21 Outubro 2017
“Um elemento de grande e preciosa originalidade do magistério de Francisco é o de unir à tarefa crítica a tarefa autocrítica. E, se a Igreja tinha se especializado há dois séculos na crítica ao mundo, muito mais tímido e às vezes quase ausente tinha sido o exercício da autocrítica da Igreja, frequentemente confundido com a rendição ao inimigo.”
A opinião é do teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Sant’Anselmo, em Roma, do Instituto Teológico Marchigiano, em Ancona, e do Instituto de Liturgia Pastoral da Abadia de Santa Giustina, em Pádua. O artigo foi publicado por Come Se Non, 18-10-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Entre as maiores novidades que o Papa Francisco introduziu na linguagem eclesial, brilha com uma luz muito intensa a clara correlação entre a exigência de reforma eclesial e a necessidade de uma franca autocrítica magisterial.
Ao longo do último mês e meio, uma série de documentos – duas cartas “motu proprio” e um discurso – relançaram poderosamente as exigências de reforma através de uma análise sem preconceitos da tradição recente, sem esconder as necessárias tarefas de autocrítica.
Poderíamos dizer que um elemento de grande e preciosa originalidade do magistério de Francisco é o de unir à tarefa crítica a tarefa autocrítica. E, se a Igreja tinha se especializado há dois séculos na crítica ao mundo, muito mais tímido e às vezes quase ausente tinha sido o exercício da autocrítica da Igreja, frequentemente confundido com a rendição ao inimigo.
Repassemos brevemente esse percurso recente:
Tudo começou desde o início do pontificado. Já desde a noite do dia 13 de março de 2013, mas, depois, oficial e solenemente, com a Evangelii gaudium, encontramos, no seu primeiro capítulo, uma série de distanciamentos de estilos pastorais inadequados, que pode ser compreendida explicitamente como uma salutar autocrítica com a qual a Igreja se repensa em relação ao seu próprio estilo.
Mas isso também se lê na Laudato si’ e, ainda mais explicitamente, no “decálogo de autocrítica” (sobre o qual já me debrucei aqui) que encontramos nos números 35-37 da Amoris laetitia.
Esse modo de compreender a função do magistério e de questionar hábitos adquiridos nas últimas décadas parece ser uma verdadeira profecia eclesial. Mas, à luz desses precedentes, vejamos agora as aquisições mais recentes desse estilo magisterial autocrítico.
Como bem atestam as resistências explícitas por parte dos próprios órgãos curiais chamados a aplicar as disposições, Magnum principium reconhece uma “paralisia” que bloqueou a normal atividade de tradução da tradição. Foi o magistério que causou a paralisia e, agora, o magistério faz autocrítica e coloca novamente no centro o “grande princípio” da participação “inteligente” do povo no ato de culto.
Diante de um magistério que havia aconselhado que se usasse com muita parcimônia a expressão “assembleia celebrante”, agora a restituição das competências às Conferências Episcopais reabre as portas e as janelas da Congregação do Culto, que alguns ainda gostariam de trancar com travas duplas e sistemas de segurança à prova de bomba.
As ilusões de quem tinha apontado para o primado de uma “língua não mais viva” às custas das “belas línguas vivas” são desmascaradas:
“Com este objetivo é preciso comunicar fielmente a um determinado povo, através da sua língua, o que a Igreja pretendeu comunicar a outro por meio da língua latina. Mesmo se a fidelidade nem sempre pode ser julgada por simples palavras mas no contexto de toda a ação da comunicação e segundo o próprio gênero literário, contudo alguns termos peculiares devem ser considerados também no contexto da íntegra fé católica, dado que cada tradução dos textos litúrgicos deve ser congruente com a sã doutrina.”
A pretensão de uma tradução “literal” é superada pela descrição, apertis verbis, das “correspondências dinâmicas” em que vale a proporção: o latim está para um povo assim como a língua vernácula está para outro povo. Os diversos povos determinam uma mediação complexa e não direta entre as línguas.
Essa autocrítica – que, no fundo, é apenas o retorno à lógica do Concílio Vaticano II, que Liturgiam authenticam tinha tentado aniquilar – inaugura uma temporada de diálogo renovado entre fé e cultura, no qual nenhum sábio pastor inglês deverá repetir mais a um funcionário romano: “Como ousa corrigir o meu inglês?” (B. Hume).
Também no plano da teologia do matrimônio e da família, como resultado direta da elaboração da Amoris laetitia e do seu “decálogo de autocrítica” (cfr. acima), era inevitável que se proviesse a corrigir aquele centro de maximalismo teológico que, há décadas, era representado pelo Instituto João Paulo II.
O redimensionamento da pretensão maximalista da teologia familiar é produzido com uma pontual descrição da “maravilhosa complexidade” da família contemporânea, irredutível às arrepiantes simplificações com as quais muitos professores desse instituto tinham nos acostumado.
Se lermos o coração do texto, encontramos, muito claramente, as palavras de autocrítica e de nova orientação:
“A mudança antropológico-cultural, que hoje influencia todos os aspetos da vida e exige uma abordagem analítica e diversificada, não permite que nos limitemos a práticas da pastoral e da missão que refletem formas e modelos do passado. Devemos ser intérpretes conscientes e apaixonados da sabedoria da fé num contexto em que os indivíduos são menos apoiados do que no passado pelas estruturas sociais, na sua vida afetiva e familiar. No límpido propósito de permanecer fiéis ao ensinamento de Cristo, devemos portanto olhar, com o intelecto de amor e com realismo sábio, para a realidade da família, hoje, em toda a sua complexidade, nas suas luzes e sombras.
“Por estes motivos, considerei oportuno dar um novo quadro jurídico ao Instituto João Paulo II, para que ‘a intuição clarividente de São João Paulo II, que desejou fortemente esta instituição acadêmica, hoje [possa] ser ainda mais reconhecida e apreciada na sua fecundidade e atualidade’.Por conseguinte, tomei a decisão de fundar um Instituto Teológico para as Ciências do Matrimônio e da Família, ampliando o seu âmbito de interesse, tanto no respeitante às novas dimensões da tarefa pastoral e da missão eclesial, como em relação aos desenvolvimentos das ciências humanas e da cultura antropológica num campo tão fundamental para a cultura da vida.”
As formas e os modelos do passado – com um modo de fazer teologia autorreferencial e fechado, de escrivaninha ou de varanda, nunca de estrada – devem ser decisivamente superados. Uma autocrítica muito lúcida é a premissa para um novo estilo, uma nova relação estrutural não somente com a prática pastoral, mas também com a cultura antropológica.
Uma Humanae vitae relida com os óculos da Dignitatis humanae: é assim que eu julgaria o grande discurso que o Papa Francisco proferiu diante da Academia Pontifícia, no qual se pode ler, com uma surpresa repleta de pressentimentos:
“A fé cristã nos impele a retomar a iniciativa, rejeitando toda concessão à nostalgia e à lamentação. Além disso, a Igreja tem uma vasta tradição de mentes generosas e iluminadas, que abriram caminhos para a ciência e a consciência na sua época. O mundo precisa de fiéis que, com seriedade e alegria, sejam criativos e propositivos, humildes e corajosos, resolutamente determinados a recompor a fratura entre as gerações. Essa fratura interrompe a transmissão da vida. Exaltam-se as entusiasmantes potencialidades da juventude: mas quem os guia ao cumprimento da idade adulta? A condição adulta é uma vida capaz de responsabilidade e amor, tanto pela geração futura, quanto pela passada. Espera-se que a vida dos pais e das mães em idade avançada seja honrada por aquilo que ofereceu generosamente, e não que seja descartada por aquilo que não tem mais.”
E ainda:
“Em suma, é uma verdadeira revolução cultural que está no horizonte da história deste tempo. E a Igreja, por primeiro, deve fazer a sua parte. Nessa perspetiva, trata-se, acima de tudo, de reconhecer honestamente os atrasos e as faltas. As formas de subordinação que tristemente marcaram a história das mulheres devem ser definitivamente abandonadas. Um novo início deve ser escrito no ethos dos povos, e isso só pode ser feito por uma renovada cultura da identidade e da diferença.”
Superar “nostalgia e lamentação” – atitudes que haviam superado, já há décadas, o limiar da posição de guarda – e admitir “atrasos e faltas” torna-se um convite a não jogar na defesa, mas no ataque, a retomar a iniciativa, a considerar a vida não apenas e não tanto como biologia, mas como história e como memória. A fim de respeitar tão radicalmente a “vida humana” a ponto de nunca poder passar por cima, voluntariamente, da sua “dignidade”.
É óbvio que esses posicionamentos, urgentes há décadas e finalmente pronunciados e tornados operacionais, surtem o seu efeito. Mesmo nos ânimos daqueles que tinham pensado em poder identificar o catolicismo na sua versão do século XIX, antimodernista e apologética, eles despertam emoção, decepção e raiva.
O ar fresco que entra de novo oficialmente na Igreja Católica é reconfortante para a maioria, alarmante para poucos. Mas não basta abrir a janela e descobrir panoramas impensados: agora, é preciso que as comunidades individuais assumam essa mesma postura e essa mesma perspectiva. Que, através de uma sã autocrítica, ganhem novas evidências e outras prioridades. Para que o Evangelho e a fé podem voltar a ser alegria contagiosa e força de vida.
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Autocrítica do Magistério e reforma da Igreja. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU