25 Outubro 2017
“Todos aqueles que, nos últimos 40 anos, tentaram domesticar o Vaticano II devem se sentir como os verdadeiros destinatários da carta. O cardeal Sarah, no caso, foi particularmente ingênuo, mas a carta pretende falar, acima de tudo, aos espertos.”
O comentário é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 23-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O valor da carta que, no dia 15 de outubro, o Papa Francisco escreveu ao cardeal Sarah, prefeito da Congregação para o Culto Divino, vai além da questão específica sobre a qual ele intervém (para uma síntese da história, remeto ao meu post anterior aqui): mesmo com toda a relevância do “caso” – ou seja, a correta interpretação de um texto como Magnum principium e o seu impacto sobre a práxis das traduções litúrgicas –, a carta diz respeito ao modo interpretar a virada conciliar e a abertura de uma nova fase da relação da Igreja com a história e com a cultura.
Eis alguns pontos essenciais desse raciocínio:
Na hermenêutica litúrgica predominante nas últimas décadas do magistério, muitas vezes se recorreu a referências aos textos conciliares que contradiziam o seu significado. Exemplos particularmente evidentes dessa “práxis interpretativa” são constituídos por documentos litúrgicos que se colocam no início do novo milênio: Liturgiam authenticam (2001) e Redemptionis sacramentum (2004) são dois casos em que são propostas leituras da tradição pós-conciliar que desembocam em verdadeiras desmentidas do Concílio.
Basta pensar que o resultado dos dois documentos citados é, respectivamente, a suspeita em relação à língua falada e à assembleia celebrante! O “grande princípio” aparece, nesses documentos, esquecido e desfigurado.
Também no caso do “Commentaire”, escrito pelo cardeal Sarah, com a pretensão de dar uma “interpretação autêntica” do Magnum principium, procedeu-se com a mesma técnica: encarrega-se um canonista de visões curtas e de provada fé autorreferencial de apresentar despudoradamente uma leitura do texto papal no sinal de uma absoluta continuidade com a práxis e a mentalidade adquirida nos últimos 20 anos e se pretende credenciar a ideia de que essa leitura é “fiel” ao texto de Magnum principium.
E o prefeito se prestou a assinar um texto totalmente indefensável. Normalmente, isso foi feito para textos que não tinham nenhuma possibilidade de responder e que viviam da fidelidade com a qual, na história, ainda somos capazes de entender a sua letra e o seu espírito.
Neste caso, porém, a operação imprudente de hermenêutica tradicionalista não levou em consideração o fato de que Francisco é hoje “Concílio com direito de palavra”. Por isso, diante da desfaçatez com que se desprezou a letra e o espírito de um documento de apenas um mês atrás, a “intentio auctoris” – ainda bem clara na mente de quem o assinou – intervém inequivocamente para restaurar a verdade.
Quanto ao mérito de Magnum principium, a exigência de escutar as razões das diversas culturas, da qual brotava a intuição original do Concílio, não pode ser obscurecida por uma mera defesa das competências centralistas elaboradas nos últimos 20 anos, sob a pressão de uma certa obsessão com a “perda da tradição”.
Através da “clara diferença” entre duas formas de “aprovação”, Magnum principium finalmente salvaguarda a diferença necessária das diversas culturas. Pensar a unidade como “homologação” é uma aberta desmentida da dinâmica que o Concílio Vaticano II quis reconhecer como vital para a tradição eclesial.
Sobre esse ponto, que eu definiria como visceral, uma leitura estática e uma leitura dinâmica da tradição se confrontam abertamente e não podem ser jogadas uma contra a outra. Com efeito, o texto da carta fala explicitamente de “revogação” da abordagem imposta pela Liturgiam authenticam. Não são mais possíveis esses obstáculos entre fidelidade e tradução criados deliberadamente por 20 anos e que desenvolveram apenas embaraço e paralisia.
A “fidelidade”, como diz o texto da carta, “implica uma tríplice fidelidade: ao texto original, in primis; à língua particular em que ele é traduzido; e, enfim, à compreensibilidade do texto por parte dos destinatários”: em outras palavras, ela é reconhecida como um ato complexo, que não pode ser controlado apenas a partir do centro, mas deve honrar diversas instâncias, gerais e particulares.
Entre as primeiras reações que caracterizaram a recepção da carta, uma correu o risco de ser predominante. Talvez seja aquela que a imprensa também tentou enfatizar: ou seja, uma espécie de “duelo” entre o papa e um oficial seu. Não é assim. Outra coisa está em jogo aqui: trata-se, antes, de um modo de restituir autoridade à “natureza pastoral” do Concílio Vaticano II e aos efeitos que essa grande virada pode e deve ter sobre todo o corpo eclesial, começando pelas Congregações, que não ficam imunes a isso.
A carta do dia 15 de outubro é expressão de um Concílio Vaticano II que não se deixar amordaçar por hermenêuticas negacionistas, que não se deixa paralisar pela “obsessão com a continuidade do único sujeito eclesial”, que não permite indiferenças ou negligências antigas e novas.
Todos aqueles que, nos últimos 40 anos, tentaram domesticar o Vaticano II devem se sentir como os verdadeiros destinatários da carta. O cardeal Sarah, no caso, foi particularmente ingênuo, mas a carta pretende falar, acima de tudo, aos espertos.
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O Concílio com direito de palavra: a carta de Francisco não responde apenas ao cardeal Sarah. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU