02 Março 2018
O mapa do Boqueirão da Onça foi por muito tempo um vazio: o país ignorava detalhes da maior faixa do único bioma exclusivamente brasileiro. Aos poucos, a ciência a descobre, mas projeto de preservação segue engavetado.
A reportagem é de Nadia Pontes, publicada por Deutsche Welle, 01-03-2018.
Ao longo do trajeto que leva até a maior área de caatinga selvagem do país, no norte da Bahia, é difícil cruzar com outros veículos na estrada. A mais de 100 km de Juazeiro, cidade mais próxima, a região tem pequenos povoados à margem das estradas de terra, casas abandonadas por antigos moradores que fugiram da seca, bodes soltos que circulam pela via.
As horas de viagem levam ao Boqueirão da Onça, região formada por serras e vales estreitos cobertos pela vegetação que só existe no Brasil, a caatinga. Faz dez anos que o decreto que cria uma unidade de conservação no local, do tamanho aproximado de 800 mil campos de futebol, está engavetado.
"Essa extensa caatinga preservada só existe aqui. Aqui vivem onças pintada e parda, e a pintada é uma espécie extremamente ameaçada nesse bioma", diz Rogério Cunha de Paula, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio), órgão do Ministério do Meio Ambiente.
Ele fez parte das primeiras expedições científicas à região para investigar a biodiversidade local. Nesse atual retorno, pouco mais de dez anos depois da primeira visita, Cunha notou diferenças na paisagem: centenas de torres eólicas fincadas no meio da caatinga.
"Isso trouxe um novo capítulo de como a gente pode explorar essa matriz energética a partir dos ventos, de forma a ter um impacto controlado na biodiversidade num ambiente tão sensível como a caatinga", comenta.
A proposta de criação de uma unidade de conservação no Boqueirão da Onça circula em Brasília há mais de uma década. A aprovação depende agora da análise da Casa Civil. Na última conferência do clima, na Alemanha, o ministro Sarney Filho falava da reserva como se já tivesse sido aprovada.
Segundo o Ministério de Meio Ambiente, a proposta atual é um mosaico, uma espécie de quebra-cabeça formado por um parque nacional – com regras mais rígidas de preservação – e uma área de proteção ambiental (APA).
O governo estadual da Bahia estima que a maior parte, quase 60% da área, se transformaria numa APA. O mosaico de conservação abrangeria os municípios de Sento Sé, Campo Formoso, Sobradinho, Juazeiro, Morro do Chapéu e Umburanas.
"Apoiamos um mosaico que concilie preservação, produção de energia renovável, ecoturismo e as necessidades dos povos e comunidades tradicionais", afirma Geraldo Reis, secretário estadual do Meio Ambiente.
As empresas de energia eólica, segundo Reis, participaram ativamente do debate de criação da unidade. "Estavam muito preocupadas com a possibilidade de inviabilizar seus investimentos", argumenta o secretário.
A estimativa do governo da Bahia é que as torres eólicas ocupem cerca de 10% da área do Boqueirão do Onça. "Certamente tais empresas fazem a compensação definida nos processos de licenciamento, que poderão ser direcionadas para otimizar a preservação da região, considerando o baixo índice de ocupação espacial da atividade", adiciona Reis.
Para a ciência nacional, o mapa do Boqueirão da Onça foi por muito tempo um vazio: o país ignorava detalhes do bioma, da fauna e da flora, da história de ocupação humana na faixa mais extensa de caatinga preservada que restou.
Neto, de 45 anos, já conhecia boa parte da região como a palma da mão. Morador do povoado Queixo D'Antas, que tem cerca de 80 famílias, ele passava seis meses acampado no mato com o pai, que era garimpeiro, e desbravava a caatinga em busca de minérios.
"O meu negócio era destruir. Hoje eu já penso em preservar. Se eu visse uma caça, o meu negócio era matar: uma, duas, dez. Era pra comer", afirma Mariano Neto Ferreira de Jesus.
A mudança veio depois de um novo convívio. Neto virou uma espécie de guia e foi um dos que mostraram o território aos pesquisadores: a arte rupestre nos paredões de pedra que conhecia desde a infância, vestígios de onça pintada.
De caçador, passou a parceiro do Programa Amigos da Onça, do Instituto Pró-Carnívoros, que atua na região desde 2012. "O objetivo é conservar onças parda e pintada, estudar a ecologia, trabalhar em parceria com moradores e reduzir os conflitos entre homens e onças na caatinga", resume Cláudia Bueno de Campo, bióloga que coordena o programa.
Segundo os pesquisadores, a criação de uma unidade de conservação no local é uma estratégia para beneficiar muitas espécies do semiárido.
"Existe uma classificação para algumas espécies que são chamadas guarda-chuva. Se for feito esforço importante, consegue-se conservar tudo o que está abaixo dela. Não só os animais: o bioma, os pontos de água que são importantes para caatinga, para seres humanos. É um conjunto que vem com a preservação da onça", afirma Campos.
Estima-se que 30 onças pintadas ainda circulem pela região. As pardas estão em maior número, são cerca de 200. Algumas já foram avistadas por Neto, que ainda passa dias acampado na caatinga – mas, desta vez, para ajudar no avanço da ciência.
"Se saísse hoje, era melhor", responde Neto quando indagado sobre a criação da unidade de conservação do Boqueirão da Onça. "Pra ver se o pessoal parava de desmatar, se tem como evitar um monte de estrada que está tendo aí. Pelo o que eu estou vendo, daqui a três, ou quatro anos, as onças que a gente está vendo nas fotos um neto meu não vai ver, alguém que vier de fora não vai conhecer. Não vai sobrar nem as pegadas", lamenta.
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A caatinga ainda espera - Instituto Humanitas Unisinos - IHU