Por: João Vitor Santos | 08 Abril 2017
O filósofo e jornalista inglês G. K. Chesterton, ainda entre as décadas de 1920 e 1930, dizia que “a vida é um mundo e a vida vista nos jornais é outro”. Essa perspectiva de que o jornalismo reconstitui parte de uma verdade pode ser um caminho para responder uma das questões levantadas pela coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, Stela Meneghel, durante sua conferência Saúde e igualdade. A relevância do Sistema Único de Saúde, no IHU ideias da última quinta-feira, 6-4. Ela reconhece que o SUS tem falhas, mas destaca que saúde pública no Brasil é uma conquista recente e, além disso, há uma série de políticas e programas dentro do sistema que têm bons resultados. “E isso a gente não vê na mídia. Mas por que será? Há interesses econômicos em bater no SUS, demonstrar fraquezas do sistema”, alerta, ao lembrar dos debates sobre a privatização da saúde.
Stela não esconde o descontentamento ao ler nos jornais e ouvir nas conversas de filas de supermercado e dentro do transporte público que as políticas de saúde pública são ineficazes e caras demais. Para ela, esse é um discurso que é incutido pela imprensa. “As pessoas acreditam em qualquer coisa e não vão atrás de dados para saber o outro lado. Por isso, nós que trabalhamos com saúde pública precisamos melhorar nossos argumentos para contrapor o debate”, destaca. A professora toma como argumento, por exemplo, o programa Mais Médicos, que trouxe mais força para a atenção básica em saúde. “Trouxe resultados importantes, chegamos a 18 mil médicos cobrindo 81% dos municípios brasileiros”, pontua.
Entretanto, a professora recorda as inúmeras manifestações e críticas ao programa. Muitas dessas partindo da classe médica brasileira, que alegava estar perdendo espaço para médicos estrangeiros. “É bom lembrar que, em 2013, o edital para contratação de médicos foi aberto aos brasileiros e só as vagas restantes foram ofertadas para profissionais de outras nacionalidades”, recorda. E acrescenta: “75% dos médicos brasileiros trabalham para o SUS. É um número considerável e não podemos dizer que estão perdendo espaço”.
Para Stela, o problema começa antes, ainda nas faculdades de medicina. Poucos estudantes da área querem apostar os estudos no campo da saúde coletiva. O número é pequeno em todas as áreas de profissionais da saúde, mas ainda menor entre os futuros médicos. “Não podemos desconsiderar que a maioria dos estudantes de medicina vem das classes mais abastadas e, com isso, carregam seus valores. Na própria universidade, já vemos essas tensões e belicosidades. É o caso, por exemplo, da tensão sobre o sistema de cotas na UFRGS, que é criticado por muita gente”, analisa.
A defesa que Stela faz do SUS ecoa na plateia, formada por estudantes e profissionais da área da saúde. Mas, entre eles, uma acadêmica da Linguística parece mais entusiasmada. Joseane de Souza, aluna do Programa de Pós-Graduação em Linguística Aplicada da Unisinos, intervém: “na minha pesquisa, percebo os bons resultados de práticas do SUS. Além disso, minha avó é usuária do Sistema e posso acompanhar como ela é bem atendida. Academicamente e pessoalmente, percebo que funciona bem”, destaca.
A defesa ao SUS feita por Stela ecoa na plateia, que reconhece boas práticas, mas que não vê isso nos noticiários (Foto: João Vitor Santos|IHU)
Joseane estuda os discursos na conversa entre médicos e pacientes. “E, nessas conversas, que gravamos e analisamos depois, conseguimos pescar que tem coisa boa. Há boas práticas ali nessa relação”, explica. O objeto de pesquisa a intrigou porque também se sentia incomodada com o cipoal de más notícias e dramas relacionados ao SUS. “Acho que a gente, na academia, precisa investir mais nas pesquisas dessas boas práticas. Tenho esperança de que a gente consiga contrapor essa ideia incutida de que o SUS não funciona”.
A pesquisadora reconhece que há limites de recursos e deficiências sérias de gestão, mas, como Stela, defende que se busque corrigir essas distorções, sem apagar as boas práticas. “Afinal, vejo isso com minha avó de 77 anos, com Parkinson e diabetes. Ele é atendida muito bem nas unidades básicas e nas consultas de maior complexidade, com especialistas”.
Na sua palestra, Stela faz um resgate e lembra a história da saúde pública no Brasil. Aliás, recorda que os investimentos nas primeiras faculdades de medicina só se deram com a chegada da família real. Além disso, recorda a perspectiva de sanitarismo de campanha. “É o que foi feito por Oswaldo Cruz na vacinação em massa nos portos e nas cidades. Havia um interesse econômico por trás. Em decorrência das doenças daqui, os navios não queriam mais atracar nos portos brasileiros e se investe nessa vacinação em massa para higienizar os portos e cidades. Há uma culpabilização muito grande do doente”, recorda. Esses e outros elementos são o combustível para a Revolta da Vacina em 1904.
De lá para cá, o Brasil foi mudando e fortalecendo uma política de saúde pública de outra ordem, voltada mais para a prevenção, e não apenas na busca pela eliminação de agentes infecciosos via vacinas. É só na década de 1980, depois de passar por sistemas privatistas caros que mantinham os serviços de saúde no Brasil, como financiamento de hospitais privados e pagamento por procedimentos médicos, que se começa a constituir um sistema amplo e universal de saúde. “E o Brasil constitui esse conceito ímpar de saúde coletiva, fruto do movimento sanitarista e de toda uma reformulação com participação popular”, recorda.
Assim, 1987 começa a operar o sistema que vai dar origem ao SUS e, em 1988, a política de saúde coletiva entra na Constituição. “É uma conquista em vários sentidos, entre eles a possibilidade de intervenção maior na atenção básica de saúde. Claro, há problemas e deficiências que precisam ser analisadas e corrigidas”. E para provar os avanços e conquistas com o SUS, destaca números. Entre eles está o dado de que a mortalidade infantil está praticamente erradicada. Além disso, 71% da população brasileira é usuária do SUS, 33% usam medicação do sistema, sendo 22% somente na farmácia popular. Dos tratamentos contra o câncer no Brasil, 80% são feitos pelo SUS, são 500 mil novos casos por ano, 94 mil cirurgias e 2,5 milhões de tratamentos de quimioterapia, segundo dados do Sistema. E dos transplantes realizados no país, 87% são SUS. “São serviços que os planos não cobrem pelo alto custo. Agora, imagine isso no contexto dessa proposta de terceirização da saúde, via planos de baixo custo”, provoca a professora.
Stela Meneghel (Foto: João Vitor Santos|IHU)
Graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, com especialização em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública, mestrado em Medicina: Ciências Médicas pela UFRGS, doutorado em Medicina: Ciências Médicas pela UFRGS e pós-doutorado no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Autônoma de Barcelona. Atualmente é professora adjunta da UFRGS, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva e professora do PPG Enfermagem da mesma instituição. Participa do Grupo de Estudos Rotas Críticas: desigualdades sociais, generificadas e racializadas/UFRGS; do EducaSaúde/UFRGS e do Grupo de Estudos e Pesquisas em Violências/PUC-RS. Tem experiência na área de Saúde Coletiva em vigilância da saúde, vulnerabilidades, gênero e violências.
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Um SUS que não se quer ver - Instituto Humanitas Unisinos - IHU