10 Mai 2017
Um debate entre o padre Lemaître, que teorizou o Big Bang, e o prêmio Nobel Dirac. Reflexões sobre o papel atual da religião em vista de um congresso no Observatório do Vaticano: “Há religiões que não entram em conflito com o mundo científico, e outras que, ao contrário, sentem-se ameaçadas pelo pensamento científico e o combatem. De onde vem a diferença? Parece-me que Lemaître põe o dedo em um ponto de substância.”
A opinião é do físico italiano Carlo Rovelli, professor da Universidade de Aix-Marseille, na França, e diretor do grupo de pesquisa em gravidade quântica do Centro de Física Teórica de Luminy, em Marselha, em artigo publicado por Corriere della Sera, 09-05-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o artigo.
A partir dessa terça-feira, 9, até sexta-feira, 12, um pequeno congresso organizado pela Specola Vaticana, o Observatório do Vaticano, reunirá no quadro maravilhoso de Castel Gandolfo um restrito grupo de cientistas, incluindo diversos prêmios Nobel, para trocar opiniões sobre o tema “Buracos negros, ondas gravitacionais e singularidade no espaço-tempo”.
No panorama que eu acho muitas vezes desolador de obscurantismo crescente, o pequeno grupo de cientistas da Specola sempre foi, para mim, um ponto de luz, profundidade e razoabilidade. Lembro-me de uma maravilhosa visita a Castel Gandolfo há diversos anos, quando o diretor da Specola era George Coyne, um homem profundo, cujas palavras e escritos deixaram marcas em mim.
Eu conheci agora o atual diretor da Specola, Guy Consolmagno: na paixão com que me falava dos “seus” meteoritos, eu reconhecia facilmente o meu próprio amor pelo universo e seus mistérios, e pela ciência.
O congresso é dedicado a Georges Lemaître, um dos maiores cientistas do século XX, conhecido pelo grande público menos do que mereceria. Lemaître é o homem que entendeu por primeiro que todas as coisas que vemos ao nosso redor emergiram a partir de uma explosão há alguns bilhões de anos, aquela que hoje chamamos de Big Bang. Ele a chamava de “ovo cósmico”. Ele era sacerdote da Igreja Católica e profundamente interessado na relação entre religião e ciência, assunto sobre o qual escreveu páginas de grande atualidade e, na minha modestíssima opinião, iluminadoras.
Um querido amigo, ele também sacerdote e cientista na Specola, recentemente trouxe ao meu conhecimento um texto sobre Georges Lemaître publicado nos Commentarii da Academia Pontifícia, escrito por Paul Dirac, que, com Einstein, foi o maior físico do século XX. Dirac era um homem de pouquíssimas palavras, provavelmente por sofrer de uma forma de autismo, e francamente ateu.
O artigo de Dirac é de 1968, técnico, muito belo. Dirac esclarece, com a perspicácia que lhe é própria, a relevância das contribuições científicas de Lemaître e reconhece o seu valor científico. Está escrito no estilo seco e factual que lhe é próprio. Mas há uma passagem que me fez pensar e deu origem a esta reflexão. Perto do fim do artigo, Dirac, de modo muito pouco característico, entrega-se a considerações um pouco vagas sobre a relação entre cosmos e humanidade. Lemaître, escreveu, revelou uma fascinante visão em que o universo inteiro evolui, a evolução na Terra pode ir de mãos dadas com a evolução cósmica e evolução social, e, talvez, pode levar a um futuro melhor e mais luminoso para toda a humanidade.
Era 1968, e talvez até mesmo o idoso cientista se deixava influenciar pela febre de mudança e de otimismo daquele grande ano. Mas Dirac cita essa sua consideração para, depois, contar uma conversa ocorrida com Lemaître sobre esse assunto. Comovido pela grandeza da visão que Lemaître tinha aberto a todos nós, Dirac havia lhe dito que a cosmologia podia ser “o ramo da ciência mais próximo da religião”.
Talvez, no modo um pouco desajeitado de quem é um pouco autista, o ateu Dirac queria dizer algo de gentil ao sacerdote. Mas, para o espanto de Dirac, Lemaître diz que discorda. E, depois de uma breve reflexão, responde a Dirac que, segundo ele, não é a cosmologia o ramo da ciência mais próximo da religião. Dirac fica perplexo: qual é, então, o ramo da ciência mais próximo da religião? Lemaître tem uma resposta: a psicologia.
Lemaître tinha se esforçado para manter cosmologia e religião distintas. Provavelmente, é justamente graças a ele que a Igreja Católica não caiu na armadilha em que caíram tantos outras denominações cristãs: ler uma conexão entre o Big Bang e a criação narrada pelo Gênesis.
Quando Pio XII aventurou essa conexão em um discurso público, Lemaître logo se esforçou para que isso não se repetisse, evitando, assim, um grande embaraço para a Igreja de Roma. A sua clarividência pode ser medida hoje, considerando que a existência de uma fase do universo antes do Big Bang é agora considerada possível. Seria embaraçoso para a Igreja ter que fazer as contas hoje com uma fase do mundo pré-Gênesis...
Mas a ideia de que a ciência mais próxima da religião é a psicologia, vindo de um sacerdote católico que refletiu a fundo sobre a relação entre religião e ciência, é bastante surpreendente. Eu a achei iluminadora.
Há alguns meses, foi publicado na mais prestigiosa revista científica, Nature, um comentário escrito por um representante da Igreja Anglicana. É uma sincera e franca invocação para pôr de lado o tradicional conflito entre ciência e religião, e se concentrar nos pontos comuns, ao invés dos pontos de atrito. Buscar pontos de convergência ao invés de pontos de conflito é sempre um bom conselho, e a consideração de Lemaître me parece central nesse sentido.
A semelhança das linguagens usadas pela ciência e pela religião (“Universo, criação, fundamento, existência ou não existência de um criador...”) me parece simplesmente ilusória e enganosa. Os debates entre os dois pontos de vista são debates entre surdos, porque utilizam os mesmos termos para falar sobre coisas diferentes.
Há religiões que não entram em conflito com o mundo científico, e outras que, ao contrário, sentem-se ameaçadas pelo pensamento científico e o combatem. De onde vem a diferença? Parece-me que Lemaître põe o dedo em um ponto de substância. As religiões reais são estruturas culturais e sociais complexas que desempenharam um papel importante na evolução da civilização, por muito tempo identificaram-se com a gestão do poder e da coisa pública, e ofereceram um quadro abrangente e global para pensar a realidade, incluindo questões como a origem do universo.
Quando a humanidade encontrou formas melhores de tratar diversas dessas questões, por exemplo a democracia laica, tolerante e pluralista para a gestão da coisa pública, ou a ciência para se interrogar sobre como o mundo funciona em pequena ou grande escala, algumas religiões se inquietaram com a consequente perda de relevância e se puseram em conflito com aquelas que percebiam como novidades perniciosas.
Os famosos e violentos discursos do Papa Pio XII contra a liberdade religiosa, contra a liberdade de imprensa, contra a liberdade de consciência são exemplos com os quais eu suponho que a Igreja Católica hoje esteja envergonhada. O encastelamento sobre si mesma da Igreja, o fato de defender até o fim uma centralidade na vida pública que gostaríamos que estivesse fora da história, a batalha de retaguarda contra a ciência e, especialmente, a incapacidade de compreender o crescimento e a evolução boa e positiva da moral, tudo isso alimentou e ainda alimenta o descrédito de uma parte dos cidadãos em relação à Igreja.
Mas isso não significa que religião e ciência devam estar em conflito. Há grandes religiões que não têm dificuldade de aceitar o fato de que o passado do universo não é mais bem compreendido lendo a Bíblia ou assumindo como bom aquilo que a Tradição diz. Elas não têm dificuldade de aceitar a laicidade da vida pública, a pluralidade das opiniões, a tolerância real para com aqueles que são diferentes de nós e a ideia de que nenhum de nós, dentro ou fora de uma ou outra Igreja, é o único depositário da verdade absoluta. A Igreja Anglicana e algumas formas de budismo são exemplos disso.
Há religiões que não tentam impor os seus pontos de vista àqueles que não os compartilham, nem impor comportamentos àqueles que têm morais diferentes, não tem a presunção de ensinar aquilo que não sabem. Mas sabem igualmente falar de forma convincente aos homens e às mulheres, sabem fazer uma reflexão profunda sobre os seres humanos, sobre as nossas escolhas, sobre os nossos relacionamentos, sobre o nosso ser interior. Reflexões que têm um valor real e profundo para milhões de homens e de mulheres. Sabem oferecer ensinamento, transcendência, ritos, coesão e refúgio.
São religiões que estão cientes de que o seu verdadeiro saber diz respeito à vida interior, ao sentido que escolhemos dar à nossa vida, não ao mundo ao nosso redor, não às leis da coisa pública, não ao sentido do universo fora de nós. São as religiões que sabem que não têm nada a ver com a cosmologia. Ao contrário, são curiosas para aprender aquilo que nos ensina a mecânica quântica ou a cosmologia; assim como são o Dalai Lama e os cientistas da Specola Vaticana.
Há religiões que sabem dialogar utilmente com a ciência mais próxima da religião: a psicologia. Como indicava George Lemaître, com um profundo sentido da importância e dos limites da ciência, mas também da importância e dos limites da religião. Esse é o espírito que eu percebi nas palavras trocadas com o Pe. Cohen na minha visita a Castel Gandolfo anos atrás, e acho que é o espírito com que cientistas de grande valor e de sentimento religioso muito variado podem se reencontrar hoje na Specola.
Assista a um vídeo, em italiano, com o depoimento de Carlo Rovelli sobre George Lemaître:
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Qual a ciência mais próxima da fé? A psicologia, e não a astrofísica. Artigo de Carlo Rovelli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU