02 Novembro 2017
No dia 31 de outubro de 2017, são os 500 anos desde que Martinho Lutero tornou públicas as suas famosas 95 teses, que originaram o movimento depois definido como Reforma protestante. No mesmo dia, concluem-se as celebrações do 50º aniversário que, pela primeira vez, a 50 anos desde o Concílio Vaticano II, viu a primeira comemoração comum entre luteranos e católicos.
O texto que retomamos aqui faz parte de um livro do teólogo e monge beneditino francês Ghislain Lafont, professor emérito de teologia da Pontifícia Universidade Gregoriana e do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, intitulado Piccolo saggio sul tempo di papa Francesco [Pequeno ensaio sobre o tempo do Papa Francisco], publicado pelas Edizioni Dehonane di Bologna (EDB).
O artigo foi publicado no sítio Settimana News, 30-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O destaque oferecido à misericórdia incide sobre o progresso de uma atitude religiosa autêntica e compartilhada neste nosso mundo? Gostaria de fazer algumas reflexões a esse respeito. Escrevo enquanto inicia o quinto centenário da Reforma. Um aniversário importante, mas não o único. Como abordá-lo?
A linguagem comum fala de “festejar” um aniversário ou de “celebrá-lo”. O aniversário dá origem a festejos coletivos, civis, familiares, religiosos e, portanto, a gestos simbólicos que valorizam, mais ou menos solenemente, uma pessoa ou um acontecimento.
A memória dirige-se a um início, princípio de vida, de felicidade, de ação de graças e, ao mesmo tempo, se volta para um futuro que cumprirá as promessas do início: ad multos annos! Ela é agradecimento pelo passado e esperança de um futuro. A festa é uma manifestação do excesso de sentido misteriosamente presente desde o início, que se desenvolveu e se revelou depois, e que contém promessas ainda hoje.
É graças à festa que o início se manifesta na sua verdade, ainda escondida no início, mas, pouco a pouco, revelada à luz do que aconteceu. O presente, aberto à esperança do futuro, é exegese do início. O que se segue permite compreender e admirar a origem.
Mas é preciso acrescentar algo. Esse retorno para trás e esses virar-se para a frente só são possíveis se o intervalo entre os começos e o presente for globalmente positivo, se for possível reconhecê-lo, nomeá-lo, contá-lo. Caso contrário, esquece-se ou até mesmo renega-se o início: “Seja maldito o dia do meu nascimento”, diz Jó. Não há festa.
Na celebração festiva, ao contrário, esconde-se espontaneamente aquilo que, no início e depois, foi negativo: aquilo que não correspondeu àquilo que se esperava, aquilo que impediu um desenvolvimento harmonioso, aquilo que revelou fraquezas originais que não tinham sido vistas. O negativo veio de acontecimentos, mas talvez ainda mais dos homens. Não se nega isso, mas se esquece (pelo menos durante o tempo dos festejos) ou é transfigurado: era preciso que também isso, sofrimento, fracasso, erro, carência, acontecesse para que se chegasse aonde se está. Talvez, conservamos isso silenciosamente na memória, mais como uma advertência para o futuro do que para deplorar o passado: não repetir os mesmos erros, gerir melhor as dificuldades do presente.
Finalmente, a festa não é necessariamente para todos: se uma parte da família não está em harmonia com a outra, certamente ela não se unirá a um aniversário de nascimento ou de casamento. Não me lembro mais como veio à mente de quem era abade do meu mosteiro à época de servir vinho no refeitório no dia 14 de julho, para celebrar de modo discreto a Revolução Francesa! Um irmão de origem nobre, então, avisou que não se beberia vinho naquele dia: seria uma ofensa à memória dos seus antepassados despojados, exilados, guilhotinados. Como não entender tal reação?
Quanto ao nosso tema – a celebração do início da Reforma protestante –, uma nobre figura da Igreja Católica, o cardeal Müller, declarou recentemente: “Nós, católicos, não temos motivo algum para celebrar o dia 31 de outubro de 1517, data que marca o início da Reforma e que levou à ruptura do cristianismo ocidental” (La Croix, 10-04-2016).
É possível, talvez, contradizê-lo se a Reforma é apenas (ou sobretudo) a origem dessa ruptura? De modo análogo, poderíamos nos perguntar se as comunidades nascidas da Reforma vão querer celebrar, em 2045, o quinto centenário da abertura do Concílio de Trento. Não devemos ampliar um pouco o olhar?
É verdade que, em um passado até mesmo recente, esses acontecimentos eram lidos, no lado católico, com a lente da ruptura no desenvolvimento da história: uma catástrofe geradora de mal que tinha dado origem a anátemas e condenações ao inferno. Hoje, portanto, dia de luto, não de festa; dia de repetição, pelo menos implícita, do anátema. E o mesmo valia do outro lado!
Porém, se, seguindo os papas Bento e Francisco, colocamos o amor e a misericórdia no princípio da nossa fé em Deus, colocamos um novo critério de interpretação da história no seu conjunto. Uma luz que clareia como novo dia a sucessão dos acontecimentos; o que significa, à luz dessa misericórdia fundadora, que agora os vemos de uma forma diferente, como etapas, no fim, positivas do desígnio de salvação.
O negativo, em parte, vinha também do fato de que se julgava e se agia primeiro em função de referências diferentes. Poder-se-ia fazer a tentativa de pensar, ou de rezar, esses fenômenos de ruptura, para discernir o “caminho de Deus”. Hoje, percebe-se melhor que Deus, no seu silêncio (“a água de Siloé, que corre mansa”, Is 8, 6), promove o positivo, vê na profundidade dos corações, une à paixão do seu Filho o mal e o sofrimento, espera conversões que ele solicita e sustenta. Em outras palavras, Deus se conforma com o seu ser profundo, que é “misericórdia”.
Misericórdia significa, negativamente, que Deus perdoa o pecado, o que suscita a gratidão, o louvor e uma vigilância serena. Positivamente, que ele inclina a vontade do homem ao bem que é capaz de discernir. Em outras palavras, “Deus faz com que tudo concorra para o bem dos seus eleitos, até mesmo o pecado” (Claudel, epígrafe para “O sapato de cetim”). Deus faz crescer o “povo humilde e pobre” do qual fala o profeta Sofonias a partir de todos os povos da terra. Ele dá tempo ao tempo, para que, um pouco de cada vez, os homens cheguem à sua maturidade, através de muitos erros e insuficiências. Ele inspira em cada o mínimo de amor necessário para que possa participar da construção desse povo.
Em 1989, festejou-se o segundo centenário da Revolução Francesa. O ano de 2017 marca o meio milênio da Reforma (um quarto da era cristã!). Em 1954, fazia-se memória de quase mil anos da ruptura entre Constantinopla e Roma, e foram publicados dois grandes volumes da parte católica com o título: “Novecentos anos depois”. Era antes do Concílio. Acho que hoje uma obra semelhante também incluiria estudos provenientes do mundo da Ortodoxia. Em 2022, será o 400º centenário da Hégira, início da expansão muçulmana.
Acontecimentos religiosos que são acontecimentos da história universal, porque marcaram de modo duradouro o seguimento, tanto no espaço mais restrito da Europa e do Oriente Próximo, quanto no mundo inteiro.
Para que esses aniversários tenham um porte universal, seria necessário que nos puséssemos de acordo sobre o aspecto abrangentemente positivo e promissor dos acontecimentos.
Antecipemos 2022, 400º aniversário da Hégira. Tudo leva a pensar que o papa de Roma enviará um telegrama a algum grande dignitário do Islã e talvez uma delegação que presenciará as cerimônias do aniversário. Se não o fizer, se o Patriarca de Alexandria se abstiver, será o sinal de que a parte dura do Islã levou a melhor e pretende continuar a guerra santa contra todos aqueles que se opõem à confissão de fé islâmica, particularmente os cristãos. Teremos, então, retrocedido. Se, ao contrário, um Islã razoável tiver levado a melhor, por ocasião desse centenário, teremos um intercâmbio de boas práticas, como já se teve com João Paulo II, por exemplo, durante a sua visita ao Marrocos em 1995.
Que teriam essas “boas práticas”? O fato de a Igreja cristã reconhece os valores do Islã; que ela é capaz de apreciar a contribuição da fé islâmica para a difusão do monoteísmo no mundo, para a valorização concreta da oração, da esmola, do jejum; que a Igreja está pronta para se aliar em um esforço de promoção de valores religiosos e humanos comuns. Em outras palavras, se deixará o lado polêmico, guerreiro, das relações entre Islã e cristianismo: as cruzadas, por um lado, as conquistas do Islã, por outro (detidas na Europa pela vitória de Jan Sobieski em Viena em 1686).
Em outras palavras: se tentará, na medida do possível, contribuir juntos para a paz no Oriente Médio e na Ásia do Sul. Se, infelizmente, houvesse um recrudescimento violento por parte do Islã, as Igrejas cristãs não tentarão se defender com novas cruzadas. Isso significa, talvez, que a Igreja que se encontra hoje diante do Islã não é mais a mesma de Pio V, que abençoava as galeras de Lepanto e se alegrava com a sua vitória?
É uma comunidade que, sustentando-se em uma visão renovada da esperança, pretende reconhecer em toda a parte os fatores de vida; é uma comunidade que, no fim, tem uma ideia positiva de Deus e se esforça para fazer da história do mundo, ou das histórias particulares, uma leitura não ingênua, mas conforme ao Evangelho.
Nessa direção, se ressaltará que o Islã difundiu no mundo o reconhecimento da unicidade de Deus, junto com elementos essenciais da existência humana: a oração constante, a esmola, o jejum. E, para voltar à Ortodoxia e à Reforma, se dirá que o Oriente cristão, subjugado pela paixão guerreira do Islã, manteve, apenas no seu espaço, o evangelho e a liturgia da ressurreição.
Sobre os três pilares da Reforma – Escritura, fé, graça – se dirá que fortaleceram muitos cristãos ocidentais no seu caminho rumo a Deus. Sobre a Igreja Católica, por fim, que se mostrou sólida nas suas estruturas e preocupada com a mística; que foi capaz de resistir às forças deletérias da modernidade e, depois, de assumir as suas culturas, impulsionada pela missão, repensada sempre e de novo.
Provavelmente, é isso que Deus vê. Certamente, é o que ele faz. O negativo é visível até demais (“o barulho não faz bem, o bem não faz barulho”), doloroso, às vezes desconfortante. Mas os olhos da fé são convidados a ver o Evangelho e a seguir os seus caminhos, que são caminhos da perseverança e de reconciliação dentro do horizonte do Reino que vem.
Não é, talvez, isso que o Concílio Vaticano II nos propôs através do decreto Unitatis redintegratio e da declaração Nostra aetate?
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Sobre a ideia de aniversário: a Reforma, de 1517 a 2017. Artigo de Ghislain Lafont - Instituto Humanitas Unisinos - IHU