25 Julho 2017
“A governamentalidade algorítmica se efetua sobre um plano flexível (modulável) que se opõe ao plano de consistência das instituições. Quando Sadin toma emprestada a expressão “governamentalidade algorítmica”, cunhada pela pesquisadora belga Antoinette Rouvroy, apresenta-nos uma prática que funciona de forma sutil sobre a propulsão dos humanos em se comunicar mediante ‘robôs clarividentes’: uma incontável quantidade de sensores, aplicativos, smartphones, processadores, servidores”, escreve Facundo Carmona, ao analisar o ensaio La humanidad aumentada. La administración digital del mundo, do pensador francês Éric Sadin.
O artigo é publicado pela revista Crisis, 22-07-2017. A tradução é do Cepat.
Segundo o autor, "assistimos à emergência de uma governamentalidade algorítmica que pilota numerosas situações coletivas e individuais. Uma vontade impessoal que tende à adequação em ato entre toda unidade orgânica ou material. Uma força a-disciplinar, uma administração soft da vida orientada a captar o possível no atual. Uma mutação fundamental do sujeito racional ocidental que deixa seu lugar a um ser formado por sua mais pura exterioridade e suas relações".
Martín Migoya, CEO da multinacional argentina Globant, está convencido de que vivemos na fase superior da revolução tecnológica. Já deixamos para trás a fase fundacional da Internet, na qual foi criada a infraestrutura necessária para seu funcionamento. Também a fase das redes sociais, que melhorou a conectividade e a socialização da informação. Agora, é o momento da capilarização da produção de dados. No momento da Internet das Coisas: “tudo estará conectado à Internet, desde um guindaste até a turbina de um avião, passando por um elevador e a máquina de lavar roupas de sua casa. Tudo conectado a um fluxo de informação que precisa ser interpretado por algo e de alguma forma. A maneira de interpretar tão grandes volumes de dados se dá por meio da inteligência artificial”.
Sobre esta esteira, e em um tom menos otimista, navega o último livro da coleção Futuros Próximos, publicado por Caja Negra: La humanidad aumentada. La administración digital del mundo, de Éric Sadin. A novíssima prima donna do pensamento francês se atém em dissecar o fenômeno da digitalização do mundo e o desenvolvimento de um conhecimento artificial dinâmico, que permite processar quantidades enormes de fluxos graças a “agentes imateriais disseminados e clarividentes”. Estes atores configuram uma inteligência artificial espalhada, estruturada por um poder de reunião e de correlação imanente e em tempo real.
Diferente do saber sociológico enunciado pelas pesquisas, que parte de uma hipótese de trabalho, a machine learning produz hipóteses a partir de dados. Tal capacidade cognitiva lhe permite aspirar um tipo de entendimento não mediado por qualquer subjetividade. O que inevitavelmente lhe confere um aspecto inquietante. Que mundo se constitui a partir da duplicação digital do existente? O que se instaura com o armazenamento e análise de massas colossais de dados? Que modelo de governamentalidade se institui? Que tipo de homem emerge? São algumas das perguntas que o autor tenta responder neste ensaio que lhe conferiu o prêmio Hub Awards, em 2013.
Sadin, de quem recentemente começamos a conhecer sua obra na América espanhola, colabora com os meios de comunicação Le Monde, Libération, Les Inrockuptibles e Die Zeit. E é o autor de cinco livros que buscam analisar as mutações tecnológicas na sociedade contemporânea e seu impacto na ideia de homem: Surveillance globale (2009), La societé de l’anticipation (2011), La vie algorithmique (2015) e La silicolonisation du monde (2016).
Sadin constrói seu ensaio com graça e vocação pedagógica. Sua astúcia reside em apresentar fenômenos complexos sem cair em posturas tecnofóbicas extremas, nem em um humanismo penitente. Também não sucumbe ao encanto de recorrer ao slang filosófico francês, que embora ajudaria no desenvolvimento de algumas ideias como governamentalidade (Foucault) e modulação (Deleuze), delimitaria seu campo de leitura ao mundinho acadêmico. Ao contrário, Sadin confere forma ao seu diagnóstico com uma luz de prosa que se sintoniza com uma miríade de exemplos da cultura de massa. Parece que seu objetivo é o de aproximar suas ideias ao público mais amplo possível. Esta vocação gera entusiasmo na crítica e um rodízio intenso de sua figura nos meios de comunicação de massa franceses como voz autorizada a divulgar a formação de uma “subjetividade digital”.
É preciso dizer, La humanidad aumentada apresenta bem um problema contemporâneo que resulta da variação do vínculo que temos com a técnica. O abandono do casulo protetor para entrar em um ambiente cognitivo capaz de aceder sem esforço em uma infinidade de fatos de toda ordem. “Camadas de experiências artificiais que permitem a medição virtual de situações, prévias ou não a sua posterior experimentação física”.
Esta situação inaugura uma nova racionalidade, a-normativa, apolítica, sem sujeito reflexivo, que se alimenta de dados infra-individuais. Dados anônimos, que são insignificantes por si mesmos (por isso, aceitamos colocá-los em circulação a todo tempo) e que só significam quando são colocados em relação por uma Inteligência Artificial. Distante da visão uniforme dos sistemas políticos modernos, ou da necessidade de apagar as diferenças, estes “processos dedutivos se encarregam de exaltar ao máximo cada circunstância singular. Não se propõem inscrever e nem reduzir os seres e as coisas a esquemas idênticos e homogeneizantes, mas, sim, a ajustar o conjunto de forças suscetíveis para se encontrar entre si, dentro de todo fragmento espaço-temporal considerado oportuno”.
Assistimos à emergência de uma governamentalidade algorítmica que pilota numerosas situações coletivas e individuais. Uma vontade impessoal que tende à adequação em ato entre toda unidade orgânica ou material. Uma força a-disciplinar, uma administração soft da vida orientada a captar o possível no atual. Uma mutação fundamental do sujeito racional ocidental que deixa seu lugar a um ser formado por sua mais pura exterioridade e suas relações.
Assim como Migoya, Sadin postula uma hipótese histórica. Não obstante, para o ensaísta francês esta “revolução digital”, que situa nos anos 1980, marcada por um movimento expansivo de objetos industriais e protocolos de gestão de informações, consumou-se na conexão integral que vincula ser, coisa e lugar. Sua finalização se cifra no surgimento do Smartphone, inteligência inoculada nos processadores e carregada de uma série titânica de aplicativos dedicados a “enriquecer de maneira altamente informada” nossa existência. Aqui, Sadin situa a emergência de uma antrobiologia. Um termo que remete à condição dual que combina organismos humanos e fluxos eletrônicos. Uma nova condição humana secundada por um organismo cognitivo, inteligência robotizada não antropomórfica, baseada em esquemas e processos que nada tem a ver com o modelo humano.
O ensaio começa com uma referência deformada de HAL 9000, a Inteligência Artificial encarregada de pilotar a Discorvery One, em 2001 - Uma Odisseia do Espaço. Basta analisar um dia de nossas vidas para observar que este tipo de consciência caminha entre nós. Acordamos com a melodia recomendada por Spotify, socializamos no Facebook, revisamos a rotina de exercícios proposta por 8fit, evitamos um engarrafamento graças ao Waze. E à noite, se temos um pouco de sorte, saímos com aquela garota que nos atraiu no elevador graças ao Happn e a geolocalização do desejo. Também o trading algorítmico do mercado financeiro ou da ‘radarização’ e governo (pilotagem) das vias aéreas funcionam sob a delegação de decisões na faculdade de interpretação e iniciativa de sistemas computacionais. Ao que iremos nos opor, se estes aplicativos tornam a nossa vida mais simples? Podemos dormir tranquilos. HAL se concretizou à custa de trocar seu potencial parricida por um enriquecimento de nossa vulgar vida cotidiana.
Isto é possível graças ao fato desta fase superior da técnica da máquina preservar certo grau de indeterminação. Esta margem lhe permite “ser sensível a uma informação exterior”. Possibilita a liberdade de iniciativa. Desta maneira, habilita-se a capacidade de “gerir uma grande quantidade de coisas mediante sistemas robotizados que atuam em nosso lugar, principalmente em virtude de algoritmos complexos que lhes permitem proceder segundo margens de compreensão e de reatividade que não param de aumentar”.
Além disso, desde meados do século XX, a arena política se complexifica com a incorporação de novos jogadores (gênero, povos originários, etc.). A estes fenômenos que operaram na multiplicação do político, soma-se o fato de que as formas de vida tecnológicas possibilitam novos espaços de poder. É assim a forma como opera um deslizamento da vida coletiva (deliberação), para sua assunção por meio dos sistemas de decisões eletrônicos. Sadin dá conta do surgimento de uma racionalidade que modela e antecipa por vias probabilísticas, princípios de simulação e procedimentos de data mining que retiram o político de seu campo habitual.
A governamentalidade algorítmica se efetua sobre um plano flexível (modulável) que se opõe ao plano de consistência das instituições. Quando Sadin toma emprestada a expressão “governamentalidade algorítmica”, cunhada pela pesquisadora belga Antoinette Rouvroy, apresenta-nos uma prática que funciona de forma sutil sobre a propulsão dos humanos em se comunicar mediante “robôs clarividentes”: uma incontável quantidade de sensores, aplicativos, smartphones, processadores, servidores. Contudo, Sadin, ao menos neste ensaio, nunca fala da necessidade de estar comunicados. O que é uma pena pois ajudaria a pensar no como opera seu diagnóstico e a evitar o “determinismo tecnológico” que sobrevoa todo o ensaio e se codifica, por exemplo, na figura do Smartphone.
Finalmente, estamos diante da aposta despida de La humanidad aumentada, que pretende radicalizar a variabilidade preceito-cognitiva da inteligência humana. Isto permitiria tomar distância do real mediante a aptidão de se subtrair em esquemas associativos determinados. Sadin quer afirmar a própria singularidade segundo uma relação de divergência a propósito dos fluxos informacionais do cotidiano. Aqui, o livro se atola em uma proposta conservadora inaugurada por Heidegger (serenidade diante das coisas) e se replica com certo ritmo tanto como ficção, como ensaística (desconexão, ficarmos fora dos fluxos informacionais, entre outros gestos).
La humanidad aumentada se sustenta no afã descritivo de Éric Sadin e em sua vontade de atualizar o debate a respeito da hipertecnologização da vida. Uma discussão que desde o surgimento de La hipótesis cibernética (1999) não teve maiores avanços na literatura ensaística. É preciso reconhecer a coragem de arrancar o pensamento filosófico e político sobre “técnica e sociedade” do monopólio acadêmico. Sobretudo, é comemorável os bons resultados que esta operação tem para o leitor: um texto amigável, compreensível e não por isso menor. Esta vocação atenta contra o desenvolvimento pormenorizado de conceitos? Sim, é óbvio. Propicia uma genealogia adequada para muitas de suas ideias? Não. No entanto, a máquina de análise proposta se sustenta e nos permite individualizar o problema de nosso tempo. Sadin oferece um insumo fundamental a todo aquele que queira pensar os procedimentos e técnicas de governamentalidade sem preconceitos tecnofóbicos e humanismo de salão.
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Coração de smartphone - Instituto Humanitas Unisinos - IHU