05 Setembro 2017
Por trás desse pontificado revolucionário e carismático está a formação da Companhia de Jesus.
O artigo é de Luis Felipe Gómez Restrepo, jesuíta e reitor da Universidade Javeriana – Cali, Colômbia, publicado por El Tiempo, 01-09-2017. A tradução é de André Langer.
Jorge Mario Bergoglio entrou no noviciado da Companhia de Jesus na Argentina no dia 11 de março de 1958. Ali, como qualquer noviço, teve uma imersão completa durante dois anos na espiritualidade inaciana, o que poderíamos chamar de formatação da sua vida interior. Pois bem, agora, como Papa Francisco, é possível identificar nele não poucas das características fundamentais do carisma dos jesuítas.
É importante assinalar que há mais de 100 anos não tínhamos um papa oriundo de uma ordem religiosa e que o simples fato de ser membro de uma família religiosa que vive em comunidade e compartilha seu carisma, marca necessariamente a forma de proceder.
Por outro lado, desde os tempos em que era bispo na Argentina, o Papa Francisco é um homem dado a surpresas. Recordemos essa imagem do início do seu pontificado: no dia da sua eleição, quando apareceu na sacada para saudar a multidão que estava na Praça de São Pedro em Roma e esta esperava a sua bênção, ele, ao contrário, pediu às pessoas ali reunidas para que rezassem pedindo a Deus que o abençoasse. Belo gesto de simplicidade e humildade pessoal, é, sobretudo, saber-se portador de uma missão de Deus que o ultrapassa.
No exercício do pontificado do Papa Francisco podemos ressaltar vários atributos: aceitar-se como um pecador que foi chamado a seguir Cristo; alguém que está convencido de que mais que aplicar a lei é preciso fazer discernimento com os elementos próprios de cada caso; um fervoroso amante da misericórdia de Deus; um firme convencido de que Deus está presente em toda a criação e que segue ali trabalhando dia e noite, que requer de nós um cuidado da ecologia integral; alguém convencido da esperança que há no homem; um leitor da realidade em chave da encarnação; empenha-se tornar a Igreja uma Igreja em saída.
Façamos um voo sobre cada um deles e observemos como o primeiro jesuíta que se torna Papa na história da Companhia de Jesus é um exímio expoente do que desejava Santo Inácio de Loyola dos homens que assumiam a vocação de ser jesuíta.
O que significa ser jesuíta? Perguntava-se uma Congregação Geral, que terminou em 1975, e que respondeu: “Reconhecer que se é pecador e, no entanto, é chamado a ser companheiro de Jesus...”. Esse profundo sentimento de sentir que se é pecador chamado fica em evidência em suas frequentes visitas à catedral de São Pedro em Roma, onde se aplica a ouvir confissões, mas também para se confessar. As fotos falam por si.
Um trabalho fundamental dos papas é proporcionar aos fiéis e à humanidade em geral documentos que ajudem a iluminar a vida pessoal e em sociedade. Três de suas características têm a ver com aquelas que são fundamentais na espiritualidade inaciana.
A exortação apostólica pós-Sinodal Amoris Laetitia tem em seu capítulo 8 seu centro no discernimento, que é a ferramenta fundamental da espiritualidade que Santo Inácio deixou para os jesuítas. A lei e a aplicação das normas não bastam para solucionar os casos pastorais na Igreja; é necessário discernir.
O que é o discernimento? “O discernimento espiritual compreende a distinção dos movimentos do bom e do mau espírito, assim como o entendimento das suas táticas e estratégias. Aprender a distinguir estas moções internas é como poderemos intuir qual é a vontade de Deus. As moções são sugestões e impulsos internos que incitam a que façamos algo ou deixemos de fazê-lo” (Bárcenas, 2016).
O discernimento como atitude de vida é colocar-se nas mãos de Deus em cada decisão importante da existência. Durante o noviciado, que todos os jesuítas fazem, há um mês reservado aos Exercícios Espirituais, que são uma verdadeira escola de discernimento; aprender a buscar e encontrar a vontade de Deus em sua vida.
Decidir-se por Deus nem sempre é fácil, pois vivemos um combate permanente. Esta angústia positiva está manifestada em uma meditação que Santo Inácio propõe aos exercitantes: as Duas Bandeiras, que apresenta o projeto de Deus e outro que o afasta de Deus. E nesse impulso, o cristão deve tomar suas decisões.
Nesses mesmos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, há uma dinâmica muito bonita na qual se mostra o pecado pessoal e estrutural em que cada um está imerso, mas, por sua vez, há uma dinâmica positiva que está centrada na graça de Deus, que, com sua infinita misericórdia, está chamando todos os homens e mulheres para mudar de vida para perdoá-los.
