05 Outubro 2017
Na sessão de abertura de uma grande conferência na Universidade jesuíta Gregoriana, em Roma, sobre a proteção das crianças no mundo digital, o cardeal italiano Pietro Parolin, segunda principal autoridade do Vaticano, disse que a "experiência trágica" da Igreja Católica com abusos sexuais clericais permite que ela seja líder na luta contra o abuso infantil em outros âmbitos.
A reportagem é de Inés San Martín, publicada por Crux, 04-10-2017. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Dirigindo-se ao grupo de especialistas reunidos em Roma, como representantes do Facebook, do Google e da Microsoft, o braço-direito do Papa Francisco disse, na terça-feira, que a trágica experiência da Igreja com abusos sexuais de crianças, "essa realidade [que] ganhou forte destaque na Igreja Católica", permite-a ajudar na liderança da luta em outros âmbitos.
"Neste local, [a Igreja Católica] quer compartilhar a experiência que adquirimos, para que possa ser útil para um bem ainda maior, ao colaborar com todos vocês", disse o cardeal italiano Pietro Parolin.
Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, foi um dos dois palestrantes da conferência intitulada "Child Dignity in the Digital World" (Dignidade infantil no mundo digital), realizada na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, de 3 a 6 de outubro. A conferência foi organizada pelo Centro para a Proteção de Menores (CPM) da universidade, uma aliança global com sede no Reino Unido chamada WePROTECT, e "Telefono Azzurro", a primeira linha telefônica italiana para assistência de crianças em vulnerabilidade.
"Reconhecemos os desafios, mas também percebemos que, embora tenhamos aprendido muito sobre esse fenômeno, é importante compreendê-lo ainda melhor e, além de tudo, continuar a tornar a nossa compreensão acessível para todos aqueles que promovem a proteção dos direitos dos menores", disse ele.
"Somente assim podemos lutar efetivamente a batalha pela proteção dos menores em nosso mundo digital", disse Parolin ao público. "Os fenômenos que observamos atingem níveis chocantes de gravidade; suas dimensões e a velocidade com que se espalham superam nossa imaginação."
Dirigindo-se aos participantes, cuja maioria tem longos anos de experiência na luta contra o abuso sexual de menores, ele reconheceu que é um fenômeno "vasto e difundido".
"Ao longo das últimas décadas, essa trágica realidade ganhou forte destaque na Igreja Católica e surgiram fatos muito graves", afirmou. "A Igreja ficou cada vez mais consciente do prejuízo sofrido pelas vítimas, do seu sofrimento e da necessidade de escutá-las, para trabalhar em várias frentes."
Para que a luta contra o abuso sexual de menores seja frutífera, disse, são necessários cuidados humanos profundos, competência e tenacidade, além de consistência e continuidade.
O esforço da Igreja nessa direção, declarou, "mesmo quando a sociedade em geral ainda não desenvolveu a consciência necessária, deve continuar, deve ser ampliada e aprofundada, com clareza e firmeza, para que a dignidade e os direitos dos menores possam ser protegidos e defendidos com muito mais atenção e eficácia do que antes."
Em relação ao uso generalizado da tecnologia em todo o mundo, Parolin disse que esta disponibilidade fez com que o flagelo das ofensas contra a dignidade dos menores se espalhasse e se alinhasse aos novos parâmetros do mundo digital. Estão expostos a velhos riscos de novas maneiras, segundo ele.
Isso aumenta ainda mais o desafio, porque significa que a "cultura da proteção de menores que queremos disseminar deve ser suficientemente capaz de resolver os problemas de hoje".
A violência e o abuso a menores "se proliferam interligadamente", disse Parolin, citando vários casos como esse, tais como o tráfico de menores, a prostituição, crianças treinadas para a guerra, a falta de educação e a fome e a pobreza.
"A horrenda realidade do abuso sexual", afirmou, "está quase sempre presente, como um aspecto comum e consequência da violência multifacetada e generalizada que desconhece qualquer respeito, não só pelo corpo, mas também pela alma".
No final da conferência, os participantes de países do mundo todo, como China, Rússia, Arábia Saudita e Emirados Árabes, deverão apresentar um plano de ação ao Papa Francisco.
Parolin aplaudiu a diversidade de participantes, um fator que visa estabelecer um diálogo entre aqueles que abraçaram a causa da defesa dos menores no mundo digital. É preciso recuperar o controle do desenvolvimento do mundo digital, segundo o cardeal, para que atenda à dignidade das crianças e ao futuro da raça humana.
Ele observou que, em todo o mundo, há crianças de países em desenvolvimento que têm acesso ao mundo digital, embora vivam em um contexto em grande parte não desenvolvido. Nessa realidade, disse Parolin, seus pais e professores podem não ter ferramentas para acompanhar seu crescimento.
O congresso ocorrido em Roma, disse ele, também tem uma responsabilidade com essas crianças, assim como as empresas que impulsionam o desenvolvimento do mundo digital.
"Não é por acaso" que essas crianças, nas "periferias" do mundo, como muitas vezes diz Francisco, são o alvo preferido das redes de exploração, tanto nos países em desenvolvimento como nas sociedades ricas onde "há grande pobreza humana e espiritual, solidão e perda do significado da vida".
A vida de todas as crianças, disse Parolin ao final de suas observações, é "extremamente importante" e preciosa tanto para outras pessoas quanto perante os olhos de Deus, pois todos foram criados à Sua "imagem e semelhança".
"Desprezar a infância e abusar das crianças é, para o cristão, portanto, não apenas um crime, mas também - como afirmou o Papa Francisco - um sacrilégio, uma profanação do que é sagrado, da presença de Deus em todo ser humano", observou.
Ernesto Caffo, fundador do Telefono Azzuro, citou várias ameaças on-line a crianças, incluindo sexting (envio de mensagens de cunho sexual), sextortion (extorsão sexual), grooming (aliciamento infantil) e o abuso infantil ao vivo na internet. De acordo com o especialista, as crianças em maior vulnerabilidade são as que têm alguma deficiência e crianças pobres, migrantes e refugiadas.
Várias estatísticas foram dadas pelos palestrantes na sessão de abertura, como o fato de que, somente na Europa, existem 34 mil páginas na internet que mostram crianças sendo abusadas sexualmente e que, de acordo com a Interpol, em 2016, pelo menos cinco crianças por dia foram vítimas de abuso sexual on-line. Apenas em 2013, de acordo com vários especialistas, 18 milhões de crianças foram abusadas sexualmente, representando 30% das crianças do continente.
Ernesto Caffo falou de vários estudos que demonstram que as taxas de abuso sexual na infância variam de 7% a 36% no caso de meninas e de 3% a 29% no caso de meninos.
Apesar dos números, no entanto, de acordo com ele, é difícil estimar corretamente a prevalência de abuso e exploração infantis, pois o monitoramento sempre foi afetado pela porcentagem de casos não denunciados e provavelmente não reflete as reais dimensões do fenômeno.
Experiências tóxicas na infância, afirma, "estruturam o cérebro de maneira significativa e têm uma grande influência na idade adulta no futuro".
A ausência de uma experiência adequada de apoio positivo, explicou, leva a mudanças neuropsicológicas e ao desenvolvimento de mecanismos de enfrentamento disfuncionais. Em 23% dos casos, as vítimas adultas necessitam de tratamento psicológico por toda a vida.
Caffo encerrou suas observações pedindo ações a nível global: "Qual o valor da pesquisa se não traduzimos resultados em políticas, ações e programas?"
A elaboração do congresso durou anos, diz o Padre jesuíta Hans Zollner, chefe do CPM Gregoriano, que também é membro da Comissão para a Tutela dos Menores do Papa Francisco.
Ele foi encarregado de entregar as declarações de abertura do congresso, que seguiram um doloroso vídeo mostrando várias crianças que sofreram diversas formas de abuso, desde uma adolescente chantageada por um homem para compartilhar fotos nuas até um menino segurando um brinquedo de pelúcia enquanto era sexualmente abusado.
"Histórias como estas representam por que estamos aqui reunidos", disse Zollner. "Ouvimos histórias de vítimas e agora estamos aqui para falar sobre esperança...".Sinto duas emoções conflitantes. Um sombrio sentimento referente ao tema da nossa discussão", mas também "um sentimento de esperança" ao olhar para os rostos das pessoas presentes.
"Como podemos impedir esses ataques terroristas no coração das crianças?", perguntou, acrescentando que tem uma convicção: "nenhum remédio curaria isso tudo"; pelo contrário, "é um conjunto de linhas que tecem essa rede de segurança... E é composto pelas pessoas."
O congresso de uma semana inclui uma ampla gama de palestrantes, de diferentes origens e áreas, tais como cientistas, especialistas em softwares, pesquisadores, autoridades policiais, acadêmicos, líderes da sociedade civil, representantes governamentais e representantes religiosos do mundo todo.
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Cardeal Parolin diz que "experiência trágica" com abuso sexual ajuda Igreja em sua liderança da luta contra o abuso infantil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU