23 Julho 2017
O cuidado da Casa Comum é um dos grandes desafios do século XXI e nessa temática insiste constantemente o Papa Francisco, que com a Laudato Si’ ajudou a despertar uma nova visão de mundo como algo integrado, onde a preservação precisa levar em conta todos os aspectos e incluir as pessoas, especialmente os excluídos.
Desse ponto de vista, a Rede Eclesial Pan-Amazônica (REPAM) pretende realizar esse trabalho na região considerada como um dos pulmões do mundo. Uma das assessoras da REPAM-Brasil é Moema Miranda, diretora do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e uma das principais vozes, tanto no Brasil como em nível mundial, nessas temáticas. De fato, ela participou de diversos encontros internacionais sobre o tema.
Nesta entrevista, a antropóloga brasileira reflete sobre a Amazônia e seus povos e sobre o trabalho evangelizador da Igreja católica na região. Além disso, dá sua opinião sobre o significado da figura do Papa Francisco e a mudança de paradigma por ele proposto.
Moema Miranda, que é leiga franciscana, contempla o Francisco de Roma a partir da figura de Francisco de Assis, e se atreve a dizer que ele está sendo aquilo que o santo de Assis foi para a sociedade do início do século XIII, ou Jesus de Nazaré há dois mil anos, figuras emblemáticas e revolucionárias que trouxeram uma nova maneira de entender a religião e a sociedade.
Ela também destaca como o trabalho em rede que a REPAM pretende impulsionar pode ajudar a desempenhar melhor o trabalho eclesial na Amazônia e a melhorar a vida de sua população, tantas vezes oprimida e explorada ao longo da história.
A entrevista é de Luis Miguel Modino e publicada por Religón Digital, 22-07-2017. A tradução é de André Langer.
Qual é a importância da REPAM para a Igreja da Amazônia, do Brasil e para a vida do Planeta?
A REPAM é uma possibilidade nova e renovada – pois, na verdade, não é uma coisa nova – de fazer um trabalho da Igreja em rede, em uma área fundamental para o Planeta como um todo, que é a Amazônia. Sabemos que tudo está inter-relacionado, que os biomas dependem uns dos outros, mas também sabemos que a Amazônia é de fato um dos pulmões do mundo, o espaço que permite a conexão da hidrosfera e da atmosfera.
Todos os dados mostram isso, mas acima desses elementos, a destruição da Amazônia seria uma perda impressionante dentro do equilíbrio energético e vital. Por isso, a Igreja se dispõe como tal, como uma rede, a colocar essa questão no centro da discussão, e que o faça não buscando apenas a salvação da Amazônia, mas colocando seus povos indígenas e tradicionais no centro da sua missão evangelizadora e profética, é extremamente importante e muito desafiante, pois nós, como Igreja, muitas vezes trabalhamos de um modo muito hierárquico, em compartimentos estanques, separados da realidade.
Poder realizar uma ação evangelizadora, pastoral, missionária e profética na Amazônia e fora dela, é um apelo do Papa Francisco que ressoa no chamado que há muito anos a Igreja na Amazônia vem fazendo. A quantidade de mártires que a Igreja tem na Amazônia é a melhor expressão do compromisso da Igreja com a Amazônia ao longo dos anos.
A chegada do Papa Francisco ajudou a universalizar a visão dos povos e da Igreja da Amazônia?
Penso que sim, que esse papa do fim do mundo, que veio de perto de nós, pois nós também estamos no fim do mundo, permite ao centro do mundo ou à parte do mundo que se acredita ser central, escutar o eco dessa voz, escutar uma expressão da nossa voz a partir de outro lugar, pois quando o Sumo Pontífice, o Papa ou Bispo de Roma, ressoa o que ele escuta, não fala apenas para esses povos, mas com esses povos, como missionários, profetas, em comunhão com eles, a partir da Amazônia. Penso que de fato realiza uma mudança de lugar, de paradigma e que pode permitir uma conexão essencial e indispensável.
Essa mudança de paradigma é possível em uma cultura ocidental, em um mundo capitalista que sempre desprezou aquilo que os povos da Amazônia defendem e aos quais chegam até a considerar como incivilizados?
Eu digo com muita honestidade que na Encíclica o Papa diz isso de muitas maneiras. Estamos em um momento em que não é possível conciliar discursos que são pura aparência com o drama atual que estamos vivendo. De fato, o Papa já disse no discurso aos movimentos populares que este sistema é um sistema de terror e de morte.
Penso que o sistema capitalista é incompatível com a sobrevivência da vida humana no Planeta. Mas a cultura ocidental não é apenas o capitalismo, pois tem muitos elementos que, em um diálogo intercultural e inter-religioso, podem ser elementos de salvação e horizonte de nova vida.
A cultura ocidental sempre teve seus elementos não hegemônicos. É a partir da contra-hegemonia, da profecia e do messianismo de onde falamos. Jesus de Nazaré vem desse mesmo lugar, e nós, como seguidores e seguidoras de Cristo, a única coisa que podemos fazer é trilhar por esse caminho da rebeldia.
Francisco de Assis foi considerado um louco, inclusive dentro da própria Igreja católica. Poderíamos dizer que, atualmente, há dentro da Igreja pessoas que pensam que as ideias do Papa Francisco são ideias de louco?
Penso que sim, você tem toda a razão. Como franciscana, posso dizer que somos a parte submetida da Igreja, a parte que não se calou. Há um teólogo que disse que o maior milagre de São Francisco de Assis foi não ter sido queimado na fogueira. Ele não era um santo milagreiro; era um santo profético, que influenciou na vida eclesial e social, criando um movimento com os pobres e que, junto com Santo Domingo, mudou a cara da Igreja.
São Francisco começou uma forma de vida religiosa fora dos conventos, itinerante, como ordens missionárias, afirmando que “nosso claustro é o mundo”, indo pelo mundo descalço, cantando o sol, o céu, a água, como irmãos e irmãs, instituindo a compreensão da fraternidade universal, de nós como filhos e filhas do mesmo Deus Criador.
Essa inspiração divina estendeu-se e agora foi retomada por Francisco em Roma. Isso nos faz ver que esse Jesus que também foi considerado louco e herege pelo judaísmo, esse Cristo que também foi visto como inocente e romântico, é o Cristo que foi revivido por Francisco e hoje é novamente revivido por Francisco. A questão é como rezamos com ele.
Um desapego que se dá em Jesus, em Francisco de Assis, em Francisco de Roma, mas que não passou a fazer parte da vida da Igreja. Por que essa distância em relação a esses personagens que podemos dizer que são decisivos na história do cristianismo?
Porque a Igreja é filha de homens e mulheres, filha de nosso tempo, é uma tentativa de responder a esse chamado. Ao mesmo tempo é uma instituição de homens e mulheres, inspirados pelo Espírito, sem dúvida alguma, mas que caminham junto com a história, com todas as nossas limitações, pecados e erros, mas também com toda a nossa grandeza, capacidade de superação e entrega.
Francisco de Assis e Francisco de Roma não foram os únicos mártires. A Igreja da Amazônia tem mártires, como a Irmã Dorothy Stang e tantos outros. Esse desapego que vai até o limite é um motivo de inspiração para você, para mim e para tantos que estão construindo a REPAM. Também é um exemplo de que não devemos ficar desesperados, pois acredito que hoje o desencanto e a desesperança são, talvez, os maiores pecados que podemos cometer.
A respiração, esse inspirar e expirar e continuar vivo, acordar cada dia e continuar, com utopias, já foi, é e sempre será o grande chamado ao profetismo. Vamos respondendo na medida das nossas limitações, dores, mas estando juntos e juntas vamos nos apoiando, fortalecendo, dando-nos mutuamente as mãos.
Não se percebe na Igreja católica, mesmo hoje em dia com o Papa Francisco, que a visão econômica está acima da visão ecológica e ecosófica?
A Igreja também sou eu e você. Podemos dizer que na Igreja hegemônica talvez a hegemonia seja essa. Por isso, penso que a Igreja precisa fazer uma autocrítica e a partir daí considero a Encíclica Laudato Si’ uma carta tão maravilhosa. O Papa reconhece os erros que cometemos e diz que é necessário fazer uma leitura diferente daquela que fazemos, que levou à dessacralização do mundo e a essa superexploração de tudo.
É um caminho feito de tropeços, nos quais caímos e recaímos. Mas a Igreja é multiplicidade, pois quando falamos de Igreja também o fazemos de mim e de você. Falamos dos outros e das outras, mas nós também somos a Igreja, também estamos nela e caminhamos com ela, com Francisco, com Clara, com o Padre Ezequiel Ramin, com tantos e tantas. Nós também estamos aqui.
Esse trabalho em rede, comunitário, que a REPAM pretende fazer, pode ajudar a superar as dificuldades que a Igreja da Amazônia enfrenta, como as dificuldades econômicas, de distâncias, de poucos agentes para fazer o trabalho evangelizador?
Penso que sim, que essa é a grande Boa-Notícia que a REPAM traz, entender que em rede podemos fazer muito mais, pois a verdade é que a rede é a forma como a vida se organiza, de uma maneira inteiramente risômica, mediante redes que vão se criando.
A vida se organiza com a floresta que transpira, com os rios aéreos que transportam a água e que cai em outro lugar. Se cada um tentasse fazê-lo sozinho não iria sobreviver. Essa é a inspiração, a ecosofia, do que vem e do que está na construção constante da vida. É o que nos leva a crer que uma rede feita por homens e mulheres é muito mais forte e tem um potencial de transformação muito maior que um conjunto de homens e mulheres isolados, trabalhando cada um para sua congregação, diocese ou movimento local.
Os diferentes carismas são importantes, os franciscanos, os agostinianos, os diocesanos que estão ali, os diferentes movimentos jovens, a Pastoral da Juventude... Tudo isso é superimportante, mas cada pessoa faz parte de uma conexão maior, de uma teia que é muito mais ampla. Esse é o trabalho em rede que potencia, que apoia quando alguém está cansado, que ajuda a se levantar.
A rede tem muitos significados e muitos símbolos. A rede nos ajuda a pescar, é o lugar onde dormimos depois de cansados, o que pode levar o corpo de um ente querido que está morto. A rede é esse lugar que pode nos animar a continuar caminhando para frente.
Um dos desafios da REPAM é dar a conhecer o seu próprio trabalho e o da Igreja na Amazônia. Nas comunidades da Amazônia vai sendo conhecida, mas no resto do Brasil parece que esse conhecimento é mais limitado. Qual é o desafio da REPAM para superar essas e outras dificuldades?
Penso que esse é um elemento superimportante, pois faz parte da estratégia de comunicação, o como dar a conhecer e como essa rede se amplia para além da Amazônia. Pois não pode ser uma rede da Amazônia que fala para a Amazônia e sim uma rede que fala para fora da Amazônia, que ajuda a conhecer essa Boa-Nova, esse trabalho que se está fazendo, essa capacidade de resistência que junta as forças de fora e de dentro.
Como a força de dentro, dos ancestrais, dos missionários, junta-se com a força de fora, é o que a rede pode produzir, o que a REPAM pode fazer. Mas, nesse ponto, estou completamente de acordo com você: tem que haver uma estratégia para isso, identificar quem mais fora da Amazônia pode ser essa voz que comenta, que une, que dá notícias sobre a vinculação profunda com um trabalho que é comum a todos nós.
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“O sistema capitalista é incompatível com a sobrevivência da vida humana no Planeta”. Entrevista com Moema Miranda - Instituto Humanitas Unisinos - IHU