Pois bem, a única bula, a Misericordiae Vultus, o rosto da misericórdia, que foi expedida pelo Papa Francisco é precisamente a da convocatória para o Ano da Misericórdia, confirmando que Deus é amor e amor redentor. Foi assim que abriu as portas santas da catedral de São Pedro para significar essa abertura da Igreja, para que todos os fiéis pudessem sentir-se acolhidos em seu seio. De um paradigma de Igreja condenadora passa a uma ênfase especial em uma Igreja que quer que todos se salvem, que ninguém se perca.
A Encíclica Laudato Si’ (2015), que dirigiu a toda a humanidade e não apenas aos crentes, é um dos principais documentos sobre a ecologia integral. Ali assinala que a crise é fundamentalmente socioambiental e faz um apelo a toda a humanidade. Pois bem, uma das últimas contemplações que os jesuítas fazem nos Exercícios Espirituais, a Contemplação para Alcançar Amor, que é o convite para encontrar Deus em todas as coisas, ali presente e trabalhando, pode ser uma das fontes de inspiração deste texto do Papa Francisco.
Também a missão da Companhia de Jesus foi se renovando com o passar dos anos, e nas últimas Congregações Gerais houve uma ênfase especial na reconciliação. Esta tem vários níveis: reconciliação com Deus, consigo mesmo e com a natureza. A Laudato Si’ é uma grande contribuição na tomada de consciência sobre a importância do cuidado da casa comum.
O Papa assume uma crítica das relações entre justiça e meio ambiente, mostrando as conexões entre desigualdades socioeconômicas e a deterioração ambiental. E faz um apelo para trabalhar por um novo tipo de relações entre os seres humanos e a natureza de maneira que a vida no mundo seja sustentável.
Desde a sua fundação, a Companhia de Jesus rompeu com os paradigmas das comunidades religiosas de seu tempo ao abandonar o hábito, ao não ter coro e ao ir ao encontro de seus ministérios apostólicos. Surgiu como uma ordem missionária que se lançava em diversas fronteiras: geográficas, enviando jesuítas ao Extremo Oriente; culturais, optando por entrar em diálogo com o Renascimento; e religiosas, frente à Reforma de Lutero e Calvino. O papa pediu à Igreja para ser Igreja em saída; aos sacerdotes pediu para que tenham cheiro de ovelha... E em relação a tudo isso, deu o exemplo pessoal. O Papa Francisco decide não morar nos apartamentos privados do Vaticano, mas ficar na casa onde se alojam os bispos em trânsito; sua decisão é estar próximo das pessoas. Vai além da sua afabilidade, por exemplo, a sua decisão de ir, na Quinta-Feira Santa, lavar os pés de presos, entre eles uma mulher e um muçulmano.
É seu afã de não estar fechado, mas acessível a todos. Ele também falou da Igreja como um hospital de campanha que deve atender a todos os feridos.
Esta Igreja em saída é muito própria dos jesuítas, que têm nos Exercícios Espirituais uma chave de vivência da fé: a Encarnação. Neste sentido, é ver na dor e na necessidade dos seres humanos a presença de Cristo sofredor na cruz, e pede aos jesuítas ganhar em conhecimento interno do Senhor, para mais amá-lo e segui-lo. Por isso, o Papa Francisco, em uma das suas primeiras saídas de Roma, foi ao encontro dos migrantes, deslocados e refugiados. Visitou Lampedusa e criticou a globalização da indiferença. Ali onde está uma pessoa sofrendo está Cristo. A mesma coisa aconteceu quando visitou Lesbos, ponto de chegada de muitos imigrantes sírios, onde criticou duramente os campos de refugiados dizendo que pareciam mais campos de concentração.
Uma característica muito forte da teologia do Papa Francisco é uma visão antropológica muito otimista: o homem é capaz de fazer o bem, e insiste em que o cristão deve ser uma pessoa alegre. É sua confiança no ser humano que abre uma perspectiva de esperança sobre o mundo. Esta confiança no homem é um elemento chave do preceito dos Exercícios Espirituais, onde o exercitante se identifica com Cristo e deve colocar seu amor mais nas obras do que em palavras. Na exortação apostólica Evangelii Gaudium, a alegria do Evangelho, manifesta: “Todo ser humano é objeto da infinita ternura do Senhor”, por ser imagem de Deus.
O jovem Bergoglio que ingressou e se formou na Companhia de Jesus é o mesmo Papa Francisco, e traz no profundo de sua espiritualidade várias características próprias, embora não exclusivas, da espiritualidade inaciana, que afloram na maneira como ele exerce sua responsabilidade na Igreja.
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Bergoglio, os gestos e valores de um Papa jesuíta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU