâneas de conduta mais bem ‘tentam explorar nossas irracionalidades, em vez de superá-las’. Uma ciência que está orientada para o desenvolvimento de tecnologias de conduta seguramente nos verá como sujeitos manipuláveis, mais que como agentes racionais. Se estas tecnologias estão se convertendo no núcleo de operações cibernéticas militares e de inteligência dos Estados Unidos, parece que teremos de trabalhar para evitar que estas tendências afetem a vida cotidiana de nossa sociedade democrática”.
Por trás ao estopim do escândalo Cambridge Analytica, todos esses acontecimentos e tendências foram amplamente cobertos pelos meios de comunicação progressistas, e a imagem geral que se desprende disso, combinado com o que também sabemos sobre a relação entre os últimos avanços na biogenética (cabeamento do cérebro humano etc.), proporciona uma imagem adequada e aterrorizante das novas formas de controle social que convertem o bom “totalitarismo” do século XX em uma máquina de controle bastante primitiva e tosca.
Para compreender todo o alcance deste controle, deve-se ir além da relação entre as empresas privadas e os partidos políticos (como é o caso de Cambridge Analytica), a interpenetração das empresas de processamento de dados, como Google e Facebook, e as agências de segurança do Estado — Assange tinha razão em seu livro chave estranhamente ignorado no Google: para entender como nossas vidas estão reguladas hoje, e de que maneira esta regulação se experimenta como nossa liberdade, temos que nos centrar em relações obscuras entre as empresas privadas que controlam nossos bens comuns e as agências secretas estatais. Não deveríamos nos escandalizar ante a China, mas sim ante nós mesmos, que aceitamos a mesma regulação e acreditamos que conservamos plena liberdade e meios para conseguir realizar nossas metas (enquanto na China as pessoas estão plenamente conscientes de que estão sendo reguladas).
A maior conquista do novo complexo cognitivo-militar é que a opressão direta e óbvia já não é necessária: os indivíduos estão muito melhor controlados e conduzidos na direção desejada quando seguem se experimentando como agentes livres e autônomos de suas próprias vidas... Porém todos estes são fatos bem conhecidos, e temos que dar um passo a mais.
A crítica predominante procede na forma de desmitificação: abaixo da pesquisa que parece inocente sobre a felicidade e o bem-estar, se discerne um escuro e oculto complexo gigantesco de controle e manipulação social exercido pelas forças combinadas de corporações privadas e agências estatais. Porém, o que se necessita urgentemente também é a mudança oposta: no lugar de perguntar somente que conteúdo obscuro está oculto sob a forma da investigação científica da felicidade, deveríamos enfocar na forma mesmo. O tema da pesquisa científica sobre bem-estar humano e felicidade (ao menos na forma em que se pratica hoje em dia) é realmente inocente, ou já está permeável ao controle e à manipulação? O que passa se as ciências não estão sendo utilizadas incorretamente, o que passa se encontram aqui precisamente seu uso adequado? Deveríamos questionar o crescimento recente de uma nova disciplina, de estudos da felicidade — como é que na nossa era de hedonismo espiritual, quando o objetivo da vida está diretamente definido como a felicidade, a ansiedade e a depressão estão explodindo? É o enigma deste auto boicote da felicidade e o prazer o que faz a mensagem de Freud ser mais atual do que nunca.
Como acontece muitas vezes, Butão, um país em desenvolvimento do Terceiro Mundo, explicou as absurdas consequências sociopolíticas dessa noção de felicidade: faz duas décadas, o Reino de Butão decidiu se centrar na Felicidade Nacional Bruta, no lugar do Produto Interno Bruto; a ideia foi criação do ex-rei Jigme Singye Wangcgcy, que buscou levar o Butão ao mundo moderno, enquanto preservava sua identidade única. Agora, com as pressões da globalização e o materialismo crescendo, e o pequeno país pronto para suas primeiras eleições, o imensamente popular novo rei de 27 anos, educado em Oxford, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, ordenou a uma agência estatal calcular quantos entre os 670 mil habitantes do reino são felizes. Os funcionários disseram que já haviam levado a cabo uma enquete a umas mil pessoas e feito uma lista de parâmetros para ser feliz, semelhante ao índice de desenvolvimento que leva a cabo as Nações Unidas. As principais preocupações foram identificadas como bem-estar psicológico, saúde, educação, bom governo, níveis de vida, vitalidade comunitária e diversidade ecológica... isso é imperialismo cultural, se alguma vez o houve.
Deveríamos nos arriscar a um passo mais e perguntar sobre o lado oculto da noção de felicidade, quando exatamente a gente diz que é feliz? Em um país como Tchecoslováquia, em fins das décadas de 1970 e 1980, o povo efetivamente era feliz. Se cumpriam três condições fundamentais para a felicidade então:
1) suas necessidades materiais estavam basicamente satisfeitas — não demasiadamente satisfeitas, já que o excesso de consumo pode gerar infelicidade em sim mesmo. É bom experimentar uma breve escassez de alguns bens de mercado de vez em quando (sem café durante uns dias, depois sem carne, depois sem televisão): esses breves períodos de escassez funcionaram como exceções que recordavam às pessoas que elas deveriam se alegrar de que os produtos geralmente estavam disponíveis; se tudo está disponível todo o tempo, o povo vê essa disponibilidade como um fato da vida e não apreciaria sua sorte. A vida, então, se desenvolve de maneira regular e previsível, sem grandes esforços nem surpresas e cada um se retira ao seu próprio nicho privado;
2) uma segunda característica muito importante: existia o Outro (o Partido) a quem culpar por tudo que estava mal, de maneira que ninguém se sentia realmente responsável — se havia uma escassez temporária de alguns bens, e ainda uma tormenta causava um grande dano, era “sua” a culpa;
3) e, por último, porém não menos importante, havia um Outro lugar (Ocidente consumista) sobre o qual era permitido sonhar, e ainda visitar às vezes — este lugar estava a uma distância correta, não muito próximo, tampouco demasiado longe. O desejo era força que impulsava o povo a ir mais longe – e terminou em um sistema em que a grande maioria é definitivamente menos feliz.
A felicidade é, portanto, em si mesma (em seu mesmo conceito, como Hegel havia dito) confusa, indeterminada, inconsistente — recordem a resposta proverbial de um imigrante alemão aos Estados Unidos quando lhe perguntaram “Você é feliz? ”, ele respondeu: “Sim, sim, estou muito feliz aber gluecklich bin ich nicht…” (em português “mas feliz não estou”). É uma categoria pagã: para os pagãos, o objetivo da vida é viver uma vida feliz (a ideia de viver felizmente toda a vida é uma versão já cristianizada do paganismo), e a experiência religiosa ou a atividade política mesmo são consideradas a mais alta forma de felicidade (ver Aristóteles) — com razão o Dalai Lama tem tanto êxito recentemente rezando pelo mundo seu evangelho de felicidade e com razão está encontrando a maior resposta precisamente nos EUA, o último império na busca da felicidade.
A felicidade consiste na incapacidade ou na pouca disposição do sujeito para confrontar as consequências de seu desejo: o preço da felicidade é que o sujeito permaneça preso na inconsistência do seu desejo. Na nossa vida diária, (pretendemos) desejar coisas que realmente não desejamos, de maneira que, em última instância, o pior que pode haver é que obtenhamos o que oficialmente desejamos. A felicidade é intrinsecamente hipócrita: é a felicidade de sonhar com coisas que realmente não queremos.
Não encontramos um gesto similar em grande parte da política da esquerda?
Quando um partido radical esquerdista perde por pouco as eleições e a tomada de poder, alguém com frequência detecta um oculto suspiro de alívio: graças a Deus que perdemos, quem sabe em que problemas teríamos nos metido se tivéssemos ganhado... No Reino Unido, muitos esquerdistas admitem em privado que a quase vitória do Partido Trabalhista nas últimas eleições é o melhor que lhes pode ocorrer, muito melhor que a insegurança que poderia ocorrer se o governo trabalhista tivesse tratado de implementar seu programa. O mesmo vale para uma perspectiva de uma eventual vitória de Bernie Sanders nos Estados Unidos: quais teriam sido suas oportunidades contra a arremetida do grande capital? A mãe desses gestos é a intervenção soviética: muito em breve o governo reformista teria que confrontar o fato de que não havia uma possibilidade real de um socialismo democrático nesse momento histórico, de maneira que teria de escolher entre reafirmar o controle do partido – por exemplo, estabelecendo limites claros às liberdades e permitindo à Tchecoslováquia converter-se em um dos países capitalistas liberal-democratas do Ocidente. De alguma maneira, a intervenção soviética salvou a Primavera de Praga, salvou a Primavera de Praga como um sonho, como uma esperança que, sem a intervenção, uma nova forma de socialismo democrático teria emergido... E não ocorreu algo similar na Grécia quando o governo de Syriza organizou o referendo contra a pressão de Bruxelas sobre os gregos para que aceitassem as políticas de austeridade? Muitas fontes internas confirmam que o governo estava secretamente esperando perder o referendum, em cujo caso deviam encolher-se e deixar que outros fizessem o trabalho sujo de ajuste. Como ganharam, esta tarefa tocou a eles e o resultado foi a autodestruição da esquerda radical na Grécia. Sem nenhuma dúvida, Syriza teria sido muito mais feliz se tivesse perdido a consulta.
Então, voltando ao nosso ponto de partida, não somente somos povo “feliz” controlado e manipulado que secretamente e hipocritamente exige ser manipulado para seu próprio bem. A verdade e a felicidade não vão juntas: a verdade dói, traz instabilidade, arruína o fluir de nossas vidas diárias. A escolha é nossa: queremos ser felizmente manipulados ou nos expormos aos riscos da criatividade autêntica?
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Sujeitos felizmente manipulados? Não, obrigado! Artigo de Slavoj Zizek - Instituto Humanitas Unisinos - IHU