19 Dezembro 2016
Chegar aos 80 anos de vida não é uma meta banal. Nem mesmo para Francisco, que está de aniversário amanhã [17-12-2016]. “The Old Pope” é um homem que aguarda o amanhecer rezando os Salmos, substituídos na secularidade ocidental pelos suores dos exercícios, aplicativos de meditação e dietas antioxidantes. Percebe-se então nesse ponto a poética inexorabilidade do Salmo 90: “Os anos de nossa vida chegam a setenta, ou a oitenta para os que têm mais vigor; entretanto, são anos difíceis e cheios de sofrimento, pois a vida passa depressa, e nós voamos!”
O artigo é do historiador italiano Alberto Melloni, professor da Universidade de Modena-Reggio Emilia e diretor da Fundação de Ciências Religiosas João XXIII, em Bolonha., publicado por La Repubblica, 16-12-2016. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o artigo.
Oitenta anos é a vida que se torna fardo desgastante: ingravescere, dizia-se em latim. Não mais um frágil ego juvenil faminto de confirmações. Não mais a vida adulta que a tragédia derruba sem pedir licença. Não mais o tédio de quem tomou como amante o demônio meridiano ou a neurose de quem escolheu Mamon. Mas um peso que pode entregar uma última vaidade; ou então abrir-se à ”sabedoria do coração” que consiste num único preceito “contar os próprios dias”, sabendo que podem ser prorrogados apenas na incurável solenidade do ingravescere.
Aquele verbo, usado por Paulo VI quando em 21 de novembro de 1970 tirou o eleitorado dos cardeais com mais de oitenta anos e retomado por Ratzinger em 2013 em sua renúncia ao trono de Pedro, vale agora para Francisco. E os oitenta anos são a idade em que os dois últimos generais da Companhia de Jesus, à qual pertence o pontífice, apresentaram suas demissões, deixando um cargo ao qual haviam sido eleitos de forma vitalícia, mas também são os seus.
Portanto, frente a um pontífice de oitenta anos e ingravescentem, alguém pode querer fazer alguns cálculos. Os prelados da superlotada Confraria da Santa Carreirinha espicham seus olhares à procura de um passo um pouco mais cansado ou de um rosto um pouco mais inchado. Mesmo sabendo que o Vaticano não pode se transformar num clube de aposentados para ex-Papas, os conservadores prudentes esperam que Bergoglio torne-se, assim que for possível, o segundo bispo emérito de Roma, antes que o cartório os empurre para fora do próximo conclave. E quem já está cansado de se fingir obediente, calcula que os “4-5 anos” que Bergoglio prognosticava como sendo a sua duração estejam se esgotando.
Nada disso tudo é inédito, mas nada promete algo bom para a Igreja. Mesmo sem a volta da desordem sistêmica e da violência institucional do final do papado de Ratzinger, as banderillas dos cardeais mais idosos e dos jornalistas mais jovens deixam bem claro que o “conflito” que o Papa evocou como cura à maledicência e à hipocrisia ainda é o mesmo: conflito puro, no balanço entre tourada e comunhão. Nada disso é singular, mas não promete absolutamente nada para o mundo de Alepo, onde pelo menos um líder para dar voz às vítimas viria a calhar.
Mesmo assim, entender Francisco parece cada vez mais difícil para um número cada vez maior de pessoas. “The Old Pope” não é um homem “moderno”, que tenha a pretensão seduzir os ateus e irritar os carolas, embora tenha sucesso em ambas as situações. É um cristão, que traz em si muitas páginas da história: o anti-jansenismo dos jesuítas do século XVII, a profecia da Igreja latino americana que reconheceu a voz do Cristo pobre nos gritos dos pobres excluídos, a palavra de São Paulo que sofria as dores do parto da criação onde os demais viam uma ética verde que objetiva a saúde e não a salvação. Ética da saúde. Isso tudo não é novo: como também é bastante óbvio falar que traz consigo a sua história. Mas o que o identifica, é que à “sua” história oferece um significado teológico, desde sempre e hoje também. No “creio” que escreveu para si mesmo em 13 de dezembro de 1969, dia de sua ordenação presbiteral, fazia profissão de sua fé trinitária, mas acrescentava acreditar “na mesquinhez da minha alma, que busca receber sem dar”, de crer na “paciência de Deus, acolhedora, boa como uma noite de verão”, de esperar “esse rosto maravilhoso que não sei como é, do qual fujo continuamente, mas que quero conhecer e amar”. E acrescentava: “Creio na minha história”. Aquela história que hoje chega a uma recapitulação solene e dramática no momento em que ela fez dele, após um conclave fracassado, um Papa que quer fazer da “forma do santo evangelho” algo que pode chegar ao coração da “forma da Santa igreja romana”. E é nisso e apenas por isso que é um reformador.
Por isso tem inimigos tão ruidosos e vistosos: que o Papa não agrade a alguns que murmuram ou que escrevem ou que pensam, é fisiológico e até mesmo saudável; que alguns cardeais o ataquem e poucos o defendam, não. Porque no fundo um pouco de paternalismo que perdoa quem chama de pecado a vida do pecador não faria mal a ninguém. Quem acredita que a reforma da Igreja consista em fustigar a cúria ou levar a democracia lá onde ao contrário serve a sinodalidade, poderia dar apoio a Francisco.
Ele, ao contrário, cético em relação aos trâmites jurídicos da reforma, leva a “sua história” de cristão no proscênio e lhe dá um significado “missionário”. Quem tem saudade da Igreja fustigadora tem ótimos motivos para estar furioso: porque as normas depois se desmontam, e quando dá errado, se interpretam. Mas a vida cristã, não.
Quando passa, não tem mais nada a ser feito. Torna-se uma força invisível e nos tempos de horror, de sangue e de barbárie que nos construímos poderia ser também uma força “histórica”. Se, ao contrário, aquela vida não floresce, resta puro espetáculo: e “the Old Pope” permanece sozinho frente a um infindável público inerte.
O homem de oitenta anos que tem a sabedoria no coração, não vai se alarmar: conta os dias e isso lhe basta. Para o público distraído por tantas coisas é mais difícil perceber que o limiar que o Papa passa é um limiar do mundo.
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The old Pope e os 80 anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU