10 Novembro 2017
Um livro-diálogo entre o filósofo francês e Eric Hazan para investigar juntos En quel temps vivons-nous? [O tempo em que vivemos, em tradução livre]. Essa descrição banal da ideia do niilismo todo inclinado para o serviço dos consumos e ao encanto do narcisismo mercantil. Os sistemas de representação encontram maneiras de se arranjar com as anomalias e os monstros que secretam.
O comentário é de Marco Assennato, publicado por Il Manifesto, 09-11-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Jacques Rancière é o intelectual que, talvez com mais constância, soube fazer valer o seu ponto de vista crítico sobre o recente ciclo de vida político francês. Portanto, foi um grande acerto Eric Hazan ter-lhe proposto uma conversa "sobre o tempo em que vivemos" no livro recentemente publicado na França En quel temps vivons-nous? (La Fabbrique editions, Paris, pp.72, € 10).
O raciocínio de Rancière é, como sempre, essencial: "aqueles que nos pediram para votar em Hollande porque era menos pior que Sarkozy, convidam-nos a votar em Macron, porque é menos pior que Fillon ou Marine Le Pen e, daqui a cinco anos, nos convidarão a votar em Marine Le Pen, porque é menos pior do que a sua neta". Como interromper, então, essa sequência catastrófica?
O diálogo entre Hazan e Rancière toma a forma de uma avaliação dos movimentos sociais dos últimos anos. Inútil, aliás, procurar em outro lugar. São lutas difusas que Rancière observa com olhar inclusivo: das manifestações contra a reforma do trabalho, às marchas de denúncia contra a violência policial, dos milhares de associações que lidam com o acolhimento de migrantes, às tantas ocupações ou ao Nuit Debout. Um conjunto de experiências, fragmentadas é claro, mas capazes – mais do que prefigurar algum futuro - de "abrir um buraco no presente" para "intensificar outra maneira de ser e de perceber" a ordem do mundo.
Portanto, trata-se das primeiras formas de "auto-organização da vida", que começam a definir uma importante passagem "da resignação ao protesto". No entanto, é inútil esconder, nenhuma dessas ações, até agora, conseguiu condensar uma alternativa política eficaz.
O problema, de acordo com Rancière, é que as práticas antagônicas ainda estão presas à velha ilusão da "esquerda radical", segundo a qual a "decomposição" do sistema político-representativo abriria o caminho para a revolta social. Porém, é justamente o contrário o que acontece: os sistemas de representação, declara o filósofo, seguram o golpe e "sempre encontram maneiras de se arranjar com as anomalias e os monstros que secretam". Por um lado, a mediocridade crescente das disputas eleitorais inverte-se em "princípio da resignação à sua necessidade"; e, pelo outro, os mecanismos eleitorais "criam eles próprios o espaço daqueles que pretendem estar representando os não representados".
Uma resposta radical a essa condição histórica deve, então, ser proposta por experiências capazes de romper definitivamente com todas as previsões catastróficas: "derrotas da democracia", afirma Rancière, não abrem o caminho "para a luta final", são apenas "as derrotas da igualdade". Além do mais, elas pesam. Elas têm um custo social extremamente elevado. Produzem efeitos políticos. Portanto, "a batalha sobre as instituições e os procedimentos da política" é tudo menos ilusória: "as aparências", no tempo que vivemos, "são sólidas".
O espectador emancipado que Rancière aspira a ser já nos acostumou há anos a essas análises. É hora de dar um passo adiante. Sem retórica nem presunção, o filósofo analisa, portanto, os dois paradigmas mais difundidos no debate sobre os movimentos: o populista e estatista da esquerda chamada radical e o ‘insurreicionalista’, do qual Hazan e sua editora são portadores, tendo publicado vários sermões do Comitê Invisible. [Aos nossos amigos: crise e insurreição. Tradução: Edições Antipáticas. N-1 Edições, 2016].
Contra o populismo de esquerda o argumento é curto e seco: é uma deriva reacionária fundada em uma falsa imagem do povo e em uma grande dose de oportunismo. Na tradição moderna, de fato, o povo não é "o grande corpo coletivo que se expressa na representação". Pelo contrário, é aquele "quase-corpo que é produzido pelo funcionamento do sistema". São os sistemas de representação que operam, portanto, a repartição entre representados e não representados, a tutela de determinados interesses e a insatisfação social, as identidades culturais e o êxodo multitudinário. Uma verdadeira fábrica em que a política se traduz em polícia, definindo o espaço do qual o chamado povo é um resultado de forma alguma neutro. Mais articulada é, ao contrário, a crítica sobre a segunda frente, aquela dos novos insurrecionistas.
Afirma Rancière: "há uma coisa que Badiou, Zizek ou o Comitê Invisible compartilham com Finkielkraut, Houellebecq ou Sloterdijk, ou seja, essa descrição banal do niilismo do mundo contemporâneo, todo inclinado ao serviço dos consumos e ao encanto democrático do narcisismo mercantil". Para além das diferenças evidentes, em suma, permanece no fundo uma "visão heideggeriana" do mundo, unilateralmente "decadente", que nos deixa indefesos e impotentes. Que depois essa análise seja invertida por alguns em um abstrato apelo à insurreição ou, após ter constatado que o prometido Grande Soir não se realizou, introvertida em formas de vida subtrativas, pouco importa.
O que mantém juntas essas perspectivas é uma velhíssima e inútil metafísica do poder. Mas, argumenta Rancière, o capitalismo contemporâneo não coincide com "o poder": é muito mais "um mundo, o mundo em que vivemos, o ar que respiramos, a trama que nos mantém juntos". Isso significa que não existe nenhum "lugar central", nenhuma "muralha para derrubar", nenhum "cara a cara" em que militar, mas sim um sistema de relações que enquanto produz miséria, racismo e guerra, permite viver a milhões de pessoas invadindo progressivamente a existência das singularidades. Trata-se, então, de construir lutas capazes de agredir "as diferentes formas segundo as quais a lógica capitalista precisa dos nossos corpos e dos nossos pensamentos".
Por outro lado, continua Rancière, "todos aqueles que falam hoje de insurreição fazem uma cruz sobre a história real de processos insurrecionais". Todos os grandes momentos insurrecionais, de fato, foram caracterizados por uma "extraordinária invenção de instituições". Uma insurreição consiste principalmente nesse paciente trabalho de "reelaboração da percepção e do pensamento" que produz "imaginação política" para "mudar o mundo".
Isso tem faltado até agora aos movimentos. Claro, não é um destino, mas, mesmo assim, aqui o texto se interrompe. Rancière limita-se a observar e reivindica uma posição que poderia ser definida puramente anárquica. Sensata, elegante, até mesmo poética: pronta a sinalizar cada momento em que a igualdade se manifesta, rompendo, mesmo que apenas por um instante, as estratégias de domínio dos governos.
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Jacques Rancière, a possibilidade de abrir um buraco no presente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU