16 Novembro 2017
A relevância decisiva do sacrifício na história humana foi reconhecida por toda a tradição antropológica, religiosa e filosófica. Sigmund Freud e Norbert Elias, Elias Canetti e René Girard, Marcel Mauss e Georges Bataille, embora por diferentes ângulos, colocaram a lógica do sacrifício na base da civilização humana. O sacrifício é a porta estreita, o limiar simbólico, que os homens precisaram superar para se separar do comportamento animal - por si próprio alheio à dinâmica sacrificial, devido à sua ligação com a dimensão natural. Ao contrário do animal, para o qual o desejo não se diferencia da necessidade, o homem experimenta o limite e a falta, conhece o poder da laceração, e pode refrear as próprias pulsões. Pelo viés negativo, a sua vida permanece assim inscrita no círculo do sacrifício.
O artigo é de Roberto Esposito, filósofo italiano, professor da Escola Normal Superior de Pisa e ex-vice-diretor do Instituto Italiano de Ciências Humanas, em artigo publicado por Repubblica, 15-11-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Mas, qual sacrifício? E sacrifício do quê? O que significa sacrificar? Para responder a estas perguntas decisivas, com a intensidade da inteligência livre de preconceitos de escolas, surge agora o trabalho de Massimo Recalcati, o livro Contro il sacrificio. Al di là del fantasma sacrificiale (Contra o sacrifício. Para além do fantasma sacrificial, em tradução livre) editado por Cortina. Evitando todo reducionismo, ele penetra na caixa preta da economia sacrificial, distinguindo dois tipos de sacrifícios - um simbólico e outro fantasmagórico. Enquanto o primeiro, implícito na linguagem humana, é capaz de potencializar a nossa experiência, porque a recorta de acordo com perfis e escolhas pessoais, o segundo comprime a vida até sufocá-la. Ele retira toda a linfa e aplana a espessura, submetendo-a a algo - uma alteridade tirânica – que impõe o próprio domínio incondicional. Como o camelo de que fala Nietzsche em Assim falava Zaratustra, o homem se submete ao ídolo que ele próprio criou, segundo uma dinâmica perfeitamente explicada por Étienne de La Boétie em seu tratado sobre a servidão voluntária. E não distante daquela que Reich analisou em seus estudos sobre o desejo de fascismo pelas massas hipnotizadas pelo poder.
É uma síndrome longe de estar superada, em cujos extremos existe, de um lado, o abjeto sacrifício homicida e suicida do terrorismo jihadista, e, do outro, a economia financeira que funciona acumulando débitos no confronto de credores cada vez mais anônimos. Naturalmente, um abismo separa essas duas modalidades do paradigma sacrificial contemporâneo. Mas para uni-las, na distância, é o mesmo pressuposto teológico-político que apenas um sacrifício sem fim poderia libertar o homem de uma culpa que o marcaria desde a origem. É por isso que, mesmo hoje, quando não se sacrificam mais vidas humanas, e nem mesmo animais, nos altares, o sacrifício continua a permear surdamente a nossa existência. Não somente quando a entregamos, nua, para a inelutabilidade de uma Lei que não perdoa.
Mas também quando procuramos na transgressão desta, em favor do puro prazer, o caminho da libertação. Mesmo o prazer sem limites fala, por contraste, a linguagem da Lei - substituindo o dever de desfrutar ao de sofrer. Como Lacan argumentou em um famoso seminário, a carne oferecida à violência do prazer de Sade é perfeitamente especular ao corpo mortificado pelo imperativo ascético de Kant.
Em cada um dos casos, a Lei é pressuposta - ou para obedecê-la cegamente ou para derrubá-la em seu aparente contrário. Na dinâmica psicótica, por outro lado, o masoquista precisa do sádico e vice-versa. Mesmo aquele que direciona sobre si mesmo o sacrifício da vida imposto aos outros - como o terrorista suicida - responde a uma economia sacrificial que imagina ganhar um prêmio superior ao que perde. Naquele caso, o sacrifício torna-se não o instrumento para alcançar o fim cobiçado, mas o objeto final da pulsão.
Para esse dispositivo capilar e implacável, capaz de girar sobre si mesmo, sempre mostrando novas caras, Recalcati opõe uma diversa concepção do sacrifício. Ela não passa por sua remoção - o negativo é ineliminável da vida humana porque é constitutivo dela mesma - mas por sua desativação. Na sua origem, além e dentro da prática analítica, há uma interpretação diferente do cristianismo, orientada pelos textos de Kierkegaard e Bultmann, capaz de repensar também o enigma sublime da Cruz.
Existe, no ensaio de Recalcati, algo que vai inclusive além da narração, por si inovadora, de René Girard. Não apenas Cristo, assumindo-o para si mesmo, põe fim à história violenta do sacrifício da vítima, mas se coloca no lado de fora da semântica sacrificial. Ao aceitar a versão de Lucas, que exclui o termo "sacrifício" da oferta de si de Jesus para os homens - "este é o meu corpo que é dado por vós", compreende-se o significado mais pregnante da formulação revolucionária de Paulo, segundo a qual Cristo nos libertou da maldição da Lei. Não pela sua renegação, mas assumindo-a em seu significado afirmativo, vital e generativo.
Ao contrário de se contrapor ao desejo, a Lei - a única que não é imposta do exterior por ser expressiva da nossa linguagem - coincide em última análise com esse. É a lei do desejo. Aquela, afirmava Lacan, sobre a qual não devemos ceder. Só ela é digna de uma existência livre de existir. Como escrevia Jean-Luc Nancy em uma citação escolhida para o livro, "a verdade da existência é ser insacrificável. A existência não deve ser sacrificada, e não pode ser sacrificada. Pode-se apenas destruí-la ou compartilhá-la".
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Assim romperemos as falsas correntes de sacrifício - Instituto Humanitas Unisinos - IHU